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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

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Agenda 14/09/2022 às 09:38

3.O CONCEITO DECOLONIAL DE QUILOMBO NA ADI 3239

Se, no capítulo anterior, o foco se dirigiu aos discursos presentes na ADI 3239 que expressam ou manifestam a colonialidade do poder, do saber e do ser, neste, o cerne é a discussão dos aspectos que representam a decolonialidade ou giro decolonial, que conduziram à produção do resultado da declaração de constitucionalidade do decreto regulamentador do art. 68 do ADC da CF/88 .

Portanto, é nas falas que defendem a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 que se pode encontrar tal giro decolonial. Emerge desses discursos a percepção de que o fim do colonialismo ou mesmo o fim do regime escravocrata em terras brasileiras não representou o fim da coisificação e da desumanização de homens e de mulheres afrodescendentes. Ao contrário, a esses ainda lhes cabem papéis e lugares sociais definidos pelos colonizadores europeus.

Porém, perceber-se-á que o giro decolonial não se resume apenas a isso. Ao contrário, materializa-se no entendimento de que cabe exclusivamente aos membros da comunidade atribuir-se a identidade quilombola, valorizando a narrativa de homens negros e de mulheres negras, desprestigiada e ocultada pela colonialidade.

Do mesmo modo, verificar-se-á que há decolonialidade quando afirmam que a utilização da territorialidade, como marco identificador das terras quilombolas, é constitucional, pois esse critério possibilita o enegrecimento de maior parcela do solo brasileiro, além de criar condições para efetivar o sentimento de pertencimento à nação brasileira por parte de afrodescendentes como materialização do conceito de liberdade como já referido.

Tais leituras foram possíveis, como se verá, porque, em alguns momentos, se adotou no seio da ADI 3239 uma perspectiva decolonial de quilombo na qual se abandona a visão de que tal fenômeno é próprio e exclusivo do sistema escravocrata para considerá-lo como todo mecanismo de resistência à coisificação e à desumanização de negros e de negras. Entra em cena, portanto, a hermenêutica decolonial do fenômeno social quilombola.

O itinerário discursivo apresentado nesta seção inicia-se com a apresentação da ideia de decolonialidade como a visão de mundos das pessoas inferiorizadas no projeto de europeização do mundo, para, em seguida, descrever a resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e como ela se expressa no novo constitucionalismo latino-americano. No fim deste percurso, faz-se uma reflexão sobre as categorias levantadas e localizadas nos discursos decoloniais.

3.1A decolonialidade: uma visão de mundo dos colonizados

Castro-Gomez e Grosfoguel (2007) defendem que o uso da categoria decolonialidade desconstrói o pensamento de que o fim da administração colonial de Portugal e Espanha na América Latina gerou Estados-nação descolonizados. Ao contrário, afirmam estes autores, negativa se sobressai, uma vez que o eurocentrismo, a divisão racial do trabalho, pensada a partir da hierarquização étnico-racial, forjados durante a expansão colonial europeia na América Latina, ainda perduram, mesmo com o fim do colonialismo.

Um dos mais poderosos mitos do século XX foi a noção de que a eliminação das administrações coloniais conduzia à descolonização do mundo, o que originou o mito de um mundo “pós-colonial”. As múltiplas e heterogêneas estruturas globais, implantadas durante um período de 450 anos, não se evaporaram juntamente com a descolonização jurídico-política da periferia ao longo dos últimos 50 anos. Continuamos a viver sob a mesma “matriz de poder colonial”. Com a descolonização jurídico-política saímos de um período de “colonialismo global” para entrar num período de “colonialidade global”. (GROSFOGUEL, 2008, p. 126).

O termo colonialidade perpassa a noção, então, de que o processo de independência não provocou uma fissura ou uma descontinuidade histórica entre o período colonial e a época atual. Já que, formalmente, desmontaram-se os instrumentos e as estruturas de domínios econômico-político e jurídico-administrativo, mantendo-se, todavia, incólume, inclusive a dimensão epistêmica que dava vida às instituições coloniais.

Ou seja, além de o colonialismo ter deixado como herança desigualdade e injustiça social profundas, as colônias herdaram um legado epistemológico e ontológico do eurocentrismo “[...] que nos impede [até os dias atuais] de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhe são próprias” (PORTO- GONÇALVES, 2005, 10).

Grosfoguel (2008) defende que a colonialidade do poder “[...] reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes”. É preciso lembrar que esses colonizadores brancos não retornaram para a Europa com o fim do colonialismo. Continuam colonizando, alicerçados na colonialidade do poder.

A decolonialidade, pois, possibilita entender como as formas coloniais de dominação/exploração do branco europeu em relação às negras e aos negros africanos e a seus descendentes continuam praticamente imaculadas, mesmo após o fim das administrações coloniais. “De este modo, la estructuras de larga duración formadas durante los siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante em el presente28” (CASTRO-GOMÉZ e GROFOSGUEL, 2007, p. 14). Decolonizar é, pois, desmantelar essas estruturas, ou, pelo menos, perceber que elas se mantêm praticamente intactas.

La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias españolas y seguida en el siglo XX por las colonias inglesas y francesas) fue incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de las periferias. En cambio, la segunda descolonialización – a la cual nosostos aludimos com la categoria decolonialidade – tendrá que dirigirse a la heterarquía de la múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas.29 (CASTRO-GOMÉZ; GROFOSGUEL, 2007, p. 14).

Portanto, a decolonização se propõe a concluir a tarefa iniciada pela descolonização que se limitou ao plano jurídico-político, sem alterar as instituições que se encontram no controle do trabalho, do sexo, da autoridade e da subjetividade (QUIJANO, 2005). O sociólogo peruano pontua que as estruturas de cada âmbito da existência social estão sob a hegemonia de uma instituição produzida dentro do processo de formação e desenvolvimento da colonialidade do poder.

Assim, no controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, está a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e produtos, a família burguesa; no controle da autoridade, de seus recursos e produtos, o Estado-nação; no controle da intersubjetividade, o eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 241-242).

Para decolonizar este “piso básico de práticas sociais comuns” (QUIJANO, 2005, p. 242), estabelecendo uma nova orientação valorativa da vivência humana, Castro-Gomes e Grofosguel (2007) entendem que há necessidade de se construir novos conceitos e nova linguagem, e que isto só é possível caso se firme um diálogo com formas não ocidentais de conhecimento e com novas formas de teoria da complexidade.

[...] La idea de decolonialidad tiende a mostrar el carácter explicitamente colonial de la modernidade. Es decir, que si queremos transitar hacia um proyecto distinto del la modernidade, lo que se deduce de esta reflexión es que no podemos partir ingenuamente del marco categorial del pensamento moderno, por que éste está contenido explicitamente su carácter colonial o colonizador.30 (SEGALÉS, 2014, p. 72).

A decolonialidade se propõe a apresentar novos valores, novos modelos, e, principalmente, novas definições do que é existência humana, escusando-se de, por exemplo, copiar simplesmente o receituário colonial ditado pela Europa e pelos Estados Unidos, emergindo disso tudo uma “alteridade epistêmica” (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 20).

Essa alteridade epistêmica se formula na intersecção entre o moderno e o tradicional, permitindo uma análise crítica da modernidade a partir de “[...] las experiencias geopolíticas y las memorias de la colonialidade31” (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 20), incorporando o conhecimento dos colonizados ignorados pela colonialidade do poder aos processos de produção e valoração do conhecimento.

Em efecto, la ciencia social contemporânea no ha encontrado aún la forma de incorporar el conocimiento subalterno a los processos de producción de conocimiento. Sin esto no puede haber decolonizácion alguna del conocimiento ni utopopía más allá del occidentalismo. La complicidad de las ciencias sociales com la colonialidade del poder exige la emergencia de nuevos lugares institucionales desde onde los subalternos puedan hablar y ser escuchados.32 (CASTRO-GOMES; GROFOSGUEL, 2007, p. 21).

A decolonialidade, ao tempo em que desmascara a cumplicidade das ciências sociais com a colonialidade, empresta à vida significados diferentes a fim de que surjam novos lugares institucionais de onde os colonizados possam falar e ser escutados. A título de exemplo, cita-se a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), fundada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2005, localizada no município de Guarema, São Paulo, Brasil.

A incorporação do conhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras sem-terra aos processos de produção de conhecimento afronta a modernidade, sistema (WALLERSTEIN, 1992) calcado em um conhecimento que se diz universal, mascara não só aquele que fala como também o lugar a partir do qual o sujeito se pronuncia.

La última característica, aunque la no menos importante del paquete de la modernidad, fue el universalismo: creer que los valores que descubrimos, los valores que anhelamos y los derechos que tenemos, pertenecen a todas las personas sin excepción y sin que implique pasar por un rito de ingreso (como pertenecer a algún credo o patrimonio genético determinado). Esta fue una idea muy liberadora que le ofrecía a todo el mundo acceso a la vida en sociedad. Pero, por otra parte, fue una visión sofocante e imperialista, que proporciono a quienes detentaban el poder la justificación para imponer a los débiles su forma de organizar la vida a nombre de los valores universales33 (WALLERSTEIN, 1992, p. 5).

Não se trata, porém, de rejeitar simplesmente a modernidade que carrega consigo o ideário de igualdade, de fraternidade e liberdade, mas de se construir uma visão de mundo a partir das cosmologias e das epistemologias de mulheres negras e de homens negros, oprimidos, oprimidas, explorados, exploradas pela colonialidade do poder, com o intuito de superar a racionalidade eurocentrada (GROSFOGUEL, 2008) que trama contra quem tem a pele mais escura.

Segalés aponta que nos países colonizados os subalternos orientam-se por visões de mundo contrárias às suas vivências. Isto é, raciocinam com ideias que se mostram verdadeiros e intransponíveis obstáculos aos seus projetos de vida. Disso surge uma contradição ontológica: não é o que quer ser, porque pensa a partir do que não é.

[...] és decir, descubrimos la autocontradicción cuando nos damos cuenta de que razonamos com ideas, conceptos, ideologias, teorias, lógicas y hasta teologias contrários a nuestros proyectos, y de que, cuando intentamos salir de esta autocontradicción, entramos em contradicción con lo que éramos y qye aún em parte somos y que ya no queremos ser.34 (SEGALÉS, 2014, p. 74).

Por isso, o pensamento decolonial orienta a adoção de outra racionalidade distinta e contraposta à razão eurocentrada, já que os negros e as negras na América Latina percorreram e percorrem uma outra trilha histórica, com desejos e angústias distintos dos colonizadores brancos. Além do fato de o projeto da modernidade maquinar contra mulheres e homens subalternizados.

Conforme Segalés (2014), a modernidade ocidental continua destruindo as fontes a partir das quais é possível produzir e reproduzir qualquer forma de vida: a natureza e o trabalho humano. No pensamento moderno, a natureza aparece como objeto e seres humanos são coisificados.

