Os demais colegas irão dizer. Por motivo de lapso temporal reduzido colo o tema, in verbis:
A presunção de veracidade do conteúdo dos documentos públicos como prova no processo
por Viviann Rodriguez Mattos
Considerações Iniciais
Diferentemente do que ocorre com as pessoas jurídicas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito público tem sua existência legal em razão de fatos históricos, da Constituição do País, de lei ou tratados internacionais, enquanto as pessoas jurídicas de direito privado originam-se a partir da vontade humana.
As pessoas jurídicas de direito público interno, que são as que nos interessa neste breve estudo, dividem-se em: Administração Direta: União, Estados, Municípios, Distrito Federal e as suas autarquias e fundações; e Administração Indireta: Sociedades de Economia Mista e Empresas Públicas.
Essas pessoas jurídicas de direito público, sejam da Administração Direta ou Indireta, existem para o atingimento de certos fins que dizem respeito aos interesses da coletividade.
De acordo com Maria Sylvia Di Pietro1 , citando Ruy Cirne Lima, “existe na administração “uma relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente” (...) Tanto na administração privada como na pública há uma atividade dependente de uma vontade externa, individual ou coletiva, vinculada ao princípio da finalidade, vale dizer que toda atividade de administração deve ser útil ao interesse que o administrador deve satisfazer. No caso da Administração Pública, a vontade decorre da lei que fixa a finalidade a ser perseguida pelo administrador.”
A Administração Pública pode submeter-se tanto ao regime jurídico de direito público ou a regime de direito privado, porém, mesmo quando emprega modelos privados a sua submissão ao direito privado não é absoluta, uma vez que a necessidade de satisfação dos interesses coletivos conduz à outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração pública, tanto para limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do bem estar coletivo como para a própria e eficaz prestação de serviços públicos.
As prerrogativas e privilégios descritos pelo Direito Administrativo para a Administração Pública existem e subsistem, mesmo quando equiparadas ao particular, porque, na realidade, são inerentes à idéia de dever, como elemento do Estado, e da supremacia dos interesses que ele representa (interesses da coletividade) em relação aos interesses individuais de natureza privada.
Neste diapasão, por serem os atos da administração dotados de prerrogativas que derrogam o direito comum perante o administrador, devem ser analisados, sem perder de vista, o regime jurídico administrativo que os rege.
As prerrogativas e privilégios da Administração Pública justificam-se pelos fatos dos atos administrativos serem emanações diretas do Poder Público, em prol da coletividade, motivo pela qual são estes atos cercados de certos atributos que os distinguem dos atos jurídicos privados, dando-lhe características próprias e condições peculiares de atuação.
Os atributos não se confundem com os requisitos do ato administrativo (competência, finalidade, forma, motivo e objeto), pois estes se constituem componentes do ato administrativo, dos quais sem a convergência o ato não se aperfeiçoa e, conseqüentemente, na terá condições de eficácia para produzir efeitos válidos. Já os atributos do ato administrativo são as características próprias e condições peculiares de atuação que a lei empresta a esse ato.
São atributos dos atos administrativos: a presunção de legitimidade, a imperatividade e a auto-executoriedade. Interessa-no para esse estudo a presunção de veracidade dos atos administrativos guardada dentro da presunção de legitimidade.
Segundo o saudoso Mestre Hely Lopes Meirelles2 , “os atos administrativos, qualquer que seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente de norma legal que a estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde as exigências de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não podem ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quanto à legitimidade de seus atos, para só após dar-lhes execução”.
Assim, a presunção de legitimidade diz respeito aos aspectos jurídicos do ato administrativo, e, em decorrência desse atributo, presumem-se, até que se prove o contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei. No entanto, essa presunção abrange também a veracidade dos fatos contidos no ato, no que se convencionou denominar de “presunção de veracidade” dos atos administrativos, e, em decorrência desse atributo, serão presumidos como verdadeiros os fatos alegados pela Administração.
Essas considerações iniciais assumem grande importância para o presente estudo, uma vez que é da presunção de veracidade, nos processo judiciais, que há a inversão do ônus da prova quanto à alegação de não cumprimento de um ato pela Administração, no caso de falta de elementos instrutórios e mesmo quando levantando pela Administração fatos impeditivos, modificativos ou extintivos de direito com base em um ato administrativo.
