CONSIDERAÇÕES ACERCA DA POSSIBILIDADE DE PRISÃO APÓS CONDENAÇÃO EM 2ª. INSTÂNCIA.
DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
Ab initio, antes de adentrar na complexa lide acerca da possibilidade de execução da pena após condenação em 2ª. Instância,é importante esclarecer o instituto da Mutação Constitucional.
A mutação constitucional consiste na alteração, não da letra, ou do texto expresso, mas do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais, através da interpretação constitucional, ou dos costumes.
Esta alteração é realizada mediante princípios hermenêuticos, onde se extrai mecanismos norteadores de interpretação da norma, sempre pautado na ponderabilidade e em respeito ao Princípio da Separação dos Poderes de Montesquieu.
Cumpre destacar o entendimento de Daniel Mitidiero a respeito da mutação constitucional:[1]
No âmbito da chamada mudança informal, não há, a rigor, alteração do texto normativo, mas sim alteração no que diz com a aplicação concreta de seu conteúdo a situações fáticas que se modificam no tempo, geralmente pela via da interpretação constitucional, fenômeno designado, como ja referido, de “mutação constitucional”, no sentido de uma mudança constitucional que, embora altere o sentido e alcance da constituição, mantém o Texto Constitucional intacto.
A idéia de uma participação mais ampla do Poder Judiciário na concretização de valores constitucionais se baseia no ativismo judicial, tema este que apresenta notória divergência na doutrina.
Ocorre que sendo nocivo ou não, o ativismo judicial representa a insuficiência do Estado em atender aos interesses da população. Para Barroso[2] esse fenômeno tem uma feição positiva, ao dizer que o judiciário acaba atendendo as demandas da sociedade que não foram satisfeitas pelo Poder Legislativo, sendo que é imprescindível uma reforma política no país visando reaproximar a classe política da sociedade, devendo as decisões em sede de ativismo judicial serem excepcionais.
A melhor técnica sempre é a da ponderação, e o desafio é assegurar ao poder judiciário, o livre exercício de sua atividade típica por todos os métodos interpretativos da lei, sem que essa atividade possa ferir os pilares da tripartição de poderes, tampouco a segurança jurídica.
FUNDAMENTOS TÉCNICO-JURÍDICOS E PRAGMÁTICOS
Conforme podemos observar, o Constituinte Originário preceituou uma Constituição garantista, ao estabelecer no Artigo 5º:
"LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória";
Dentre a seara hermenêutica doutrinária, esse assunto é passível de argumentações divergentes.
O inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Ou seja, a Constituição Federal diferencia o regime de culpabilidade e o da prisão, sendo possível a prisão preventiva e temporária, bem como outras prisões tais quais, prisão para fins de extradição, expulsão e deportação, situações estas onde o princípio da presunção da inocência e a inexistência do transito em julgado não obstam a prisão. Outrossim, as prisões supracitadas, são estabelecidas em leis infraconsticionais, dessa forma, acentua-se que: interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário.
Além do exposto, como se sabe nos tribunais superiores, como regra, não se discute autori dade e materialidade ,ou seja, o STJ e o STF não fazem análise de conteúdo probatório, análise fática/meritória, e sim análise de Direito, vide Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. Os Recursos Especial e Extraordinário, não se prestam à rever condenações, mas apenas a tutelar a higidez do ordenarmento jurídica constitucional e infraconstitucional.
Destarte, resta-se razoável à execução de pena ao transgressor, após sentença emitida por um Juízo de Direito, bem como por um Colegiado de Desembargadores.
Não obstante, segundo dados oficiais do Supremo Tribunal Federal, o percentual médio de recursos extraordinários providos em favor do réu é demasiadamente irrisório, qual seja 1,5%. Sendo que, de 1/1/09 a 19/4/16, em 25.707 decisões de mérito proferidas em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões absolutórias não chegaram a representar 0,1% do total de decisões.
Dessa forma, é incontestável que os casos de absolvição são raríssimos.
Agora, sob a ótica do juízo de valor. De acordo com a realidade social/fática atual, a interpretação do inciso em destaque, desencadeou nos costumes brasileiros, sensação de impunidade, principalmente em relação aos crimes de colarinho branco, definidos pelo sociologista Edwin Sutherland [3] como "um crime cometido por uma pessoa de respeitável e de alta posição (status) social, no curso de sua ocupação".