Além disso, a técnica e a ciência na modernidade encontram-se a serviço de um desenvolvimento que privilegia o acúmulo de capital em detrimento da vida.

Pero ahora sabemos que tanto a idea de desarrollo como las de economia, racionalidad y ciencia que ha producido la modernidade son irracionales, porque tiende ella hacia el socavamiento de las condiciones de possibilidade de sí misma y de la vida en cuanto tal. Por esto es irracional, porque tiende hacia la muerte y no hacia la vida. 35 (SEGALÉS, 2014, p. 277).

Assim, o projeto decolonial, sob pena de resultar infrutífero ou até mesmo de fortalecer a colonialidade do poder, não pode abrigar simplesmente outras formas de construção do conhecimento, mas deve, sobretudo, propor e se organizar para que haja a implementação de outras políticas, orientadas por esse conhecimento decolonizado, e, a partir daí, garantir um desenvolvimento que não esteja pautado na destruição da natureza e na desumanização de negros e de negras.

Pues bien, lo que sigue, entonces, a la descripción de la colonialidad de la modernidad es su descolonización, primeramente en términos cognitivos, para desde ella fundar no sólo otra forma de construir conocimiento, sino también para definir políticas posibles otras a partir de este otro conocimiento. De ahí que, como en Zemelman, la relación entre lo político y lo epistemológico se torne aquí fundamental. No percibir esta relación es un síntoma de que la colonialidad del conocimiento de la modernidad sigue operando de modo eficiente en procesos que supuestamente tienen una intencionalidad explícita de descolonización.36 (SEGALÉS, 2014, p. 72).

Segundo este filósofo boliviano (2014), não perceber a relação entre o político e o epistemológico significa manter inalteráveis os empreendimentos de subalternização e de desumanização de negros e de negras, ainda que se vislumbre a intencionalidade explícita de decolonialidade. Maldonado-Torres (2009, p. 69) assevera que “Se trata de la articulación precisa de la razon des-colonial cuya finalidade primordial no es solanamente el cambio em métodos de conocimiento, sino tambíen el cambio social”37. É preciso, pois, decolonizar o direito brasileiro.

Nesse sentido, Walsh (2015) afirma que mesmo após o fim do colonialismo na América Latina, perduram, ainda, as estruturas que lhe davam suporte, incluindo a “[...] estructura jurídica y constitucional” (WALSH, 2015, p. 345). Se o Estado colonial era o único legitimado a produzir o direito, negando a existência de outras concepções de direito e de justiça, o direito contemporâneo brasileiro encontra-se alicerçado na mesma lógica do monismo estatal.

Para Walsh (2015, p. 347),

Así a partir de este mismo patrón [colonialidad] se estableció el eurocentrismo como perspectiva única de conocimiento, justificó la esclavización y deshumanización y descarto como bárbaros, salvajes y no modernos (ler: subdesarrolados y “tradicionales” las filosofias, cosmologias, lógicas y sistemas de vida de la gran mayoría: los pueblos indígenas e y los pueblos de origem africano Esta matriz o patrón – que siempre ha servido los interesses y necessidades del capitalismo – hace que la mirada se fija em Europa como modelo, perspectiva y modernidade ideal.

Y es a partir de esta mirada – aun presente – que se formó los Estados nacionales y, por supuesto, sus sistemas jurídicos38.

Portanto, para decolonizar o direito brasileiro, pelos menos em sua dimensão epistêmica, faz-se necessário aprender a dialogar com outras perspectivas de conhecimento, que não aquelas advindas da Europa. Beber da doutrina e da jurisprudência dos países latino- americanos, africanos e daqueles que compõem o mundo oriental. Ampliar o leque do intercâmbio jurídico a fim de abarcar outras experiências, principalmente, daqueles povos que foram vítimas da colonização europeia.

É preciso, pois, desmantelar a colonialidade. Fazer do texto e da norma mecanismos que possibilitem superar a identidade negativa atribuída aos povos indígenas e afrodescendentes e as suas consequências danosas.

Assim, embora a Constituição atual reflita os interesses liberais burgueses, (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016), o artigo que garante às comunidades quilombolas a titulação das terras que ocupam representa uma pequena fenda decolonial no âmbito do direito colonizado brasileiro.

É possível fazer uma leitura decolonial de tal artigo, porque a sua inclusão na Constituição resultou de uma mobilização da comunidade negra que, ao mesmo tempo, valoriza os quilombos como instrumento de luta e de enfrentamento à desumanização de negros e de negras pelo colonialismo e pela colonialidade do poder. Houve, portanto, um giro decolonial.

El giro des-colonial se rifiere más bien, em primer lugar, a la percepción de que las formas de poder modernas han producido y ocultado la creación de tecnologias de la muerte que afectan de forma diferencial a distintas comunidades y sujetos. Este también se rifiere al reconocimiento de que la formas de poder coloniales son múltiples, y que tanto los conocimientos como la experiencia vivida de los sujetos que más han estado marcados por el proyecto de muerte y deshumanización modernos son altamente relevantes para entender las formas modernas de poder y para proveer alternativas a las mismas.39 (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66).

Desse modo, a experiência quilombola de resistência ao processo de desumanização de negros e de negras e dos mais miseráveis, sejam de pele mais clara ou mais escura, intentada pela colonialidade do poder, ganhou relevo em um país marcado por injustiça social crônica.

Não cabe, aqui, especificar quais os atores sociais, mulheres negras e homens negros, responsáveis por esse processo de resistência. Há aqueles e aquelas que lutam de forma organizada em movimentos sociais, partidos políticos ou mesmo religiões. Existem outros e outras que lutam silenciosamente pela sobrevivência diária e pelo respeito à cor negra dos corpos.

HOMO

Sua ração de vida o homem vê minguando a cada dia. Mas duro recomeça

como se o tempo lhe sobrasse. E vagaroso não conta as eras que se extinguem.

Nem conta a solidão dos dias claros

se desdobrando iguais como esquecidos de mudar. Nem a distância

que o grito não transpõe, a passagem da vida cumprida só em mínimos desejos.

Sua lástima no piar das nambus, sóbrio se esquiva às armadilhas da tarde.

A incerteza nos paióis, o chão batido em que levanta a casa, o amor

como água das cabaças.

Lavrador do milho e do feijão, sua frugal colheita em gleba alheia. Passa-lhe a ida,

e queima o céu com a cinza de suas roças. (DOBAL, 2001, p. 31).

Há uma grande possibilidade de que tal ser humano seja uma pessoa negra. A gleba que ocupa com suas roças, lavrando milho e feijão, repousa em uma territorialidade quilombola. O chão batido pelos passos dos seus avôs, avós, filhos e filhas marcam as veredas que indicam as trilhas de suas vidas. Naquele chão, homens negros e mulheres negras colhem da angústia a vida e a certeza da necessidade de recomeçar e de resistir.

Nesse processo de resistência, aprenderam a se esquivar das armadilhas orquestradas pela colonialidade. Negros e negras, independentemente das incertezas dos paióis e da ração minguada, continuam se aquilombando, lutando cotidianamente contra a desumanização.

É importante, pois, trazer à tona as narrativas desenvolvidas por Abdias Nascimento e Clóvis Moura sobre o fenômeno quilombola em que o aspecto da resistência negra à desumanização e à coisificação se sobressai sobre o aspecto da luta pela liberdade, bem como o novo constitucionalismo latino-americano, que incorporou nos textos constitucionais a resistência negra como garantia de direitos. Por isso, aqui, considerados e tratados como pensamentos decoloniais.

3.2A resistência quilombola como quilombismo, quilombagem e no novo constitucionalismo latino-americano

Nascimento destaca que as negras e os negros brasileiros encontram-se à margem da sociedade brasileira, ocupando a periferia política, econômica e social e que, se há uma igualdade jurídica entre os que possuem a pele mais escura e os de pele mais embranquecida, tal garantia nunca se materializa na realidade.

Excetuando os índios, o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador, durante três séculos e meio, a erguer as estruturas deste país chamado Brasil. Mas a despeito dessa realidade histórica inegável e incontraditável, os africanos e seus descendentes nunca foram e não são tratados como iguais pelos segmentos minoritários brancos que complementam o quadro democrático nacional. Estes têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional. (NASCIMENTO, 2016, p. 101).

Nesse mesmo sentido, Moura destaca:

O negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e Sul do Brasil, tem uma trajetória que bem demonstra os mecanismos de barragem étnica que foram estabelecidos historicamente contra ele na sociedade branca. Nele estão reproduzidas as estratégias de seleção estabelecidas para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privilegiados ou compensadores socialmente, para que as camadas brancas (étnica e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado e mantenham no presente o direito de ocupá-los. (MOURA, 1988, p. 8).

Se, em solo brasileiro, cabe aos brancos o monopólio do usufruto e do gerenciamento de bens e de pessoas, aos negros e às negras a colonialidade do poder lhes estabelece hierarquias e papéis que guardam similitude àqueles destinados às pessoas que pertencem a uma hierarquia inferiorizada pelo critério raça. É na periferia geográfica e social que a maior parte da comunidade negra se localiza.

É dessa realidade que não encontra na história brasileira qualquer momento de interrupção ou descontinuidade que surgiram e que irrompem as comunidades quilombolas. Não se tratava simplesmente de fugir para encontrar a liberdade, porém de resgatar a dignidade humana que a colonialidade lhes havia roubado com uso de força física e de grave ameaça (NASCIMENTO, 2009).

Os quilombos se estruturavam em formas associativas que tanto podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua organização social própria, como também assumiram modelos de organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. (NASCIMENTO, 2009, p. 202-203).

No intuito de resgatar a dignidade, de retomar à condição de humano, de fugir da coisificação que o direito lhes havia reduzido que os negros se aquilombaram. Como o colonialismo e a colonialidade do poder se utilizam de diversos instrumentos sociais para desumanizá-los, as negras e os negros encontram uma reposta peculiar a cada uma dessas miseráveis situações.

Mas nem tudo separava internamente essa população. Existem casos de solidariedade que atravessavam a linha de liberdade, os mais óbvios sendo os que se assentam no parentesco: mães pais resgatam filhos, amantes e esposos se resgatam mutuamente. Mas há também alguns exemplos de libertos que ajudam membros da mesma etnia a comprarem sua alforria. (CUNHA, 1986, p. 25).

A cooperação entre libertos e escravizados era um mecanismo que homens e mulheres negras encontravam para enfrentar a coisificação a que estavam submetidos. Erguer comunidades negras pode se enquadrar nessa rede coletiva de solidariedade.

Desse modo, os quilombos são formados por mulheres e homens que fogem da violência física e psicológica da colonialidade do poder que ousa tratá-los e vê-los como seres inferiores, embrenhando-se em redes de solidariedade e de afirmação de antigos e novos valores que lhes fornecem um pequeno sopro da dimensão de seres humanos.

