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O relatório final de inquérito policial como promoção do devido processo legal

Agenda 11/09/2022 às 18:35

O presente trabalho tem por escopo demonstrar a importância do ato elaborado pelo delegado de polícia que conclui o inquérito policial após o encerramento de todas as diligências efetuadas no curso do inquérito policial e sob a presidência deste, funcionando como verdadeiro instrumento garantidor do devido processo legal constitucional.

Inicialmente cumpre destacar que o inquérito policial, conforme Guilherme de Souza Nucci (2016) conceitua, é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria.

A partir da prática de uma conduta tida como ilícita nasce para o Estado um poder-dever de punir. Entretanto, este poder dever se materializa inicialmente mediante uma investigação preliminar que é levada a efeito por meio do inquérito policial, além de outros procedimentos de apuração.

Neste contexto encontramos a previsão constitucional do devido processo legal encartado no artigo 5° inciso LIV da nossa Bíblia Política:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Não podemos olvidar que existem outros procedimentos para apuração, podendo citar o termo circunstanciado de ocorrência em crimes de menor potencial ofensivo (artigo 98 da CRFB e Lei 9099/95), boletim de ocorrência circunstanciado (artigo 173 Parágrafo Único da Lei 8069/90), inquérito policial militar em casos de crimes militares entre outros.

Desta feita, a partir da prática de um ilícito penal, surge a necessidade de ser iniciada uma apuração das circunstâncias, autoria e materialidade.

Iniciada a apuração por intermédio do inquérito policial são realizadas diversas diligências com vistas a reconstruir o fato pretérito e assim buscar uma verdade possível, construída dentro dos parâmetros legais no contexto do Estado Democrático de Direito.

Neste contexto, na investigação preliminar, anterior a própria fase processual, desde já ocorre a aplicação do princípio tão importante e caro do devido processo legal.

Para exercer o direito de punir, o Estado deve submeter-se a regras e princípios para a concretização deste poder-dever, sendo de observância obrigatória e imprescindível sob pena de nulidade de todos os atos praticados.

O preceito constitucional que se extrai do princípio do devido processo legal confere a todo indivíduo, o direito fundamental a um processo justo, devido, que se observam as regras, garantindo ao investigado/acusado/réu o contraditório e ampla defesa, sendo tratando como sujeito de direitos.

Ainda hoje há vozes que acreditam e propalam que o inquérito policial se presta somente a reunir indícios de autoria e materialidade para subsidiar a futura ação penal a ser proposta pelo orgão acusador e de maneira simplista e por vezes jocosa falam sobre sua dispensabilidade.

De maneira nenhuma, o inquérito policial tem e nunca teve apenas a função de reunir indícios de autoria e materialidade da infração penal, mas de apurar determinado fato tido como ilícito, de forma imparcial, evitando que um inocente seja alvo de uma acusação precipitada e injusta.

Nesta direção ensina HOFFMAN (2020, pág 31):

Além da função preparatória, de amparar eventual denúncia com elementos que constituam justa causa, existe a função preservadora, de garantia de direitos fundamentais não somente de vítimas e testemunhas, mas do próprio investigado, evitando acusações temerárias ao possibilitar o arquivamento de imputações infundadas. Assim, além de a função preparatória não ser a única, ela sequer é a mais importante

SANINI (2021, pág 21) compartilha do mesmo entendimento:

Por isso, pode-se dizer que o inquérito policial funciona como um filtro processual, evitando que acusações infundadas cheguem até a fase do processo.

A própria exposição de motivos do Código de Processo Penal da década de 1940 sustenta referida premissa:

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Preliminarmente, a sua adoção entre nós, na atualidade, seria incompatível com o critério de unidade da lei processual. Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.

De suma importância retratar que a quase totalidade das ações penais tem início com suporte único e exclusivo dos elementos de convicção carreados pelo inquérito policial.