A presunção de veracidade dos atos administrativos como meio de prova
O artigo 332 do Código de Processo Civil considera hábeis a provar a verdade dos fatos, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados no Código.
A partir de uma interpretação sistemática do estatuído no artigo mencionado, com as disposições contidas no artigo 5o, inciso LVI da Carta Magna, verifica-se que, como corolário da ampla defesa e do contraditório, é possível a utilização no processo de todos os meios de prova, desde que moralmente legítimos e colhidas, direta ou indiretamente3 , sem infringência às normas de direito material. Vale dizer, assim, que o meio de prova utilizado no processo quanto à existência de fatos deverá basear-se em provas juridicamente admissíveis.
Dentre os meios de provas enumerados pelo Código de Processo Civil estão: a) o depoimento pessoal (arts. 342 a 347); b) a confissão (arts. 348 a 354); c) os documentos (arts. 364 a 399); d) as testemunhas (arts. 400 a 419); e) a perícia (arts.420 a 439); e, f) a inspeção judicial (arts. 440 a 443).
A esses meios de prova acrescente-se os previstos nos artigos 122 do Código Comercial/1850, 136 do Código Civil/1916 e 212 do Código Civil/20024 , a saber: a) confissão; b) atos processados em juízo; c) documentos públicos ou particulares; d) testemunhas; e) presunção; f) exames e vistorias; e, f) arbitramento.
Mas como também são meios de provas, ainda que não especificadas no Código, aquelas moralmente legítimas, incluem-se no rol acima, as chamadas “provas emprestadas”, os indícios, em relação os quais era expresso o CPC/39, e aquelas denominadas por Carnelutti, citado por Moacyr Amaral Santos5 , como “provas sem denominação”.
As presunções e os indícios são também conhecidos como prova indireta, pois, enquanto os outros meios de prova fornecem ao juiz a idéia objetiva do fato que se quer provar, na presunção, os fatos afirmados pela parte não se referem ao fato probando, mas a um outro fato ordinário (do que comumente acontece), não constante, que com ele se relaciona, e de cujo conhecimento, através de um raciocínio lógico, atrai a conclusão em relação ao primeiro.
Ensina Moacyr Amaral6 que, “nesse caso, o juiz conhecerá o fato probando indiretamente. Tendo como ponto de partida o fato conhecido, caminha o juiz, por via do raciocínio e guiado pela experiência, ao fato por provar”.
Em síntese, a estrutura desse raciocínio é a do silogismo, no qual a premissa menor será o fato conhecido e a premissa maior será uma verdade contida num fato auxiliar, isto é, compreende um conceito geral a que se chega pela experiência do que ordinariamente acontece. Assim, se um fato existe realmente, em face do que comumente acontece, também existirá o fato que se deseja provar.
Em hipóteses tais, quando na base do silogismo se chega a um fato que ordinariamente acontece, da conclusão se autoriza que se extraia uma presunção – “o fato presumido é uma conseqüência verossímil do fato conhecido”7 .
As presunções legais e as ficções jurídicas, embora possuam um elemento comum - serem ambas concepções da lei - não se confundem ; enquanto a primeira decorre de um raciocínio sugerido pelo ordenamento legal, a segunda se assenta em disposição jurídica por força da qual se aceita como verdadeira uma coisa que não o é.
As presunções classificam-se em simples ou legais, conforme seja o juiz que as estabelece, ou o legislador que as consagra num preceito legal.
Para que uma presunção seja enquadrada como legal, e estabelecida como verdade legal, a condição é que esteja expressamente prevista na lei, podendo, porém, sua eficácia probatória estar classificada de acordo com a admissão ou não de prova em contrário.
Na presunção absoluta (“praesumptionis iuris et iuri”), a parte invocadora da presunção não está obrigada a provar o fato presumido, mas sim, o fato no qual a lei se assenta, não admitindo qualquer prova em contrário.
A presunção relativa (“praesumptionis iures tantum”) é aquela que a lei estabelece como verdade até prova em contrário. O fato presumido é havido como verdadeiro, salvo se a ele opuser prova em contrário.
Como a presunção de veracidade dos atos administrativos decorre do princípio da legalidade, previsto no “caput”, do art. 37 da Constituição Federal, que admite prova em contrário, esta deve ser considerada, para efeitos processuais, uma presunção legal relativa. Portanto, um meio de prova válido no processo.