Genuínos focos de resistência física e cultural. Objetivamente, essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos revelados que conhecemos. (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

Nascimento (2009) afasta qualquer dúvida de que os quilombos não se reduzem às comunidades encravadas em algum lugar ermo, cercadas de paliçadas. Essas se traduzem apenas em uma espécie de quilombo. Há outras formas de resistência coletiva negra. A escola de samba é um quilombo. As gafieiras, com seus gingados, é um quilombo. Os terreiros, com seus santos, é um quilombo. É partir dessa concepção que Nascimento constrói a noção de quilombismo.

Porém tanto os permitidos quando os “ilegais” foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história. A este complexo de significações, a esta praxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo. (NASCIMENTO, 2009, p. 203).

O quilombismo de Abdias Nascimento engloba experiências coletivas de homens e mulheres negras na luta por dignidade. Não se trata, pois, de uma prática individual, porém que se objetiva de maneira grupal, solidária e fraterna.

Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sócio-político em termos de igualitarismo econômico. (NASCIMENTO, 2009, p. 205).

O quilombismo é uma prática atual de enfrentamento às tecnologias de desumanização e genocida da colonialidade do poder. Essas “sociedade[s] criativa[s]” (NASCIMENTO, 2009), as comunidades quilombolas, possuem, portanto, natureza decolonial, já que burlam ou deslegitimam “[...] idéias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados” (QUIJANO, 2005, p. 229).

O quilombismo buscou um ideal político de atuação dos negros [e das negras] assentado sobre seus próprios valores, já que na sociedade construída a participação destes só poderia se realizar mediante a assimilação dos valores culturais do branco e pelo branqueamento. (CARRIL, 2009, p. 183, grifo no original).

Portanto, é possível relacionar o quilombismo com a ideia de que ele des(ensina) negros e negras que foram educados sob a hegemonia do eurocentrismo (QUIJANO, 2009). Nascimento já havia detectado como a colonialidade do saber, envolta em sua falaciosa neutralidade, impede que se faça a leitura das desigualdades sociais brasileiras a partir da colonialidade do poder que as naturaliza, tendo a comunidade negra artífice da sua própria desgraça.

Agora devolvemos ao obstinado segmento “branco” da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo europeu, a lavagem cerebral que pretendia tirar a nossa humanidade, a nossa identidade, a nossa dignidade, a nossa liberdade. Proclamando a falência da colonização mental eurocentrista, celebramos o advento da libertação quilombista. (NASCIMENTO, 2009, p. 206).

As comunidades quilombolas brasileiras demonstram que o projeto de descolonização permanece inacabado, e que os elementos mais importantes do eurocentrismo continuam sendo cultivados e desenvolvidos pela colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). No entanto, representam um embrião de decolonização das relações sociais em que os negros e as negras se impõem política e identitariamente, porque se encontram organizados e porque possuem um solo onde podem cultivar seus modos de criar, de fazer e de viver.

Nascimento afirma que os quilombos dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX deixaram um patrimônio de resistência à opressão, trilhando por um caminho em que o ser humano é mais importante do que o acúmulo de capital. Por isso, “Cumpre aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade” (NASCIMENTO, 2009, p. 205).

É possível estabelecer a correlação de que o quilombismo é uma estratégia de resistência que se dirige à comunidade negra contemporânea, com atuação em forma de alerta para continuidade da colonialidade do poder, assenzalando negros e negras na periferia das cidades brasileiras.

Já a categoria quilombagem, de Clóvis Moura, é tratada como agente que provoca mudança social, ao questionar e ao enfrentar as estruturas da colonialidade do poder. Organizado e dirigido por mulheres e homens negros, ocupou todo o território nacional durante o escravismo brasileiro, atingindo, em algumas situações, os dias atuais.

A quilombagem não se restringe à formação de quilombos, abrigando “outras manifestações de protesto social” (MOURA, 1992, p. 23). A quilombagem engloba, pois, qualquer espécie de resistência, individual ou coletiva, à desumanização de negros e de negras.

Dessa forma, o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestação de rebeldia também se apresentassem, como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimento de protesto do escravo, tendo como centro organizacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia. (MOURA, 1992, p. 23).

O quilombo representa, pois, o elo entre todas as outras formas de resistência negra, sendo que, ao mesmo tempo em que influencia, é instigado por outros atos de repulsa de negros e de negras à colonialidade do poder. Essa constelação de movimento de protesto negro gira em torno do quilombo, e com sua força gravitacional influencia marés de revolta.

Na quilombagem, não cabe apenas negras e negros fugitivos, mas todos os marginalizados pela colonialidade. Fugitivos e perseguidos pelas instituições controladas ou produzidas pela colonialidade do poder.

Nele [quilombagem] se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas. (MOURA, 1992, p. 25).

A quilombagem restaura a dignidade daquelas e daqueles excluídos socialmente. A obtenção da humanidade vilipendiada se faz “[...] sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial” (MOURA, 1992, p. 22). Não há conciliação entre interesses tão díspares e contraditórios.

Moura (2014) afirma que as negras e os negros brasileiros transformaram as culturas africanas em uma cultura de resistência. Assim, em um ambiente assenzalado em que se falavam línguas e dialetos diferentes, para poderem ser compreendidos mutuamente, criaram um “dialeto das senzalas” (MOURA, 2014, p. 241, grifo no original). Hoje, nas periferias das grandes cidades, o rap serve como elo de comunicação de jovens negros marginalizados pela colonialidade do poder.

O quilombo representado pelo rap busca identificá-lo à periferia, aludindo a um território de liberdade de expressão, construído sobre um determinado código cultural que contemple sua forma de ser e de se manifestar os que foram excluídos pelo sistema. A idéia subjacente é a da segregação territorial, marcada pela territorialidade com seus próprios signos, que, dificilmente são compreendidos pela metrópole, pois são estranhos a ela. (CARRIL, 2009, p. 235, grifo no original).

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Se o colonialismo os impedia de falar, a colonialidade do poder os cala. Segregados, devem permanecer em silêncio. O rap, o samba, o funk, o reggae, porém, vocalizam rebeldia, quilombagem. Negros e negras falam o que lhes interessa e o que bem querem dizer.

Em todo esse espaço de tempo, ele não podia usar uma negação que contrariasse o que o grupo senhorial ordenava. Não podia dizer não. E é justamente essa contradição entre o pensamento do escravo e a sua verbalização programada coercitivamente que produz uma tensão permanente nele. A verbalização que extrapolasse do código de linguagem aprovado poderia ser considerada uma forma de rebeldia, indisciplina ou negligência. Ela era analisada dentro do julgamento global que se fazia da conduta do escravo. Isto pode ser comprovado nos anúncios de escravos fugidos em jornais da época, nos quais, entre as suas características identificadoras encontramos, quase sempre, a maneira como ele falava. Um detalhe importante que não escapava ao seu senhor. (MOURA, 2014, p. 264).

Coagidos, fustigados, homens negros e mulheres negras escravizadas eram obrigados a desenvolver fala e expressões corporais que denotassem submissão, sujeição, vassalagem. No entanto, por meio de manifestações coletivas através da palavra, da música e da dança, libertam-se do silêncio e dos nãos.

De acordo com Moura (1992), é no quilombo e nas demais manifestações da quilombagem que mulheres negras e homens negros marginalizados se recompõem socialmente. Leminski fala em “[...] genial gesto quilombola de defesa e resistência [...]”, o disfarce, a tradução dos orixás africanos “[...] sob as aparências legais dos santos católicos do hagiológio romano” (LEMINSKI, 2014, p. 34).

Como se percebe, não há uma longa distância entre o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura. Ambos entendem que o fenômeno quilombola se expressa de forma múltipla, diversa, adaptando-se às necessidades imediatas dos negros e das negras quilombolas e ao contexto social e histórico em que se encontram inseridos e inseridas.

Dessa forma, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 abriga o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura. Um genial gesto quilombola de defesa e resistência, nos dizeres do poeta.

Essa visão de mundo vem ancorada no novo constitucionalismo latino-americano que, pelo menos no texto legal, acolhe as vozes e as experiências dos colonizados.

Na América Latina, surgiu, nas últimas décadas, um constitucionalismo calcado em outros parâmetros. A expressão outros, aqui utilizada, deve-se ao fato de que durante a maior parte da história do constitucionalismo latino-americano, as normas, as teorias e as doutrinas construídas em instituições europeias e estadunidenses eram aceitas e propagadas como critérios de validade e atribuídas a elas ares de pensamento moderno que deveria ser seguido e venerado (BALDI, 2015).

A Constituição Brasileira de 1988 inaugura (WOLKMER, 2015), em solo latino- americano, um constitucionalismo que possui como um dos fundamentos a garantia de direitos a comunidades indígenas e afrodescendentes, inovando, principalmente, por adotar leve perspectiva de resistência, portanto, podendo ser relacionada com a discussão decolonial.

Isso porque, ao garantir às comunidades de quilombos a titularidade das terras das quais tenham a posse, provoca uma pequena fissura na colonialidade do poder. A uma, porque este artigo resulta das lutas e resistências de mulheres e homens negros; a duas, porque apresenta a possibilidade de se construírem categorias interpretativas da realidade a partir das experiências das comunidades negras; a três, porque revoga, ainda que tardiamente e de forma bastante tímida, a Lei das Terras.

Ademais, essa garantia constitucional demanda romper com os princípios da dominação colonial portuguesa, especialmente por dizer o oposto da legislação colonial: a tipificação de um ato como crime que passa a representar a concretização de um direito. Desse modo, exige uma perspectiva hermenêutica que também expresse o oposto daquela produzida pelo pensamento das autoridades coloniais em que os negros e as negras eram coisas, sob os quais se poderiam exercer o direito de posse e de propriedade.

Essa forma de pensar deixou como herança uma construção mental, calcada em relações de dominação e em uma racionalidade que tem como um dos eixos fundamentais a classificação dos indivíduos de acordo com a ideia de raça (QUIJAN0, 2005).

A ação judicial 3239, proposta pelo DEM, que vê inconstitucionalidade no Decreto 4.887/2003, indica que essa estrutura básica do colonialismo permanece praticamente intocável. Seria necessário, portanto, desvelar a colonialidade do poder sob a qual se estruturou o sistema jurídico brasileiro, e incidir na matriz colonial de poder que ainda se parece presente (WALSH, 2015).

Um conceito decolonial de quilombo trilha por uma episteme que compreende as comunidades quilombolas como a materialização de uma experiência de resistência à negação da coisificação de negros e de negras. E que as condições de miséria e a luta por identidade negra, por terra e por moradia forçam que mulheres e homens negros continuem forjando cotidianamente comunidades quilombolas.

Para tanto, a adoção dessa visão e uma correspondente leitura do texto constitucional possibilitaria a sua decolonização por inteiro, impedindo, em grande medida, que a propriedade privada se sobreponha sobre qualquer outro direito, inclusive à vida e à dignidade humana de homens e mulheres afrodescendentes.