Destacada a importância da investigação preliminar levada a efeito pelo inquérito policial e sua imediata correlação com o princípio do devido processo legal, devemos mencionar a realização das diversas diligências para elucidação do fato, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, até que chega o momento de encerrar o feito e a autoridade policial elaborar o relatório final para remessa ao juízo.

A referida peça encontra previsão no artigo 10 §1° do CPP:

Art. 10.  O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.

§ 1o  A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.

O momento destinado a produção do relatório encerra todos os atos praticados pela Polícia Judiciária e demonstra a convicção da autoridade policial que de forma fundamentada expõe a conclusão.

Nesta fase são apontadas todas as diligências que foram encetadas, a tipificação legal atribuída ao fato, de forma preliminar, o indiciamento ou não do investigado e são deduzidas todas as questões legais atinentes ao caso concreto.

No relatório é produzido todo o relato do apurado, narrando em ordem cronológica os elementos de convicção amealhados, reconstruindo o fato objeto da apuração.

Neste momento manifesta-se de forma clara e latente as funções do inquérito policial: preparatória ao reunir indícios de autoria e materialidade para a propositura da ação penal ou preservadora evitando juízos açodados e temerários que possam levar um inocente ao banco dos réus.

Neste particular, assim como na visão reducionista sobre a unidirecionalidade do inquérito policial, mais uma vez algumas vozes tentam menosprezar a elaboração do relatório policial a cargo do delegado de polícia sob o argumento de que deve a autoridade policial apenas referenciar as diligências concretizadas sem fazer qualquer tipo de juízo de valor.

Referida premissa não se sustenta no contexto do Estado Democrático de Direito materializada pela atuação da autoridade policial ao fim do inquérito policial.

A Lei 12.830/2013, em seu artigo 2°, afirma:

Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Ora se cabe ao delegado de polícia conduzir a investigação policial para apurar o fato tido como violador do direito não se pode negar que ao final dos atos realizados seja elaborado o relatório com a conclusão a que chegou o presidente do ato.

Neste diapasão, o delegado de polícia não deve apenas se contentar em referenciar as peças produzidas, mas como operador do direito, com formação jurídica e de acordo com a prescrição legal deve fundamentar o ato e expor as razões que o levaram a indiciar alguém ou se convencer de que não há elementos de convicção para referido desiderato.

Buscar manietar a ação de elaboração do relatório final fere frontalmente o devido processo legal e relega a segundo plano um ato de suma importância.

A própria palavra minucioso tem como significado: Que está repleto de detalhes; que foi narrado detalhadamente, diz-se da pessoa que se atenta aos detalhes em tudo o que faz; detalhista.Que realiza tudo com apuro, atenção ou cuidado; cuidadoso.

Basta citar que no relatório final a autoridade policial, após fazer uma análise de todo o material produzido, faz e assim deve proceder um juízo de valor sobre o indiciamento ou não do investigado.

O indiciamento, com previsão no artigo 2° §6° da Lei 12830/2013, é o ato de indicar/atribuir ao final da investigação que diante dos elementos coligidos aos autos a autoria do fato típico, ilícito e culpável ao investigado.

Referida decisão deve ser fundamentada, como todos os atos administrativos, e consta no relatório final, mesmo sendo desejável a elaboração de uma peça específica de indiciamento.

Neste ponto, igualmente são analisadas diversas questões jurídicas como a prescrição, decadência, aplicação do princípio da insignificância, a ocorrência de excludentes de ilicitude e de culpabilidade.

Não raro, ao término da investigação, a autoridade policial se convence da necessidade de ser feita uma representação por medida cautelar de prisão preventiva em desfavor do investigado e citada representação fará parte do relatório conclusivo.

Outrossim, no relatório final pode restar demonstrado que a atuação do investigado se deu em uma das hipóteses de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade.

O que diremos pois do reconhecimento da incidência do princípio da insignificância?

O cargo de delegado de polícia é de natureza jurídica, assim como as demais carreiras que compõem o sistema de justiça criminal, não existindo qualquer tipo de subordinação entre este com o orgão acusador, o juízo ou a defesa.

