Lockdown e a liberdade de locomoção no âmbito da pandemia do novo coronavírus

08/05/2020 às 08:17
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Trata-se de um artigo que visa levantar posicionamentos acerca do lockdown e seus aspectos constitucionais, especificamente o direito de locomoção.

Com o avanço da pandemia do novo coronavírus no mundo e especificamente no Brasil as autoridades estão tomando medidas mais severas no combate a este crescimento. Uma destas medidas é o lockdown que consiste na obrigação de manter-se em isolamento social, com isso surgem os questionamentos acerca do direito constitucional de ir e vir.

Conhecido como direito de locomoção, este encontra-se postulado no art. 5º, XV, CF, que diz o seguinte: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.  

Ocorre que por mais que seja um direito exposto no rol das garantias fundamentais, portanto invioláveis, não podemos tratar tais direitos como absolutos, pois, o legislador originário se ateve a dizer que a lei determinará onde serão esses limites.

A hermenêutica do trecho da carta política quando diz: “nos termos da lei”, proclama que caberá ao legislador infraconstitucional definir até onde é exercido o direito de locomoção.

Pois bem, partindo desta premissa, observa-se que já existem esses limites ao direito constitucional de liberdade de ir e vir em nosso ordenamento jurídico, exemplo clássico é pena privativa de liberdade, utilizada pelo Estado com fim de exercer o Jus Puniendi (poder/dever de punir).

Outrossim, a Constituição Federal prevê outra situação de privação destes direitos, a qual ocorrerá na vigência de estado de sítio a fim de determinar a permanência da população em determinado lugar, sendo o único dispositivo que concede explicitamente o poder de cessação de liberdade pelo Estado

Em razão do advento da pandemia no território brasileiro surgiram diversas legislações com finalidade de regulamentar ações em combate ao novo coronavírus, uma delas é a Lei nº 13.979/20, regulamentada pelo decreto 10.282/20, bem como pela portaria 356/20.

A Lei em seu art. 2º, trouxe as regras e definições de isolamento e quarentena como sendo:

Isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus;

Quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.

O não cumprimento destas obrigações, quando decretadas pelo poder público acarretará prática de conduta criminal prevista no art. 268, do CP, que aduz o seguinte: infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, ressalvadas as previstas no art. 131 (perigo de contágio de moléstia grave), art. 129 (lesão corporal) e art. 121 (homicídio), ambos do Código Penal.

Feitos estes apontamentos, cumpre dizer que não fora decretado o estado de sítio, neste sentido, em regra, não poderia o Estado usar de seu potente poder para ceifar a liberdade de ir e vir. Ocorre que estamos nos deparando com conflitos de direitos essenciais do Estado Democrático, pois, não se pode olvidar que para manutenção da vida é necessária uma boa saúde, tratando-se então de um direito indisponível.

O desembargador Tupinambá Miguel Castro do Nascimento vê a saúde como uma exteriorização do direito fundamental da vida, devendo esta ser tratada como cláusula pétrea, veja:

“no exame sistêmico do texto constitucional, incompreensível seria garantir-se como cláusulas pétreas, a vida e a integridade física do homem e não se garantir com a mesma eficácia de cláusula intocável por emendas constitucionais, visto que a saúde, destutelada, pode levar inclusive à morte. A proteção estatal da saúde decorre dos princípios adotados pela Carta, e, como resultado, é limitação material implícita a obstar sua abolição, ou redução, por emenda constitucional (NASCIMENTO, 1996, p. 89)[1]”.

Preceitua o artigo 196 da CF que: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Neste sentido afirma (ACHOCHE, 2008):  

“em sequência, previu-se no art. 197 ser a saúde um serviço de relevância pública, vez que indispensável para a manutenção da vida, e no art. 198, inciso II, estipulou-se que as ações e serviços públicos referentes á saúde deveriam ter atendimento integral, priorizando-se as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”.[2]

Desta forma, resta claro que é dever do Estado garantir e fazer garantir a saúde para todos, pois esta não é seletiva. Portanto não pode o indivíduo valer-se de sua liberdade para colocar outras pessoas em risco, devendo o poder público usar de seus atributos legais para repelir tais ações.

Ressalta-se que estamos diante do fenômeno jurídico conhecido como conflito aparente de princípios constitucionais entre o direito de liberdade de locomoção e o direito a saúde. Parte da doutrina utiliza a técnica da ponderação de interesses, bens, valores e normas.

Esta técnica preza pelo princípio da adequação ao caso concreto, devendo o conflito ser resolvido de acordo com o contexto fático analisado, buscando o melhor interesse dos envolvidos.

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Alexandre de Morais assevera que (2003, p. 61):

“quando houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar ou combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios) sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.”[3]

Neste ínterim, partindo de um juízo de adequabilidade a manutenção das restrições de liberdade com que se diz respeito ao combate do avanço da pandemia é medida que se impõe, pois, as orientações das organizações mundiais e nacionais de saúde ponderam que hoje o isolamento social é a principal medida para evitar propagação do vírus.

É cediço que atualmente não temos uma vacina ou medicamento comprovado capaz de erradicar os efeitos da covid-19, restando apenas uma opção, evitar que mais pessoas sejam contaminadas. O último balanço do Ministério da Saúde constatou 9.146 óbitos e 135.106 contaminados[4], ultrapassando inclusive a China (primeiro epicentro do coronavírus), criando-se então o dever de agir do Estado.

Ademais, o Estado não poderá decretar as restrições de liberdades por vontade própria, devendo adotar medidas com bases em evidências científicas, observando o tempo e o espaço mínimo dispensável, nos termos do art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/20.

Outro ponto importante a ser mencionado, é que estas determinações de bloqueios gerais não serão jogadas a sorte em todo território nacional, para tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, reconheceu a competência concorrente dos Estados, Distrito Federal, Municípios e União em regulamentar atos ao combate do novo coronavírus.

Por isso é evidente que o Poder Público deve agir de forma célere para evitar o alastramento do novo coronavírus e garantir o direito a saúde, flexibilizando o direito de locomoção, pois, só há liberdade de ir e vir quando podemos gozá-la com uma vida saudável.


[1] NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal: Direitos e garantias fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

[2] ACHOCHE, Munif Saliba. A garantia constitucionalmente assegurada do direito à saúde e o cumprimento das decisões judiciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2102, 3 abr. 2009.

[3] MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

[4] MINISTÉRIO DA SAÚDE. https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 07/05/2020.

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