Segundo Fajardo (2015), as constituições latino-americanas do século XXI descrevem, em seus textos, um projeto descolonizador. No nosso caso, embora a Constituição Federal seja do século passado, possui faceta decolonial, como bem se disse anteriormente. No entanto, a decolonialidade que o texto constitucional brasileiro imprime, muitas vezes, não guarda sintonia com a interpretação que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição40, lhe confere.

Como um caminho a seguir, a fim de evitar esta dubiedade, Baldi (2015) propõe que o STF se inspire na jurisprudência de cortes constitucionais latino-americanas, como, por exemplo, a colombiana, que possuem realidades históricas, culturais e sociais próximas da brasileira.

Outro tema que poderia ganhar densidade jurisprudencial distinta é o princípio da igualdade. O STF, durante muito tempo, como bem analisa Roger Raupp Rios, foi condescendente diante de “realidades discriminatórias e desoneração argumentativa perante tratamentos díspares”, tendo, nos últimos tempos, alterado posicionamento no sentido de “maior rigor em face de diferenciações e a emergência do conteúdo antidiscriminatório do princípio da igualdade”. Aqui, também, a Colômbia poderia ajudar: há mais de dez anos, tendo em vista a análise de direitos coletivos dos povos indígenas, a Corte vem entendendo que “sob o princípio da igualdade e na perspectiva de proteger a diversidade étnica e cultural do país é necessário, guardando simetrias legais, projetar simetricamente a outros grupos étnicos normas que garantam direitos coletivos para os povos indígenas” (Sentencia C-370/2002). E, neste sentido, estendeu-se, também com base na Convenção 169-OIT, o tratamento para as populações raizales e palenqueras daquele país e, hoje, as comunidades ciganas vêm peticionando junto à Corte o estabelecimento de uma política de habilitação diferenciada, que a legislação nacional reconhece apenas para indígenas e comunidades negras. (BALDI, 2015, p. 29).

Há, de fato, uma profunda submissão ao pensamento produzido por autores europeus e americanos e um desprezo às contribuições do pensamento jurídico latino-americano.

Essa leitura anoréxica e míope que o STF faz da Constituição Brasileira fortalece a tese de que os Estados latino-americanos se organizaram por intermédio de constituições que não ousaram desestruturar as instituições forjadas pela colonialidade do poder que impõem submissão/exploração de indígenas, de negras e de negros (FARJADO, 2015).

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, não obstante manter ainda certo perfil republicano liberal, analítico e monocultural, foi a mais avançada, relativamente a qualquer outro momento da história brasileira. Tal traço deve-se por haver ampliado a gama de direitos fundamentais (e suas garantias) e por ter inaugurado amplas perspectivas pluralistas em seus diferentes campos de ação, como o religioso, filosófico, político e cultural. (WOLKMER, 2015, p. 257-258).

Na verdade, podem-se encontrar alguns artigos na Constituição Brasileira que assinalam um projeto decolonial, porém, há outros que expressam a colonialidade do poder. Assim, para superar essas contradições e ambiguidades e concluir a decolonialidade das instituições jurídicas, requer uma hermenêutica que abrace o projeto decolonizador que a norma constitucional guarda nas suas entrelinhas.

Já a Constituição Venezuelana, de 1999, assinala Wolkmer (2015), de forma mais nítida que a brasileira, expressa o anticolonial, privilegiando o pluralismo político e a democracia participativa. Inova, por exemplo, ao dividir o Poder Público Nacional em cinco poderes: legislativo, executivo, judicial, eleitoral e cidadão.

Esse autor, no entanto, entende que a etapa mais representativa do novo constitucionalismo latino-americano é inaugurada pelas Constituições do Equador, no ano de 2008, e da Bolívia, em 2009. A primeira, a Constituição Equatoriana, introduz a natureza como sujeito de direito, destoando radicalmente das constituições ocidentais que vislumbram apenas os seres humanos como detentores de direitos subjetivos e fundamentais.

Por sua vez, a Constituição Boliviana, de 200941, incorpora em seu texto norma que estabelece que uma das funções do Estado boliviano é constituir uma sociedade justa e harmônica, baseada na descolonização. Há, portanto, nesse dispositivo constitucional, a percepção de que o colonialismo ainda perdura nas instituições criadas pelo Estado e nos métodos e nos critérios definidores de validade do pensamento científico e, sobretudo, nas relações sociais.

De fato, a Constituição da Bolívia, como texto, embora, aqui, não se possa afirmar que alterou as práticas sociais, decoloniza as demais normas bolivianas, atuais e vindouras, uma vez que “[...] tem valor de norma – e de norma suprema do ordenamento jurídico” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 44), ou seja, é formada por um conjunto de regras e de princípios que devem ser aplicados e respeitados por governantes e governados. Decoloniza, ainda, e, principalmente, o “pensamento constitucionalista” (BRANCO; MENDES, 2012, p. 44).

Esse pensamento surge da necessidade de se preservar e de se erigir certas regras jurídicas, limitadoras do poder do Estado e garantidoras das liberdades individuais, à categoria de fundamental, na acepção de estrutura e de essencialidade (DAMÁZIO, SPAREMBERGER, 2016). De acordo com esses autores, essa ideia surge no cenário das revoluções liberais burguesas, por conseguinte, tem sua localização espacial na Europa, e seu tempo os fins do século XVII e início do século XVIII.

Dentro desse contexto de afirmação das ideias liberais, originam-se as primeiras constituições modernas, singularizadas por serem documentos escritos e aprovados em um procedimento formal e solene. Como marco desse pensamento, têm-se as Constituições dos Estados Unidos, em 1787, e da França, em 1791 (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016). “El constitucionalismo es un invento americano o, por decirlo con más precisión, um invento euroamericano, de contigentes europeos emigrantes a las Americas”42 (CLAVERO, 2017, p. 24).

Desse modo, trata-se de um fenômeno histórico, político, localizado geograficamente. Embora tenha se efetuado com elementos culturais e institucionais de procedência europeia (CLAVERO, 2017), o constitucionalismo se construiu ao longo do tempo sob a dissimulação de uma universalidade epistêmica. Dessa forma, produz discursos constitucionais que afirmam representar o melhor para toda a humanidade (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016).

[...] a ideia de constitucionalismo se constrói por meio de uma lógica colonialista, exploradora e genocida que, no entanto, justifica-se pelos projetos da modernidade construídos a partir de categorias “universais” como Constituição e Estado. Trata-se de ideias localizadas, que são impostas como sendo o melhor para todos e segundo as quais qualquer tipo de exploração e invasão é explicado como um caminho necessário para a realização plena da humanidade. (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016. p. 273).

Não é apenas a partir do manto do universalismo que o pensamento constitucionalista europeu e americano se impõe sobre os países latino-americanos, porém, pela colonização dessa região em meados do século XV. As instituições jurídicas, aqui forjadas, são criadas à imagem e à semelhança das europeias e das estadunidenses, como por exemplo, o STF que se assemelha à Suprema Corte Americana, com o intuito de contribuir no gerenciamento de pessoas e na exploração dos recursos da colônia.

O colonizador é o sujeito constitucional, detentor de direitos e a quem caberá a administração dos poderes legislativo, executivo e judicial (CLAVERO, 2017).

Constitución era el documento normativo superior de las unidades y del conjunto de este nuevo sistema político conforme al entendimento de las presunciones culturales que le inspiraban, las europeas. Vino a componerse de dos secciones, una de derechos o liberdades y outra de poderes o instituciones. Los primeiros, los derechos, tendían a formularse em términos universalistas, pero se entendían como atribuicíones del sujeito colonizador, esto es, del padre da família proprietário, autónomo o patrón y de cultura europea. Sujeto constitucional no lo era ní la el esclavo ni el emancipado ni el trabajador dependíente ní el inmigrante eudeudado ni la mujer ni el menor ni el indígena.43 (CLAVERO, 2017, p. 25).

Inicialmente, as constituições não mascaram sequer que o sujeito constitucional é apenas o colonizador, excluindo dessa categoria as mulheres, os escravizados, as escravizadas e os povos indígenas. A universalidade abriga apenas os homens brancos, proprietários e católicos. Nos termos do art. 195 da Constituição Venezuelana de 1811, “Ninguno es hombre de bien, ni buen ciudadano, si no observa las leyes fiel y religiosamente, si no es buen hijo, buen hermano, buen amigo, buen esposo e buen padre de família”44.

Clavero (2017) defende que o constitucionalismo latino-americano é consubstancial ao colonialismo, ou seja, ambos possuem a mesma natureza. “Lo fue y lo es”45 (CLAVERO, 2017, p. 29). Portanto, pode-se afirmar que o constitucionalismo dessa região tem a mesma essência da colonialidade do poder.

Dessa maneira, o constitucionalismo latino-americano se inventou, desenvolveu-se e se manifesta a serviço do colonialismo (CLAVERO, 2017) e da colonialidade do poder. O jurista espanhol o denomina de constitucionalismo colonial. “Entre ayer y hoy corre una larga historia em cuyo transcurso muchas cosas han cambiado, hasta el punto de que el colonialismo constitucional no es tan facilmente reconocíble a estas alturas46 (CLAVERO, 2017, p. 29).

As dissimulações, os disfarces, as aparências aumentaram, contudo, o constitucionalismo da América Latina foi e continua sendo o vetor da colonialidade do poder, isto é, hospeda em seu corpo “[...] valores ideológicos, políticos, doutrinários e filosóficos [...]” (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016, p. 286) do colonizador. Segundo estes autores, “[...] o constitucionalismo foi utilizado pelos liberais burgueses para [...] a defesa dos seus interesses concretos” (DAMÁZIO; SPAREMBERGER, 2016, p. 286).

O art.170, II, da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer que a ordem econômica brasileira se encontra fundada na livre iniciativa e que possui como um de seus fundamentos a propriedade privada e a livre concorrência, não permite outra leitura a não ser a que os autores acima mencionados apontaram.

No entanto, como se disse anteriormente, é possível afirmar a existência de resistência, portanto, algo que se aproxime da ideia de giro decolonial, ainda que apenas em forma de texto, não havendo possibilidade de afirmá-lo como prática social consolidada. Em seus artigos 215 e 216, a título de exemplo, a Constituição Brasileira decoloniza-se sutilmente. Ali ficou estabelecido que as manifestações indígenas e afro-brasileiras devem ser protegidas pelo Estado, e que os modos de criar, de fazer e de viver dos povos indígenas e de mulheres e homens negros constituem patrimônio cultural brasileiro.

Não se pode esquecer que os traços fenotípicos e culturais dos colonizados pelo colonialismo e pela colonialidade do poder foram dispostos em uma situação de inferioridade (ABDALA JÚNIOR, 2014). Ao valorizá-los, tais artigos cometem um giro decolonial. Trata- se, porém, de uma brisa decolonial. Em outras constituições latino-americanas, os ventos decoloniais foram mais intensos.

Assim, algumas constituições latino-americanas reconhecem o direito consuetudinário dos povos indígenas, excluindo-os, dessa forma, da tutela colonial, adotando uma postura que os percebem como povos com igual dignidade (FAJARDO 2015).