Basta salientar que a conclusão da autoridade policial não atrapalha e tampouco vincula o Ministério Público que pode discordar da posição adotada, assim como o juiz pode discordar da posição adotada pelo membro do Parquet.

Referidas ações são legítimas e previstas em lei sempre tendo como objetivo a promoção do devido processo legal e da justiça.

A atuação do delegado de polícia é de suma importância no contexto da persecução penal e por muitos anos a carreira foi visto de forma simplista e reducionista por outros operadores do direito.

Neste ponto de bom alvitre recordar as palavras do ministro Celso de Mello quando diz que o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da Justiça (STFHC 84.548, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 21/06/2012).

NUCCI afirma: O delegado de polícia é o primeiro juiz do fato típico, sendo Bacharel em Direito, concursado, tem perfeita autonomia para deixar de lavrar a prisão em flagrante se constatar a insignificância do fato, ou, se já deu início a lavratura do auto, pode deixar de recolher ao cárcere o detido. Lavra a ocorrência, enviado ao juiz e ao Ministério Público para avaliação final, acerca da existência - ou  não - da tipicidade (NUCCI, 2015, p. 545).

A autoridade policial pode e deve elaborar o relatório final com vistas a concluir a investigação, expressando sua convicção e efetuando a análise jurídica emitindo um juízo de valor.

Conclusão

Resta clara e cristalina a importância do relatório final de inquérito policial como peça que encerra a investigação preliminar, estando umbilicalmente ligado ao princípio do devido processo legal e sua existência jamais pode ser ignorada e desprezada.

O princípio do devido processo legal começa a ser aplicado desde a investigação criminal e está enraizado no inquérito policial e perpassa pela elaboração do relatório final.

A autoridade policial, após conduzir todos os trabalhos investigativos com o descortinamento dos fatos, tem como ponto alto o encerramento do feito com o relatório final.

Conforme exposto em linhas anteriores, no momento da elaboração do relatório conclusivo, o delegado de polícia chega à conclusão de que todas as diligências apropriadas ao fato em apuração foram efetuadas permitindo assim o seu convencimento.

Negar a importância do relatório final e querer subtrair da autoridade policial a formação de seu convencimento e emissão de juízo de valor de tudo o que foi apurado é negar o devido processo legal e enfraquecer a atuação da Polícia Judiciária.

Referências Bibliográficas:

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal  12ª ed. rev., atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Forense, 2015.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 10 de set. 2022.

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STFHC 84.548, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 21/06/2012

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HOFFMAN, Henrique. Temas avançados de Polícia Judiciária 4 ed. rev., atual. e ampl - Salvador, BA: Juspodivm, 2020.

SANINI, Francisco. Delegado de Polícia e o Direito Criminal - Leme, SP: Mizuno, 2021.

CAPARROZ, Edmar Rogério Dias. Relatório Final de Inquérito Policial (in) conclusivo. Jus.com.br. Disponível em: https://jus.com.br/imprimir/34327/relatorio-final-de-inquerito-policial-in-conclusivo. Acesso em 11 de set. 2022.

CARVALHO, Tristão Antônio Borborema de; JÚNIOR LEITÃO, Joaquim. O relatório conclusivo de investigação policial pelo delegado e seu valor probatórioRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6582, 9 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91379. Acesso em: 11 set. 2022.

GARCEZ, Willian. O Direito Criminal, o Delegado de Polícia e o Estado Democrático de Direito. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/o-direito-criminal-o-delegado-de-policia-e-o-estado-democratico-de-direito. Acesso em 10 de set. 2022.

Sobre o autor
Felipe Gonçalves Martins

Delegado de Polícia do Estado do Paraná. Ex-Delegado de Polícia do Estado do Acre. Ex-inspetor de Polícia do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Graduado em Direito Penal e Criminal pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Única (MG). Pós-Graduado em Direito Administrativo pela Faculdade Única (MG). Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (RJ). Graduado em Teologia pela Universidade Unicesumar (PR).

Informações sobre o texto

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