Embora, de acordo com o artigo 334, IV do CPC, não dependam de provas os fatos: “IV- em cujo favor milita presunção legal de existência ou veracidade”, não significa dizer, que a parte que tem a presunção legal militando em seu favor nada precisa provar.
Na lição de Amaral Santos, citado por Manoel Antônio Teixeira Filho8 , “quem chama em seu favor uma presunção ‘deverá necessariamente demonstrar que está na situação de poder invocá-la’”. Em outras palavras: não basta alegar a presunção, mister se faz que a parte comprove a existência dessa presunção em seu favor.
No caso de ente público, como a presunção de veracidade é um atributo do ato administrativo, é indispensável a demonstração não só da personalidade pública do órgão envolvido, como também da existência de um ato administrativo apto a atrair a presunção a seu favor.
Abrangência da presunção de veracidade dos atos administrativos nos documentos públicos
É relevante frisar que a demonstração de existência do ato administrativo, para incidência da presunção de veracidade, deverá, necessariamente, ser efetuada através da prova direta do fato indireto que seja conseqüência verossímil do fato presumido.
A partir de uma interpretação sistemática dos artigos 19, II da CF e 364 do CPC, acreditamos que o fato indireto somente pode ser comprovado através de documento público, posto que, somente este possui fé pública, apta a atrair a presunção de veracidade do ato administrativo.
Para a incidência da presunção de veracidade é irrelevante a classificação ou espécie do ato administrativo demonstrado no documento público, se unilateral ou bilateral, normativo ou enunciativo e etc, uma vez que, como já se disse, o atributo é do ato administrativo de modo geral, e não específico deste ou daquele ato administrativo.
Sobre o tema, Theotonio Negrão, em seu Código de Processo Civil, 29ª edição, Editora Saraiva, traz a seguinte nota ao artigo 364 do Estatuto Processual Civil:“Art. 364: 2. (...) O documento público merece fé, até prova em contrário, ainda que emanado da própria parte que o exibe (TFR – 6ª Turma, AC 104.446-MG, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 6.8.86, deram provimento parcial, v.u., DJU 4.9.86, p. 15.719, 2ª col., em.).”
Fale-se sobre documento público, mas, efetivamente, o que vem a ser documento público? Elucida Nelson Nery Jr. que “documentos públicos são escritos elaborados por oficial público sem o fito de servir de prova, mas podendo, eventualmente, assim ser utilizados”9 .
Teixeira Filho10 , no entanto, esclarece que “não se deve afirmar que o documento seja algo que ‘contenha escritos’; embora, no mais das vezes, tais escritos estejam presentes, a generalização dessa assertiva importaria em negar a qualidade de documento à fotografia (CPC, art. 385, parágrafos 1o. e 2o.) e outras peças...”
Comungamos do entendimento de Teixeira Filho, uma vez que, na atualidade, existem várias formas, publicamente disponíveis, de se documentar alguma coisa, que não, necessariamente, o escrito, como por exemplo, o uso de fotografias, os sistemas de dados informatizados, em forma de planilhas de pagamento, as micro-filmagens e etc., e não é por isso deixam de ser documentos.
O que torna um documento público é a sua autoria por um oficial público e não a sua forma (escrita, verbal, visual etc.)., por esta razão, o documento público necessariamente precisa estar assinado por oficial público, pois quem detém a fé pública não é o timbre oficial em si, e sim o oficial público que o elaborou.
Feitas essas considerações prévias sobre documentos públicos, passemos a analise da abrangência probatória da presunção de veracidade dos documentos públicos apresentados em juízo.
Segundo Theodoro Jr., “a presunção de veracidade acobertada pela fé pública do oficial só atinge os elementos de formação do ato e à autoria das declarações das partes, e não o conteúdo destas mesmas declarações”11 (nesse sentido: SANTOS, Moacyr e SILVA, Ovídio). Ousamos discordar parcialmente deste posicionamento, por entender que, se o documento for público e decorrente de um ato administrativo de manifestação, mesmo que unilateral, da Administração Pública, então o conteúdo também deve ser considerado verdadeiro, o que já não ocorre em relação ao conteúdo da declaração das partes.