La constitucionalización del pluralismo jurídico y la jurisdicción indígena pone em cuestion el monismo jurídico, esto es, la identidade Estado- derecho, y la monoculturalidad estatal, esto es, la identidad Estado-nación, ambos, herdados del s. XIX.47 (FAJARDO, 2015, p. 35).

Caracterizam-se tais aspectos por decoloniais pelo fato de romperem com o monismo jurídico em que o Estado detém o monopólio da criação e da aplicação do direito. O poder exclusivo de o Estado criar normas desconsidera os valores culturais que forjaram as outras nações, impondo apenas os interesses do Estado-nação.

Farjado (2015) assinala que durante a década de 90 do século XX algumas constituições latino-americanas introduziram em seus textos constitucionais o reconhecimento da existência de diversas culturas. A partir disso, definem a nação ou o Estado como multicultural ou pluricultural, garantindo, assim, o direito à diversidade cultural ou de igualdade entre as culturas. “Con este reconocimiento, las constituciones quiebran la identidade Estado-derecho que se impuso desde en sel.XIX. El monismo jurídico es substituído por um pluralismo jurídico interno, bajo techo constitucional48 (FARJADO, 2015, p. 44).

O pluralismo jurídico encorpado à Constituição representa o desenlace com o eurocentrismo, uma vez que o monopólio do Estado de dizer o direito é mitigado. São exemplos dessas espécies de Constituição, a Colombiana, de 1991, a Peruana, de 1993, a Boliviana, de 1994, a Equatoriana, de 1998, e, por fim, a Venezuelana, de 1999 (FAJARDO, 2005).

No entanto, mais recentemente, há o aprofundamento, e muito, nesse rompimento com o constitucionalismo euroamericano. A Constituição Equatoriana de 2008 reconhece o direito à autodeterminação das comunidades indígenas, e a Constituição Boliviana de 2009, a livre determinação dos povos que compõem aquela nação.

A diferencia de las constituciones precedentes, que apenas tenían um artículo sobre el derecho y la justicia indígena, estas nuevas cartas, sobre todo la de Bolívia, tienen varios artículos específicos, y sua vez menciones al derecho indígena que atraviesan todo el texto constitucional. (FAJARDO, 2015, p. 50).

Desse modo, a Constituição da Bolívia, logo no início do seu texto, entende que as nações e os povos indígenas autóctones são livres à autodeterminação desde que não frustrem a unidade daquele Estado. Para tal, garante-lhes direito à autonomia, ao autogoverno, a suas culturas, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais. Assim, enfraquece as estruturas de poder sob as quais se encontram edificadas a sociedade boliviana.

Um Estado-nação é uma espécie de sociedade individualizada entre as demais. Por isso, entre seus membros pode ser sentida como identidade. Porém, toda sociedade é uma estrutura de poder. É o poder aquilo que articula formas de existência social dispersas e diversas numa totalidade única, uma sociedade. Toda estrutura de poder é sempre, parcial ou totalmente, a imposição de alguns, freqüentemente certo grupo, sobre os demais. Conseqüentemente, todo Estado-nação possível é uma estrutura de poder, do mesmo modo que é produto do poder. (QUIJANO, 2005, p. 255).

A colonialidade do poder, porém, enfrenta o ataque ao monismo desferido pela Constituição Boliviana, ao circunscrever a jurisdição indígena às contendas entre os seus pares. A justiça indígena não possui, desse modo, competência para julgar casos em que não indígenas violem bens ou direitos daquelas comunidades (FAJARDO, 2015).

Portanto, como bem afirma Quijano (2005), a colonialidade do poder ainda exerce seu domínio contra os interesses dos não brancos. No caso do Brasil, mais especificamente, o direito e suas instituições, como se disse em outro lugar, cumpre um papel fundamental nesta estrutura de poder que “[...] foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo colonial” (QUIJANO, 2005, p. 267).

Porém, há um processo de resistência, aqui caracterizado como decolonialidade, ou giro decolonial (CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007), que procura fragilizar essas estruturas de poder. As comunidades quilombolas espalhadas por todo território brasileiro materializam esse giro, ao não aceitar ou não acatar o papel e os lugares que foram atribuídos, destinados aos negros e às negras pela colonialidade do poder. Quilombo é decolonização.

Por sua vez, há uma resistência ao constitucionalismo colonial por meio de uma hermenêutica jurídica que se afasta de uma visão universalista e eurocêntrica do direito, embora, às vezes, o faça de maneira vacilante, contraditória.

Essa dubiedade, como se verá a seguir, pode ser localizada nos diversos discursos que compõem a ADI 3239, principalmente naqueles construídos com o nítido propósito de se afastar da visão de mundo imposta pela colonialidade do poder.

3.3Descrição dos Dados Empíricos Decoloniais da ADI 3239

Neste trecho da dissertação, a parte em que se analisam os discursos decoloniais da ADI 3239, há apenas uma categoria principal: a decolonialidade ou giro decolonial. Em função disso, com base nos direitos e nas garantias fundamentais constantes no art. 5º ao art. 17 da CF/88, segmentaram-se os discursos considerados decoloniais em três subclasses: o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos; o quilombola com liberdade para ser proprietário; o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais.

Entende-se que a narrativa da resistência quilombola à colonialidade, encontra-se alicerçada na lógica dos direitos fundamentais49: “[...] o art. 68 do ADCT reconhece um direito fundamental [...]” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2013, p. 330).

Na primeira subcategorização, o quilombola como igual, pertencente ao pacto da nação com direito a ter direitos, encontram-se os discursos que erigem o ser quilombola à categoria de pertencente ao pacto da nação. Descoisificado, reumanizado, conquista um tratamento legal que o considera como igual, garantindo-lhe, formalmente, a inviolabilidade do direito à vida e o direito de materializar em normas jurídicas direitos peculiares à sua condição de vida. São os discursos textuais que entendem o artigo 68 do ADCT como uma manifestação de um direito fundamental e dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata e aqueles que percebem o Decreto 4.887/2003 como uma norma que possibilita a concretização do artigo constitucional quilombola.

Na subclasse o quilombola com liberdade para ser proprietário, encontram-se dispostos os discursos que defendem a adoção da autoatribuição como critério identificador das terras quilombolas; a destinação de verbas públicas para aquisição de terras registradas em cartórios de imóveis como particulares.

No último campo, o quilombola livre para autoidentificar-se e para reivindicar direitos sociais, estão as falas que compreendem a constitucionalidade do critério da autoatribuição. Ou seja, as comunidades quilombolas como expressão do presente.

3.3.1Os Discursos Decoloniais na ADI 3239 como afirmação de direitos e garantias fundamentais

O pensamento decolonial aponta para uma visão de mundo em que se sobressai o olhar de que no Brasil há um fosso social entre os brancos e os nãos brancos, construído quando este país ainda era colônia de Portugal e que não há o menor esforço para eliminá-lo por parte dos donos do poder. Há, aqui, a hierarquização étnico-racial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), em que cabe aos negros e às negras papéis e lugares sociais subalternos contra os quais, porém, sempre houve resistência.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, vislumbram-se algumas destas posturas decoloniais. No caso, o giro decolonial pode ser representado pelas falas que entendem que o Decreto 4.887/2003 não se encontra eivado do vício da inconstitucionalidade ou que fazem uma interpretação forte do artigo constitucional quilombola. Isto é, compreendem que tal norma materializa um direito fundamental e que, por isso, possui aplicação imediata (Art. 5º, § 1°, da CF/88). A menção a palavra forte deve-se, pois, ao fato de que tal norma não precisa aguardar uma ação do Estado para que possa produzir os efeitos jurídicos por ela mencionados.

Por integrar o pacto da nação, nos termos do art. 12 da CF/88, que inaugura o capítulo que cuida da nacionalidade, o ser quilombola reconquista formalmente a sua condição de humano e nacional, principalmente em função de romper, em parte, a invisibilidade imposta pela colonialidade do poder.

No caso do direito constitucional brasileiro, há uma norma que determina que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, deve proteger os modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas, arts. 215 e 216. E há outra, que afirma que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, art. 5º. Inclui-se, neste rol de normas constitucionais negras, também, o art. 68 do ADCT. É na territorialidade quilombola que se manifestam, logicamente, os modos de criar, de fazer e de viver dos membros dos quilombos. Portanto, a propriedade quilombola possui uma função social que lhe foi atribuída pelo próprio texto constitucional.

Por isso, categorizam-se como decoloniais os discursos que afirmam que tal artigo é uma norma de eficácia plena e aplicação imediata. Nesse sentido, a norma constitucional dos quilombos entende o ser quilombola como igual pertencente ao pacto da nação brasileira, situação impensável em uma situação de invisibilidade social.

O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas. Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico- racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa. (WEBER, 2015, grifo no original).

Portanto, Rosa Weber defende que o art. 68 do ADCT não necessita da edição de outra norma qualquer para que a comunidade quilombola possa exercer o direito que aquele artigo guarda. Para a ministra, o art. 68 do ADCT, além de se configurar como um direito de propriedade qualificado, expressa uma ordem ao Estado para que atue positivamente a fim de concretizá-lo sem delongas.

Decomposto analiticamente o texto, extraio duas categorias de enunciados constitucionais:

  1. uma disposição substancial assentando um direito fundamental – um direito de propriedade qualificado (“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”);
  2. uma ordem ao Estado para que pratique determinado ato necessário ao direito fundamental assentado – a expedição dos títulos respectivos (“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”). (WEBER, 2015).

Em outro trecho do seu voto, a ministra do STF reforça sua visão de mundo sobre o art. 68 do ADCT da CF/88: esta norma anuncia preceito que o Estado deve observar e proteger, devendo estruturar sua burocracia para cumpri-lo fielmente.

O direito fundamental insculpido no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, enfatizo, impõe ao Estado o dever de tutela – observância e proteção –, e não o dever de conformação. (WEBER, 2015, grifo no original).

Dessa forma, as terras que as comunidades quilombolas ocupam lhes pertencem, cabendo ao Estado apenas emitir os respectivos títulos. Na manifestação de Dias Toffoli encontra-se esta forma de pensar:

Ressalte-se, ainda, que o art. 68 do ADCT, ao consagrar um comando de imperatividade ao Poder Público, é dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não necessitando, em verdade, de intermediação de lei formal para a regulamentação dos procedimentos necessários à concretude do comando constitucional. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Assim, ainda que o Decreto 4.887/2003 fosse considerado inconstitucional, não haveria a necessidade da edição de outro Decreto para dizer o que a Constituição já o diz: a posse da terra pela comunidade quilombola gera o direito à propriedade definitiva.

Ressalta-se que a Procuradoria-Geral da República, por meio do procurador Cláudio Fonteles, afirma que o art. 68 do ADCT exige uma interpretação diligente.