Sobretudo, não podemos ignorar a situação em que nosso pais se encontrava, onde constatávamos dia após dia, notícias de corrupção institucionalizada, onde políticos e empresários de alto escalão, praticam crimes de corrupção ativa/passiva, fraude, lavagem de dinheiro, dentro outros, entretanto permaneciam em liberdade, posto que o ordenamento jurídico permite a interposição de infindáveis recursos protelatórios.
Tal modelo, enseja em considerável gasto de tempo, sem real proveito para a efetivação da justiça e respeitos às garantias individuais e processuais penais.
Outrossim, reforça a seletividade do sistema penal, bonificando réus privilegiados, com condições de contratar advogados de alto escalão para defende-los em sucessivos recursos. Ora, a impossibilidade da execução da pena após condenação em 2ª. Instância não irá beneficiar o réu marginal, de menor potencial delituoso, ou o réu hipossuficiente injustiçado, posto que este não tem acesso à "jurisdição ilimitada".
Com efeito, a impossibilidade de execução da pena após o julgamento final pelas instâncias ordinárias produziu consequências muito negativas para o sistema de justiça criminal, funcionando como um poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios.
À título de exemplo, podemos aduzir o caso de Pimenta Neves, condenado pelo assassinato da jornalista Sandra Gomide, onde a impunidade o cercou durante mais de 10 anos, mesmo sendo ele réu confesso. A longa jornada fora da cadeia foi possível justamente pela possibilidade de inúmeros recursos aos tribunais superiores.
Por derradeiro, cabe ressaltar que grande parte dos países desenvolvidos permitem à prisão após condenação em 2ª Instância, tais quais como Estados Unidos e diversos países europeus. [4], servindo o direito equiparado como mais um subsídio para locupletar à argumentação aqui aduzida.
CONCLUSÃO
Em que pese o ativismo judicial sofrer criticas por parte da doutrina e dos juristas, não podemos olvidar que à mutação constitucional trouxe ao país, importantes avanços sociais fáticos, diante da ineficiência do legislador em adequar a norma à realidade social.
Podemos citar como exemplo, o reconhecimento jurídico da união estável entre pessoas do mesmo sexo (ADIn nº 4.277/DF), bem como a ADPF 54, onde foi reconhecido que não deve ser considerado aborto à interrupção terapêutica induzida na gravidez de um feto anencéfalo. Temas estes, os quais não houveram resolução pelo Poder Legislativo.
Sendo assim, diante da fundamentação exposta em epígrafe, infere-se que à execução de pena após condenação em 2ª. Instância, possui fulcro na hermenêutica, na realidade social, no combate à impunidade brasileira, no ordenamento jurídico, no direito comparado e na ponderabilidade de princípios conflitantes. Sendo importante observar, que em que pese o Princípio da Tripartição de Poderes estabelecer funções determinadas às instituições democráticas, não podemos ignorar à ineficiência do legislador em atender aos proclames sociais, aos costumes, à realidade social. A alteração interpretativa é possível, e a sociedade não pode conviver passivamente com à corrupção institucionalizada em que vivemos. É necessário conferir ao art. 5º, LVII interpretação mais condizente com as exigências da ordem constitucional no sentido de garantir a efetividade da lei penal.[5]
Ex positis, a possibilidade de prisão após condenação em 2ª. Instância trará equilíbrio à funcionalidade da justiça criminal, diminuindo à seleção do sistema carcerário, bem como irá quebrar o paradigma de impunidade que o país se encontra.
Luis Roberto Barroso comenta:[6]
[...] a interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve as normas jurídicas pertinentes, os fatos a serem valorados, as circunstâncias do intérprete e o imaginário social. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina denomina de pré-compreensão. É hoje pacífico que o papel do intérprete não é – porque não pode ser – apenas o de descobrir e revelar a solução que estaria abstratamente contida na norma. Diversamente, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer, com freqüência, valorações in concreto e escolhas fundamentadas.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang,MITIDIERO,Daniel, MARINONI, Luiz Guilherme - Curso de direito constitucional, p. 101.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 248.
[3] White Collar Crime, Edwin Hardin Sutherland, Dryden Press
[4] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/10/16/alvo-de-disputa-no-brasil-prisao-apos-condenacao-em-2a-instancia-e-permitida-nos-eua-e-em-paises-da-europa.ghtml
[5] HC 126292 / SP
[6] BARROSO, Luis Roberto. Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em <www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf> Acesso em 28 de janeiro de 2017.