2.3. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL
Além disso, complementarmente, faz-se interessante a análise jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito da matéria. Nesse sentido, tem-se que possuem atribuição tributária – e ações com base nessa matéria – as 21ª e 22ª Câmaras Cíveis do Tribunal.
Abaixo, consta a ementa do acórdão mais recente da 22ª Câmara Cível:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. BASE DE CÁLCULO. EXCLUSÃO DA TAXA DE USO DO SISTEMA DE TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA (TUST) E A TAXA DE USO DO SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA (TUSD). DESCABIMENTO. ICMS QUE INCIDE SOBRE TODO O PROCESSO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA, TENDO EM VISTA A INDISSOCIABILIDADE DAS FASES DE GERAÇÃO, TRANSMISSÃO E DISTRIBUIÇÃO. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO
(Apelação Cível, Nº 70076373448, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 08-03-2018).
Ademais, tem-se também a ementa do acórdão mais recente da 21ª Câmara Cível:
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. BASE DE CÁLCULO. MERCADO CATIVO. TARIFAS DE USO DO SISTEMA DE TRANSMISSÃO (TUST) E DISTRIBUIÇÃO (TUSD). MERCADO CATIVO. PREÇO PRATICADO NA OPERAÇÃO FINAL. BASE CONSTITUCIONAL. A comercialização de energia elétrica compreende três etapas de geração, transmissão e distribuição, as quais ocorrem simultaneamente e, por isso, não descaracterizam a sua natureza física unitária, não havendo que se falar em transmissão e distribuição como mero transporte de energia. O que se tem é um grande complexo "todo" onde diversos geradores aportam sua produção de energia elétrica através de linhas de transmissão interligados e onde os consumidores consomem sua parcela, quer diretamente das linhas de transmissão (grandes consumidores - no mercado livre), quer através das redes de distribuição (no mercado cativo), tudo sendo gerenciado para manter o sistema em equilíbrio. Inaplicabilidade da jurisprudência do STJ fundada no enunciado de Súmula nº 166. As linhas de transmissão e distribuição não são etapas que correspondem ao transporte de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte, senão que integram todo um complexo sistema de geração, transmissão e distribuição de energia, interligado e interdependente. Legitimidade da incidência do ICMS nas operações relativas à energia elétrica. Exegese do art. 155, §3º, da CF. Imposto que deve ser calculado sobre o preço praticado na operação final, na esteira do art. 34, § 9º do ADCT e art. 9º, §1º, inciso II, da LC 87/96. RECURSO NÃO PROVIDO
(Apelação Cível, Nº 70069957413, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em: 31-08-2016).
Nota-se que ambas as Câmaras são favoráveis a cobrança da TUSD na base de cálculo do ICMS, adotando entendimento da Primeira Turma do STJ.
Ademais, chama a atenção pontuar que ambas as Câmaras Cíveis adotam um entendimento estritamente minoritário do STJ. Isso porque, no momento em que a 22ª Câmara Cível menciona, na Apelação Cível nº 70076373448 que há precedentes do Superior Tribunal de Justiça, está referindo-se a um posicionamento que encontra tão somente três julgados no STF; rejeitando dezoito julgados da mesma Corte em sentido contrário. Na mesma linha, está o entendimento da 21ª Câmara Cível que, no supra acordão, datado de agosto de 2016, vai no sentido oposto de toda a jurisprudência do Superior Tribunal na época. Isso porque, a divergência aberta pela Primeira Turma do STJ foi inaugurada em março de 2017, ou seja, até então (em 2016), a Corte era unânime no entendimento de impossibilidade de inclusão da TUSD na base de cálculo do ICMS – com nenhuma decisão no sentido diverso, como visto no transcorrer deste parecer –, fatos estes que foram equivocamente desconsiderados pelo Tribunal gaúcho.
Além disso, é possível complementar que diversas ações estão no TJ/RS em sobrestamento em razão da natureza da matéria estar comtemplada por recurso repetitivo no STJ, conforme nota-se nas ementas abaixo:
RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. ENERGIA ELÉTRICA. ICMS. TUST E TUSD. RECURSO REPETITIVO. TEMA 986 DO STJ. SOBRESTAMENTO
(Recurso Especial e ou Extraordinário, Nº 70076492644, Primeira Vice-Presidência, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 12-10-2018).
RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. ICMS. TUST E TUSD. RECURSO REPETITIVO. TEMA 986 DO STJ. SOBRESTAMENTO
(Recurso Especial e ou Extraordinário, Nº 70077645000, Primeira Vice-Presidência, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Redator: Almir Porto da Rocha Filho, Julgado em: 24-09-2018).
RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. ICMS. TUST E TUSD. TEMA 986 DO STJ. SOBRESTAMENTO
(Recurso Especial, Nº 70076422609, Primeira Vice-Presidência, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 13-04-2018).
RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. ICMS. TUST E TUSD. TEMA 986 DO STJ. SOBRESTAMENTO
(Recurso Especial, Nº 70075970608, Primeira Vice-Presidência, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 12-04-2018).
3. ANÁLISE DOUTRINÁRIA
Tendo em vista a eminente controvérsia jurisprudencial da questão, faz-se interessante analisar a doutrina em matéria tributária a respeito da temática.
Por início, com gancho nesse debate, é essencial a seguinte colocação de Cunha e Rodrigues (2018, grifos):
Conforme assentado pela imensa maioria de doutrinadores, bem como jurisprudência amplamente predominante nos tribunais superiores do nosso país, a mera circulação física de mercadoria não enseja a incidência do imposto em questão, tampouco os serviços de transporte de transmissão e distribuição da energia elétrica, de modo que apenas a transferência jurídica do bem faz nascer o dever jurídico de pagar o ICMS.
A questão do entendimento contrário [da Primeira Turma do STJ], se limita a pautar-se na indissociabilidade das etapas anteriores ao consumo (geração, transmissão, distribuição). [...] Resta cristalino que o elemento temporal do fato gerador da relação tributária envolvendo energia elétrica se dá em seu consumo.
Sendo assim, a questão suscitada pelos autores vai no sentido de preservação da segurança jurídica.
Partindo, agora, para análise de mérito da questão, por entendimento doutrinário contrário a incidência da TUSD na base de cálculo do ICMS, inicia-se por Leandro Paulsen (2020, grifos), que assim destacou acerca do assunto:
O STJ decidiu que “envolvem as sobras e os déficits de energia elétrica contratada bilateralmente entre os consumidores livres e os agentes de produção e/ou comercialização” e que “não decorrem propriamente de contratos de compra e venda de energia elétrica, mas sim de cessões de direitos entre consumidores, intermediadas pela CCEE, para a utilização de energia elétrica adquirida no mercado livre cujo valor total já sofreu a tributação do imposto estadual”, de modo que não incide o ICMS nessas operações (apud BRASIL, 2018).3
[...]
O ICMS não incide sobre o “transporte” de energia pelas linhas de transmissão. Conforme vem decidindo o STJ, “O ICMS sobre energia elétrica tem como fato gerador a circulação da mercadoria, e não do serviço de transporte de transmissão e distribuição de energia elétrica”, de modo que não incide sobre a tarifa de uso dos sistemas de distribuições (TUSD) (apud BRASIL, 2013).4
Ainda nesse sentido, o doutrinador Gustavo Ventura também entende não ser possível a inclusão da TUSD na base de cálculo do ICMS, proferindo o seguinte julgamento:
[...] o “transporte de energia” está fora do âmbito de incidência do ICMS. A questão é contratual, pois o consumidor não contrata o transporte da energia elétrica, apenas a adquire. Assim, o ICMS irá incidir sobre a compra e venda da energia.
Alguns estados buscaram a cobrança do ICMS sobre a chamada Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia (TUSD). Acertadamente, o STJ consolidou o entendimento que o pagamento da tarifa não é base de cálculo do ICMS (VENTURA, 2014, grifos).
No mesmo sentido, igualmente, entende Paulo Caliendo (2019), compreendendo que o contrário disso, isto é, a inclusão da TUSD sobre a égide do ICMS, seria violar a exigência de respeito ao princípio da tipicidade da tributação, que demanda exigibilidade sobre a circulação de mercadorias. Por isso, não acredita ser possível a tributação do ICMS em todo o processo de fornecimento da energia elétrica (como tem argumentado a Primeira Turma do STJ).
Por outro lado, é possível encontrar na doutrina posição divergente. Nessa esteira, Oldir Fernandes defende justamente o posicionamento da Primeira Turma do STJ, proferindo:
Para quantificar e remunerar esses agentes econômicos de cada etapa da operação, a ANEEL fixa as tarifas da TUSD e TUST que integram e são indissociáveis do preço da energia elétrica fornecida.
[...]
Entender de modo diverso é o mesmo de buscar adquirir o creme dental sem o tubo, se fosse possível, para excluir o imposto da embalagem. O STJ, no REsp 1.163.020/RS, da relatoria pelo Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria, começou a mudar o entendimento majoritário, acertado em nosso sentir (FERNANDES, 2020, grifos).
De forma geral, não se encontra na doutrina, de forma debruçada, abundantes posicionamentos a respeito dessa questão em específico. Neste parecer, três doutrinadores posicionam-se de maneira contrária a cobrança da TUSD na base de cálculo do ICMS (Paulsen, Ventura e Caliendo) e um favorável (Fernandes).