Mister se faz ressaltar, antes de tudo, que o art. 68 do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo o seu âmbito normativo. Isso porque trata a disposição constitucional de verdadeiro direito fundamental, consubstanciado no direito subjetivo das comunidades remanescentes de quilombos a uma prestação positiva por parte do Estado. Assim, deve-se reconhecer que o art. 68 do ADCT abriga uma norma jusfundamental; sua interpretação deve emprestar-lhe a máxima eficácia. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

Não é demais lembrar que, diante de norma constitucional assim qualificada, recomenda a doutrina se evite “método interpretativo que reduza ou debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais.” Observa Jorge Miranda que “a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação”, imperativo que assume, na lição de Konrad Hesse, a seguinte sistematização. (WEBER, 2015).

Desse modo, não pode ser considerada uma interpretação conforme a Constituição aquela que debilita ou reduz a proteção que o texto constitucional dirigiu à comunidade quilombola. Segundo a Procuradoria-Geral da República, pelo fato de a norma constitucional quilombola se tratar de um direito fundamental, sua hermenêutica deve se realizar de tal maneira que seja avultado o seu âmbito normativo.

A ministra Rosa Weber advoga, também, que o art. 68 do ADCT constitui em uma norma definidora de direito fundamental, e que, por isso, acolhe o mesmo raciocínio da Procuradoria-Geral da República, não se pode atribuir exegese que danifique a sua densidade normativa.

Tenho, pois, que, levada a sério, à norma constitucional – especialmente a definidora de direito fundamental – não pode ser atribuída exegese que lhe retire toda e qualquer densidade normativa. Em absoluto merece endosso, data venia, interpretação atribuidora de sentido e eficácia que impliquem a própria inexistência do texto interpretado: impacto jurídico indistinguível de uma ordem jurídica carente do preceito. (WEBER, 2015).

O DEM pretende, argumenta a ministra Rosa Weber, retirar a eficácia do artigo 68 do ADCT da CF/88, a tal ponto de torná-lo inexistente. Uma interpretação que sai do âmbito da constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 para adentrar o plano da existência da norma constitucional quilombola.

A ministra, então, reafirma que a burocracia estatal deve se movimentar de tal forma que atinja o objetivo desejado pela Constituição. No caso, a emissão de título de propriedade das terras ocupadas pela comunidade quilombola.

Em qualquer hipótese, é obrigação do Estado agir positivamente para alcançar o resultado pretendido pela Constituição, ora por medidas legislativas, ora por políticas e programas implementados pelo Executivo, desde que apropriados e bem direcionados. No contexto dos direitos fundamentais compreendidos como um sistema, é exigência constitucional que “para serem razoáveis, medidas não podem deixar de considerar o grau e a extensão da privação do direito que elas se empenham em realizar”, conforme assentou a Corte Constitucional da África do Sul no julgamento do caso Governo da República da África do Sul e outros vs. Irene Grootboom e outros, verdadeiro divisor de águas no constitucionalismo contemporâneo. (WEBER, 2015, grifos no original).

Portanto, para essa ministra, é a extensão da privação, suportada pelo indivíduo ou por um determinado grupo, que finca os marcos da leitura da norma constitucional.

Há, pois, que se destacar os discursos que defendem a territorialidade como critério a ser utilizado no momento da delimitação das terras a serem destinadas à comunidade quilombola.

Portanto, a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios histórico e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades sócio-econômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural. O critério estabelecido no Decreto n° 4.897/03 está de acordo com os parâmetros mencionados. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

Rosa Weber, por exemplo, compactua que a leitura do artigo quilombola constitucional deve ser feita em conjunto com as determinações contidas nos artigos 215 e 215 da Constituição Federal de 1988.

A adequada exegese do art. 68 do ADCT passa, pois, pela perspectiva de sua íntima relação com o disposto nos arts. 215 e 216 do corpo da Constituição da República. Nessa medida, a compreensão sistemática da Carta Política não só autoriza como exige, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade para estes mediada por regular procedimento de desapropriação. E esse imperativo constitucional é preservado pelo art. 13 do Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifo no original).

Ou seja, a preservação, imposta ao Estado pelo texto constitucional, dos modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas exige a titulação das terras que essas comunidades ocupam por serem iguais pertencentes ao pacto de nação e, portanto, podendo reivindicar direitos sociais de igual pertencimento.

Nesse sentido, a manifestação do Instituto Pro Bono, Conectas e Sociedade Brasileira de Direito Público entende que o território quilombola envolve outros aspectos, abrangendo os modos de criar, de fazer e de viver dos quilombolas.

Os territórios de quilombos são utilizados para garantir a reprodução física, social, econômica e cultural, abrangendo todas as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias. Assim, os direitos dessas comunidades devem ser salvaguardados não apenas em relação àquelas terras por eles ocupadas, mas também àquelas às quais têm acesso para desenvolver suas atividades tradicionais de subsistência, bem como a afirmação da identidade de seus integrantes e a manutenção de suas tradições. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

A transcrição abaixo trilha nessa mesma direção:

A partir da identificação desse modo de vida, conclui-se que a titulação deve recair não só sobre os espaços em que o grupo mora ou cultiva, mas também sobre aqueles necessários ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também aqueles destinados ao estoque de recursos naturais.

Essas são as “suas terras”, a que reporta a Constituição, sendo que nesses locais os quilombolas não só “tiveram” (pg. 11 da petição inicial) a sua reprodução física, social, econômica e cultural, mas ainda a têm, como realidade viva que são, e é desejo da Constituição que a tenham com a propriedade definitiva. (INSTITUTO, PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Por sua vez, em seu voto, Toffoli entende que as desapropriações necessárias à formação do território quilombola possuem natureza de interesse social.

Necessário, porém, o ato expropriatório, deve o Estado, como responsável direto pela execução das políticas e diretrizes constitucionais, indenizar os proprietários particulares, se regularmente exerciam o seu direito até a promulgação da Carta de 1988. O referido processo de desapropriação é de nítido interesse social e será feito em benefício das comunidades remanescentes de quilombos. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Como bem lembra Toffoli, a desapropriação só se faz necessária se a propriedade do particular é legítima e se, ainda, não se operou a usucapião.

Nesse sentido, foi cuidadoso o art. 13 do decreto impugnado, na medida em que não excluiu a possibilidade de aquisição do domínio pelos remanescentes das comunidades quilombolas mediante prescrição aquisitiva (usucapião) que já tenha se operado, ou quando presente vício no título de propriedade particular, hipóteses nas quais não haverá desapropriação. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Então, defendem a territorialidade como critério de delimitação da comunidade quilombola, incluindo a desapropriação de imóveis pertencentes a particulares, quando for necessário para efetivar o que dispõe a CF/88 como garantia ao direito territorial quilombola.

Há, do mesmo modo, a defesa da constitucionalidade do critério de autoatribuição, como o fez a Procuradoria-Geral da República (2004): “32. Portanto, como bem afirma O’DWYER, ‘[...] em última análise, cabe aos próprios membros de grupos étnicos se autoidentificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão, mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas”’.

Destacam-se, ainda, as seguintes falas:

E a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola em absoluto se ressente, a meu juízo, de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Assumindo-se a boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – e para a má-fé o direito dispõe de remédios apropriados. Logo, em princípio, ao sujeito que se afirma quilombola ou mocambeiro não se pode negar o direito de assim fazê-lo sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz. (WEBER, 2015).

Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação. (WEBER, 2015).

Ao contrário do que afirma o requerente, trata-se, em verdade, de critério plenamente adequado à identificação dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Com efeito, cabe aos próprios indivíduos e membros do grupo se reconhecerem e se identificarem como pertencentes determinado grupo étnico. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Vê-se que, para Rosa Weber, a autoatribuição relaciona-se com a própria dignidade da pessoa humana, no caso, aqui, do homem negro e da mulher negra quilombolas. Interessante notar que, em seu voto, esta ministra cita jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos relacionada à questão das terras quilombolas para fundamentar sua decisão.

A temática mereceu debate no âmbito do sistema regional interamericano de proteção internacional dos direitos humanos. No caso da comunidade Moiwana v. Suriname (2005), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidade descendente dos maroons – designação dada em diversos países das Américas aos escravos fugitivos que formaram grupos independentes, que guardam evidentes similaridades com os quilombolas brasileiros – sobre as terras tradicionais com as quais mantidas relações territoriais específicas. (WEBER, 2015).

Já no caso da comunidade Saramaka v. Suriname (2007), também descendente de maroons, a Corte Interamericana ressaltou que o Estado demandado estava sujeito, forte no art. 21 do Pacto de San José da Costa Rica, a uma obrigação positiva “consistente em adotar medidas especiais que garantam aos membros do povo Saramaka o pleno e igualitário exercício do seu direito aos territórios que tradicionalmente tem utilizado e ocupado,” aí incluídos os recursos naturais imprescindíveis à sua sobrevivência neles contidos. (WEBER, 2015).

A ministra busca, ainda, na legislação de países latino-americanos, argumentos que possam reforçar a sua tese:

Observo, no direito comparado, que a Constituição adotada em 2008 pela República do Equador, após referendo popular, reconhece as comunidades afroequatorianas como povos distintos e assegura a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados. (WEBER, 2015).

No mesmo passo, a Constituição da República da Colômbia, promulgada em 1991, consagra, no Artigo 55 das Disposições Transitórias, o direito de propriedade das comunidades negras daquele país sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas segundo suas próprias práticas [...]. (WEBER, 2015).

Rosa Weber menciona, além disso, decisão da Corte Constitucional da África do Sul a qual presta reverência, em trecho já citado, o que ressalta o impacto que essa jurisprudência causou no constitucionalismo ocidental, ao afirmar a obrigação de o Estado agir positivamente para efetivar o resultado pretendido pela Constituição, seja por meio do legislativo ou de políticas públicas, e que, para que a atuação do Estado seja razoável, é necessário considerar o grau e a extensão da privação de direito a que ao Estado cabe enfrentar.

Para falar dessa privação de direito, Toffoli (2017, grifo no original) traz para seu voto a fala de Leinad Ayer de Oliveira, pesquisadora da Comissão Pro-Índio de São Paulo:

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI” (Negros em busca de justiça. In: Oliveira, Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p.11). (TOFFOLLI, 2017).

Uma inversão do pensamento jurídico provocada pelo aquilombamento do pensamento de negros e de negras no artigo 68 do ADCT. Esses dados, extraídos da ADI 3239, permitem ou favorecem a análise das posturas decoloniais que os autores ou autoras assumiram no referido campo jurídico.

Assim, mesmo repletas de contradições, há na ADI 3239 falas que sutilmente notam que os quilombos representam um enfrentamento à colonialidade do poder. Isto é, percebem que na sociedade brasileira há hierarquização étnico-racial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007) em que cabe aos homens negros e às mulheres negras papéis e lugares sociais subalternos.