Tratam-se de duas hipóteses distintas, que, por suas peculiaridades, não podem ser generalizadas. De um lado tem-se o documento público, formado a partir de uma manifestação da Administração, e, do outro, tem-se também um documento público, porém, formado a partir da declaração de particulares na presença do tabelião. No segundo, não há dúvida de que o conteúdo não está abrangido pela presunção de veracidade, pois o conteúdo da declaração não emana do oficial da Administração Pública. No primeiro, porém, como a manifestação é direta do Poder Público, efetuada através de agentes públicos, não há como se negar a veracidade do conteúdo.
É equivocado, a nosso ver, admitir como verdadeira somente a afirmação do oficial público que certifica, por exemplo, constar do banco de dados determinado pagamento, porém, deixar de considerar verdadeiro os valores lá lançados, posto que quem efetuou o lançamento daqueles valores também era um agente público. Isso significaria criar duas espécies de agentes públicos: uns dotados de fé pública; e outros, dela despidos; em clara ofensa ao disposto no art. 19, II, da Constituição Federal e art. 364 do Estatuto Processual Civil.
Nesse sentido tem caminhado a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça: “As planilhas de pagamento da DATAPREV assinadas por funcionário autárquico constituem documento público, cuja veracidade é presumida." (REsp 183.669) O documento público merece fé até prova em contrário. Recurso que merece ser conhecido e provido para excluir da liquidação as parcelas constantes da planilha, apresentada pelo INSS e não impugnada eficazmente pela parte ex-adversa, prosseguindo a execução por eventual saldo remanescente. Embargos conhecidos e acolhidos”12 .
Conclusão
Existindo no mundo jurídico um ato administrativo comprovado por documento público, passa a militar em favor do ente público a presunção de legitimidade e veracidade do cumprimento do ato documentado.
Como prerrogativa inerente ao Poder Público, presente em todos os atos do Estado, a presunção de veracidade subsistirá no processo civil como meio de prova hábil a comprovar as alegações do ente público, cabendo a parte adversa demonstrar, em concreto, o não cumprimento, por se tratar de uma presunção relativa. Assim, havendo um documento público com presunção de veracidade, não impugnado eficazmente pela parte contrária, o desfecho há de ser em favor desta presunção.
Alguns juristas como Egas Moniz de Aragão e João Carlos Pestana de Aguiar, citados por Ovídio Batista da Silva13 , entendem que como no sistema jurídico brasileiro os documentos públicos não tem eficácia de “prova plena”, estes não são capazes de vincular incondicionalmente o julgador à sua força probante, de modo que, independentemente de argüição de falsidade do documento a ser suscitada pelo litigante interessado em impugnar sua veracidade, poderiam os juízes brasileiros avaliar livremente a força probante do documento público, segundo o critério indicado pelo art. 131 do CPC (em sentido contrário, porém, THEODORO JR., ob citada, págs. 454/455, e, DINAMARCO, ob. citada, págs. 105/107)Notas de rodapé convertidas em notas de fim e referências
1 Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1999.
2 Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995
3 A atual posição majoritária do Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos proferidos nos processos: HC 72.588-PB, relatado pelo Ministro Maurício Corrêa, e, HC 73.351-SP, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão – Informativo SFT 30 -, entende que a prova ilícita originária contamina as demais provas dela decorrentes, de acordo com a doutrina do “fruits of the poisonous tree” (fruto da árvore envenenada).
4 Ressalve-se, em relação à presunção, o posicionamento de Cândido Rangel Dinamarco – Instituições de direito processual civil – Volume III. São Paulo: Malheiros, 2002, págs. 124/125 - que considera que “nenhuma presunção é meio de prova”, pois se constituem processos de raciocínio dedutivo que levam a concluir que um fato aconteceu, quando se sabe que outro haja acontecido; e Teixeira Filho.
5 Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – 2o. Volume, São Paulo: Saraiva, 1995.
6 SANTOS. Moacyr Amaral dos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil...
7 Ibidem
8 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. A prova no processo do trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1994, pág. 51.
9 Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2001- 5a. Edição, pág. 844
10 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. A prova ..., pág. 264
11 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Volume 1. Rio de Janeiro: Forense, 1998, pág. 446.
12 ERESP 265552/RN - EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO ESPECIAL 2000/0129298-6. – Relator: Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, publicado no DJ de 18.06.2001.
13 SILVA, Ovídio A Baptista. Curso de Processo Civil – Volume I. São Paulo: RT, 1998, pág. 383.
Fonte: Cedido pela autora via online
Revista Jus Vigilantibus, Segunda-feira, 27 de outubro de 2003
Fonte: http://jusvi.com/artigos/668