4. CONCLUSÃO
Como tópico conclusivo, mas não terminativo do debate, é possível criar algumas conclusões a partir dos fatos analisados neste parecer:
No presente momento, a divergência a respeito da matéria “encontra-se ‘aberta’, pois não há consenso entre os Ministros do STJ e o STF, por sua vez, entendeu não haver questão constitucional no caso, em que negou provimento ao RE 1.041.816/SP440, bem como a existência de repercussão geral” (CARNEIRO, 2018).
Em que pese controvertida, a jurisprudência atual do STJ aponta massivamente pela impossibilidade de incidência da TUSD na base de cálculo do ICMS. Isso porque, das vinte e uma decisões analisadas, dezoito são favoráveis ao contribuinte nesse contexto, e três são contrárias.
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Além disso, tendo em vista a notável divergência da temática, foi a matéria levada a julgamento pela Primeira Seção do STJ, justamente composta por Ministros das Primeira e Segunda Turmas. O entendimento divergente na Primeira Turma foi firmado por maioria apertada de três votos a dois; sendo que na Segunda Turma o entendimento (favorável ao contribuinte) é compartilhado por unanimidade pelos cinco Ministros. Portanto, é possível concluir que, possivelmente, a decisão da Primeira Seção será pela não incidência da TUSD na base de cálculo do ICMS, a partir de uma maioria de sete votos a três, ao que tudo indica.
Ademais, o Ministério Público Federal emitiu parecer favorável ao contribuinte na EResp 1163020 no dia 04/07/2018, adotando postura pela ilegalidade da composição da TUSD na base de cálculo do ICMS, reforçando a defesa dos consumidores de energia elétrica;
Apesar de não possuir muitos posicionamentos firmados, a doutrina também aponta no sentido favorável ao contribuinte, pela não inclusão da TUSD na base de cálculo do ICMS, reforçando a correção do posicionamento da Segunda Tuma do STJ.
Não obstante o fato de a matéria estar aguardando ser julgada, o próprio STJ já se manifestou pela possibilidade de apreciação de tutela de urgência a respeito da temática, a fim de evitar a cobrança de ICMS sobre a TUSD. Todavia, como analisado, ambas as Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (21ª e 22ª) adotam postura contrária ao contribuinte e uniforme com a Primeira Turma do STJ, o que obsta abundantemente a possibilidade de ajuizamento de ação com tutela de urgência.
Por derradeiro, com base em todos os fatos trazidos à baila deste parecer, através de pesquisa jurisprudencial e doutrinária, aponta a situação para desfecho favorável ao contribuinte, de modo a ser declarada a ilegalidade da cobrança da TUSD sobre o cálculo do ICMS pela Primeira Seção do STJ no recurso repetitivo nº 986.
REFERÊNCIAS
CALIENDO, Paulo. Curso de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
CARNEIRO, Claudio. Impostos federais, estaduais e municipais. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
CUNHA, Vinicius Lima Mendes da; RODRIGUES, Lucas Prates. A controvérsia da inclusão da TUST/TUSD na base de cálculo do ICMS na energia elétrica. Ano de 2018 - ajuizar ou aguardar? Publicado pelo Migalhas em 10/08/18. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/288857/a-controversia-da-inclusao-da-tust-tusd-na-base-de-calculo-do-icms-na-energia-eletrica--ano-de-2018---ajuizar-ou-aguardar>. Acessado em: 15/02/21.
FERNANDES, Odmir. Comentários aos arts. 32. a 42, 52 a 62 e 68 a 73 do Código Tributário Nacional. In: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.). Código tributário nacional comentado: doutrina e jurisprudência, artigo por artigo, inclusive ICMS e ISS. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
SÁ, Adriana Vieira Milhoranse de. Cobrança de ICMS na tarifa de energia elétrica: análise das questões norteadoras que culminaram no recurso repetitivo do STJ nº 986. 2018. 16. f. Artigo científico (Curso de Pós-graduação Lato Sensu) – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
VENTURA, Gustavo. ICMS e o serviço de transporte: aspectos do contrato de transporte e logística. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
Notas
1 Resolução Normativa ANEEL n. 479, de 3 de abril de 2012 (Diário Oficial de 12 de abr. 2012, seção 1, p. 48).
2 Por exemplo, quatro anos antes disso, no julgamento do Agravo Regimental interposto no Recurso Especial nº 1278024/MG, de relatoria do Min. Benedito Gonçalves e julgado em 07/02/2013, a Turma decidiu de forma favorável ao contribuinte, entendendo que não se aplicava o cálculo de ICMS sobre a TUSD, em decisão unânime.
3 STJ, REsp 1615790/MG, rel. Min. GURGEL DE FARIA, Primeira Turma, julgado em 20/02/2018.
4 STJ, AgRg no REsp 1278024/MG, rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira Turma, julgado em 07/02/13.