Nessas manifestações, surgem discursos decoloniais. Diferentemente, a petição do DEM e a manifestação do Estado de Santa Catarina secretam em cada palavra, cada frase, cada parágrafo a colonialidade do poder. Do mesmo modo, o voto de Cézar Peluso, em que pese a crítica que tece sobre a burocracia que o Decreto 4.887/2003 representa no procedimento da identificação e na titulação das terras quilombolas, também, excreta colonialidade, mas há aspectos de denúncia de aspectos de colonialidade no próprio decreto:

Por fim, não posso deixar de advertir efeito que, com base na legislação vigente, embora indesejado, quero crer, é perverso. Trata-se do caminho da titulação”, composto por mais de 20 etapas, as quais devem ser vencidas pelos interessados, para obtenção do registro dos títulos em cartório. É autêntica “via crucis”. Estou entregando a Vossas Excelências mapa ilustrativo delas, com suas descrições, e que pode ser consultado no sítio eletrônico da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

Note-se que o processo passa pelos seguintes órgãos: INCRA, Fundação Palmares, IPHAN, IBAMA, Secretaria do Patrimônio da União - SPU, FUNAI, Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional – CDN, Instituto Chico Mendes, e Serviço Florestal Brasileiro. (PELUSO, 2012).

Este trecho da fala de Peluso não tem o condão de, por si só, afirmar que a sua visão de mundo sobre as comunidades de quilombos constitui um giro decolonial, uma vez que destoa da maior parte do pensamento que construiu ao longo de sua decisão. De fato, seu voto representa uma “[...] resistência ao reconhecimento das ‘barreiras de cor’” fechando os olhos para o “impasse racial” (FLORESTAN, 1972, p. 9) que existe neste país.

Isto não impede, todavia, de identificar em seu discurso uma denúncia aos obstáculos à titulação quilombola erigidos pelo Decreto 4.887/20003 ao impor barreiras burocráticas que ampliam o tempo para efetivar o que a CF/88 garante.

Na verdade, o próprio Decreto 4.887/2003 manifesta, em alguns dos seus artigos, a colonialidade, como, por exemplo, quando deixa à mercê do INCRA a regulamentação dos procedimentos administrativos para identificação e titulação das terras quilombolas.

Art. 3o Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.

§ 2o Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não- governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.

§ 3o O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.

§ 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento.

Como se viu no capítulo anterior, o Ministério do Desenvolvimento Agrário editou a Instrução Normativa n. 57/2009, estabelecendo, entre outras coisas, que a identificação dos limites das terras das comunidades quilombolas necessita de estudos técnicos e científicos e da elaboração de relatórios antropológicos. A narrativa da comunidade quilombola deve, obrigatoriamente, passar pelo crivo do discurso acadêmico.

Dessa maneira, a colonialidade do saber, explícita naquela Instrução Normativa, enclausura e desprestigia os saberes e as práticas quilombolas, além de obstaculizar o enegrecimento do solo urbano e rural. E denunciar essas barreiras que expressam colonialidade representa uma performance decolonial necessária para afirmar a condição de igual pertencente ao pacto de nação. E, como tal, reivindicar as condições necessárias para o exercício das liberdades em condições dignas garantidas na CF/88 .

3.3.2Giros Decoloniais na ADI 3239 e na CF/88

O Estado nacional brasileiro foi estruturado para atender uma pequena parcela de seus habitantes, notadamente, os descendentes de europeus, as elites econômicas e os militares, alijando a maior da parte da população de seu processo de formação e desenvolvimento (GASPARIN; RODRIGUES, 2016). Esses autores (2016, p. 28) denunciam que “[...] os povos nativos foram totalmente excluídos do processo de construção da nação latino- americana”. Incluam-se, também, no caso brasileiro, as comunidades quilombolas.

A Constituição republicana de 1988 sinaliza um projeto do Estado nacional disposto a incluir em seu processo de formação os quilombos e os afrodescendentes. Em seu artigo 215,

§1º, estabelece que cabe ao Estado proteger as manifestações culturais dos povos negros. Logo em seguida, no art. 216, informa que os modos de criar, de fazer e de viver das comunidades quilombolas constituem patrimônio cultural imaterial brasileiro. Há, pois, uma nítida visualização constitucional de tais comunidades.

“Nesse sentido é que se verifica a importância do sentimento de pertencer àquele Estado e ter nacionalidade, haja vista que a ausência desses elementos traz como consequência a exclusão e falta de participação da sociedade” (GASPARIN; RODRIGUES, 2016, p. 28). O resultado dessa exclusão é a ausência de normas legais que garantam ao grupo ou ao povo viver de acordo com suas especificidades. Esse ocultamento legal objetiva gerar morte social e física.

O artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 rompe com a invisibilidade dos quilombos e estabelece uma “[...] igualdade jerárquica50” (WALSH, 2015, p. 471) aos quilombolas. A lei passa a perceber os negros e as negras dessas comunidades como indivíduos que possuem o direito a ter direito.

A inclusão do povo de quilombo como igual pertencente ao pacto de nação (HABERMAS,2007) tem sido historicamente demandada. E as narrativas de resistências foram incluídas nas discursividades da ADI 3239 por meio dos amicus curiae que assumiram a defesa do lado quilombola. De acordo com Vitorelli (2015), o fator primordial para as conquistas das comunidades quilombolas foi a mobilização das próprias comunidades.

Dessa maneira, a causa quilombola passaria toda a década de 1990 ignorada pelo governo. Apesar disso, os mesmos militantes que lutaram pela inclusão do art.68 no ADCT, continuavam mobilizados pela implementação não apenas do acesso à terra, garantido constitucionalmente, mas também dos demais direitos devidos às comunidades tradicionais (VITORELLI, 2015, p.246).

As discursividades acionadas em defesa das terras quilombolas foram incorporadas nos votos dos ministros, seja para defender a garantia do art. 68 como direito fundamental, seja para afirmar a eficácia plena e a aplicabilidade imediata da norma, seja incorporando experiências constitucionais de povos colonizados como a África do Sul, a Colômbia e o Equador, o que expressam giro decolonial.

Rosa Weber (2015) pontua que o art. 68 do ADCT estabelece um direito fundamental, ou seja, há nesta norma constitucional uma imposição ao Estado que consiste em um dever de tutela das comunidades quilombolas.

O direito fundamental insculpido no art. 68 do ADCT em absoluto demanda do Estado delimitação legislativa, e sim organização de estrutura administrativa apta a viabilizar a sua fruição. A dimensão objetiva do direito fundamental que o preceito enuncia, enfatizo, impõe ao Estado o dever de tutela – observância e proteção –, e não o dever de conformação. (Grifos no original).

Assim, a Constituição define as comunidades quilombolas como sujeitos de direito, obrigando que as demais normas aceitem, coadunem-se com tal determinação. Ao mesmo tempo, proíbe que outra normal legal diga algo contrário do que ela expressa. É “[...] dentro do espaço de legalidade definido pela constituição” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 173) que os quilombos se assentam.

Ao Estado brasileiro, que ao longo da história dos povos negros no solo deste país empreendeu perseguições, mutilações de homens e de mulheres negras, cabe, agora, a proteção das comunidades quilombolas. A fala de Rosa Weber é decolonial, porque determina o desmonte das instituições estatais, ainda em plena atividade, que foram criadas e pensadas para combater as negras e os negros quilombolas.

Da mesma forma, há um giro decolonial ao se considerar que o artigo constitucional quilombola não necessita de outra lei para o exercício do direito que ele descreve e garante. Isto porque o conceito de quilombo fica incólume dos vícios e das limitações que o Decreto 4.887/2003 carrega.

O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas. Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico- racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitável, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa. (WEBER, 2015, grifos no original).

O Estado deve, pois, cumprir o comando constitucional de titular as terras que as comunidades quilombolas tenham a posse. Uma leitura decolonial do artigo quilombola afirma que sua aplicabilidade é imediata e dotada de eficácia plena.

A fim de demonstrar a importância de o STF categorizar o artigo constitucional quilombola como direito fundamental, traz-se a seguinte lição de Gilmar Ferreira Mendes e de Paulo Gustavo Gonet Branco:

Verifica-se marcado zelo nos sistemas jurídicos democráticos em evitar que as posições afirmadas como essenciais da pessoa quedem como letra morta ou que só ganhem eficácia a partir da atuação da legislação. Essa preocupação liga-se à necessidade de superar, em definitivo, a concepção do Estado de Direito formal, em que os direitos fundamentais somente ganham expressão quando regulados por lei, com o que se expõem ao esvaziamento de conteúdo pela atuação ou inação do legislador. (BRANCO; MENDES, 2012, p. 173-174).

Deve-se destacar que a própria Constituição determina em seu artigo 5º, § 1º, que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Ou seja, ao reconhecer a norma quilombola como um direito fundamental, o STF busca evitar que tal preceito se transforme em letra morta ou que só tenha sua eficácia garantida a partir da autuação do Poder Legislativo (BRANCO; MENDES, 2012).

O ministro Dias Toffoli, ao proferir sua decisão, ressalta a prescindibilidade de edição de lei formal para regulamentar os procedimentos necessários à titulação das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas.

Ressalte-se, ainda, que o art. 68 do ADCT, ao consagrar um comando de imperatividade ao Poder Público, é dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não necessitando, em verdade, de intermediação de lei formal para a regulamentação dos procedimentos necessários à concretude do comando constitucional. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

O artigo 68 do ADCT possui, pois, eficácia plena e aplicabilidade imediata. Não há, assim, a necessidade da edição de qualquer ato normativo para que a comunidade quilombola usufrua do direito que ele estampa. Poder-se-ia afirmar, portanto, que desde a promulgação da atual Constituição que as terras que os negros e as negras quilombolas utilizam para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural lhes pertencem, podendo até mesmo afirmar que a rebeldia negra, ao aquilombar-se, gerou direito como garantia constitucional, que cabe ao Estado garantir a sua fruição.

O Poder Público não pode perder de vista o dever de dar à norma constitucional o máximo de efetividade possível, sob pena de agir de modo inconstitucional, por restringir indevidamente o direito garantido às comunidades remanescentes de quilombos de reconhecimento e titulação das terras por elas ocupadas. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Esse modo de agir inconstitucional surge quando o Poder Público esvazia o conceito de quilombo, dificulta o reconhecimento da comunidade negra como quilombola ou provoca embaraços à titulação das terras de quilombo. Isto é, restringe indevidamente direito garantido aos negros e às negras pela Constituição.

Para a ministra Rosa Weber, o artigo 68 do ADCT traz consigo uma ordem ao Estado para que cumpra todos os atos necessários à titulação das terras das comunidades de quilombos, porque tal direito abriga a dignidade da pessoa negra, representando, pois, um direito fundamental, como expressa, em passagem já citada, como direito qualificado de propriedade, na primeira parte do artigo: “[...] aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva” (WEBER, 2015). E como ordem ao Estado para que cumpra o direito fundamental: “[...] devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

É possível depreender da leitura do trecho citado e de outra passagem já também mencionada que, em vez de conformação com a restrição de direitos, o que a CF/88 oportuniza é rebelião para garantir a condição de igual pertencente ao pacto da nação brasileira (HABERMAS, 2007). No lugar da submissão à ordem estabelecida pela colonialidade do poder, quilombos. É o Estado que atua à margem da lei quando não protege as comunidades quilombolas. Esta é uma leitura decolonial do artigo constitucional quilombola.

Do mesmo modo, cabe ao operador do direito atribuir um sentido ao conceito de quilombo que rompa com o processo de desumanização e coisificação de homens negros e de mulheres negras. Outra leitura deve ser tachada e impingida de inconstitucional, conforme se depreende de trecho constante da decisão da ministra Rosa Weber, em que ela afirma que a norma constitucional que define direito fundamental não pode ser atribuído sentido que lhe retire a densidade normativa que torne praticamente inexistente o texto interpretado.

É possível afirmar, no mesmo sentido, que uma leitura levada a sério do artigo 68 do ADCT levaria a uma concepção de que, na sociedade brasileira, a ideia de raça é utilizada como critério de delimitação dos lugares e dos papéis destinados aos negros e às negras (BENAVENTE; PIZARRO, 2014). É a percepção da colonialidade do poder e a resistência autorizada pela CF/88 que autoriza uma interpretação forte do artigo constitucional quilombola.

Proporciona, por exemplo, afirmar, a partir desta fala de Weber, que o Decreto 4.887/2003 abriga apenas uma determinada experiência dos quilombos. Há outras comunidades quilombolas que não se adéquam necessariamente àquela descrita no art. 2º daquele decreto.

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto- atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Como bem diz Moura (1993), os quilombos possuíam várias formas de organização, possuindo uma estrutura diversificada que dependia do espaço ocupado, da população inicial, da qualidade do terreno onde a comunidade se encontrava encravada e dos recursos naturais disponíveis.

Ademais, não se pode esquecer de que “[...] o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela sociedade escravista, independentemente da sua cor. Era o exemplo da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil, fora das unidades quilombolas” (MOURA, 1993, p. 37).

O problema, talvez seja, como alertam o Instituto Pro Bono, o Conectas e a Sociedade Brasileira de Direito Público (2004), é que “[...] toma-se como premissa o conceito colonial de quilombo, muito embora, como demonstrado, este conceito se mostre insuficiente e pobre para a descrição da realidade das comunidades amparadas pelo art. 68 do ADCT”.

Pode-se dizer, portanto, que as rebeliões das senzalas, o quilombismo de Abdias Nascimento e a quilombagem de Clóvis Moura se encontram materializadas no artigo 68 do ADCT. É o direito que protege as antigas comunidades quilombolas, as que surgiram logo após a extinção do regime escravocrata e as que continuam sendo erguidas cotidianamente. Esta é uma leitura decolonial do artigo constitucional quilombola.

Portanto, cabe ao Estado, por meio de políticas e programas implementadas pelo Poder Executivo, adotar todas as medidas necessárias para que sejam tituladas as terras quilombolas. Do mesmo modo, o Legislativo não pode editar leis que criem obstáculos ao processo de delimitação e demarcação daqueles territórios ou que esvaziem o conceito de quilombo.

A extensão da privação do direito que a norma constitucional quilombola empenha-se em corrigir é secular: dignidade de homens negros e de mulheres negras, consubstanciada no acesso à terra. Ocorre que a Lei 601, de 18 de setembro de 1850, se impôs, quase como uma barreira intransponível, impedindo que negras e negros não tivessem acesso à terra para morar e plantar, o que impeliu as crianças a, literalmente, se alimentarem de terra:

Daqueles tempos coloniais nasce o costume de comer terra, ainda vigente. A falta de terra causa anemia; o instinto compele as crianças nordestinas a compensar com terra os sais minerais ausentes de sua alimentação habitual, limitada à farinha de mandioca, ao feijão e, com sorte, ao charque. Antigamente castigava-se esse “vício africano” das crianças, pondo-lhes focinheiras ou pendurando-as dentro de cestas de vime distantes do chão. (GALEANO, 2018, p. 96, grifo nosso).

O art. 68 do ADCT da CF/88 mira em modificar o “perfil fundiário” (VEIGA, 1994) brasileiro extremamente embranquecido. A palavra quilombo, como se fosse um grafite no texto constitucional, significa, ali, resistência negra à colonialidade do poder que compele as crianças a se alimentarem de terra.

A definição do território pela própria comunidade quilombola, violando os preceitos sagrados da propriedade privada, embranquecida pelo colonialismo e pela colonialidade, representa, ao lado da autoidentificação, para comunidade de quilombos, uma vitória contra a segregação racial.

Os territórios de quilombos são utilizados para garantir a reprodução física, social econômica e cultural, abrangendo todas as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias. Assim, os direitos dessas comunidades devem ser salvaguardados não apenas em relação àquelas terras por eles ocupadas, mas também àquelas às quais têm acesso para desenvolver suas atividades tradicionais de subsistência, bem como a afirmação da identidade de seus integrantes e a manutenção de suas tradições. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

De fato, de pouca importância possui a autoidentificação quilombola se a comunidade não pode definir o seu território. A afirmação dessa identidade requer que a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade de quilombo seja garantida e protegida pelo Estado.

A positivação das comunidades quilombolas inaugura “[...] uma concepção de organização social pautada na autonomia, participação [de negros e de negras],” (GASPARIN; RODRIGUES, 2016, p. 30). A territorialidade e a autoidentificação reafirmam esse projeto desencadeado pela Constituição republicana de 1988. Esta norma possui desejos novos:

A partir da identificação desse modo de vida, conclui-se que a titulação deve recair não só sobre os espaços em que o grupo mora ou cultiva, mas também sobre aqueles necessários ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também aqueles destinados ao estoque de recursos naturais.

Essas são as “suas terras”, a que reporta a Constituição, sendo que nesses locais os quilombolas não só “tiveram” (pg. 11 da petição inicial) a sua reprodução física, social, econômica e cultural, mas ainda a têm, como realidade viva que são, e é desejo da Constituição que a tenham com a propriedade definitiva. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

A titulação das terras necessárias ao lazer, à manutenção da religião, à perambulação entre as famílias dos grupos e ao estoque de recursos naturais encontra sua base legal no Decreto 4.887/2003, que apenas descreve o modo como as comunidades quilombolas se relacionam com o seu território. Na verdade, a territorialidade quilombola possui assento constitucional, uma vez que os modos de criar, de fazer e de viver dos membros dessas comunidades constituem patrimônio cultural brasileiro.

Se a colonialidade do poder alimenta as crianças negras de terra (GALEANO, 2018), o giro decolonial nutre-as de territorialidade (LITTLE, 2002). Há um “vínculo afetivo” (LITTLE, 2002, p. 254) entre a comunidade quilombola e seu território, retirando do comércio as terras onde aprendem e desenvolvem, por exemplo, seus “saberes ambientais” (LITTLE, 2002, p. 254).

Portanto, a identificação das terras pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos deve ser realizada segundo critérios histórico e culturais próprios de cada comunidade, assim como levando-se em conta suas atividades sócio-econômicas. A identidade coletiva é parâmetro de suma importância, pelo qual são determinados os locais de habitação, cultivo, lazer e religião, bem como aqueles em que o grupo étnico identifica como representantes de sua dignidade cultural. O critério estabelecido no Decreto n° 4.897/03 está de acordo com os parâmetros mencionados. (PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, 2004).

As narrativas da comunidade quilombola definirão o quanto do solo brasileiro será enegrecido. Cada negro e cada negra são responsáveis por delimitar o território do quilombo. Nesse processo de identificação territorial, a dignidade humana de cada membro se entrelaça com a dignidade cultural do grupo.

Esses locais, na verdade, representam mais do que a dignidade cultural da comunidade quilombola, significam a luta contra a coisificação, a desumanização a que os negros e as negras foram e continuam sendo submetidos cotidianamente.

O conflito social não existia, ou era irrelevante. Existiam diferenças culturais. Eram choques culturais, adaptação cultural, aculturação e finalmente assimilação. Com isto, com este final feliz assimilacionista teríamos resolvido as contradições estruturais da sociedade, o conflito de classes, as diferenças entre oprimidos e opressores. Toda uma produção acadêmica dirigia-se nesse sentido. As próprias comunidades negras que existem no território brasileiro, comunidades rústicas de camponeses, eram quistos culturais. Os pesquisadores debruçavam-se sobre particularidades etimológicas do linguajar, a forma de construir moradias, reminiscências religiosas, musicais e folclóricas, abadonando do seu universo de análise a estrutura concreta de cada uma dessas comunidades, o nível de vida de sua população, os problemas da propriedade da terra, a expulsão das suas populações com a penetração do capitalismo no campo e, finalmente, as forças sociais e econômicas que determinavam a sua desagregação e posterior destruição ou dissolução. (MOURA, 2014, p. 37).

A dimensão cultural encontra-se envolta nesse processo de resistência, porém, a essa não se resume. A territorialidade quilombola é a materialidade da “cultura de resistência social” (MOURA, 1992, p. 34) negra contra a colonialidade do poder. Estabelece uma “diversidade fundiária” (LITTLE, 2002, p. 254), rompendo com o monismo da propriedade privada.

Nas palavras da ministra Rosa Weber, o processo de recebimento do título da terra, almejado pela comunidade, apresenta dois aspectos que não se excluem: a luta pelo reconhecimento identitário do grupo e a luta por justiça social e econômica.

Na questão do reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, convergem as dimensões da luta pelo reconhecimento – expressa no fator de determinação da identidade de grupo – e da demanda por justiça socioeconômica, de caráter redistributivo – compreendida no fator de medição e demarcação das terras. Da ótica de uma Constituição comprometida com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais, consoante o art. 3º, I e III, da Lei Maior, não se mostra, portanto, adequado abordar a "questão quilombola" sem atentar para a necessária conciliação entre "reconhecimento cultural e igualdade social de forma a que sustentem um ao outro, ao invés de se aniquilarem (pois há muitas concepções concorrentes de ambos)". Há de se reconhecer que se cuida de problemática na qual "a privação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e sustentam simultaneamente". (WEBER, 2015).

Essa forma de pensar agride a estrutura agrária brasileira, embranquecida ao longo da história, pois requer que mais porções de terras sejam dirigidas às comunidades negras. Enegrece as terras urbanas e rurais, também, a possibilidade de desapropriação de terras particulares para compor o quinhão do território quilombola.

Ao Estado cabe o acautelamento e a preservação dos territórios quilombolas, autorizando a desapropriação de terras privadas para comporem ou restaurarem o espaço objetivo e subjetivo da comunidade quilombola.

Cabe lembrar que as comunidades remanescentes de quilombos, como grupos formadores da sociedade brasileira, receberam a proteção jurídico- constitucional do art. 216, §1º, que prevê a desapropriação como uma das formas de acautelamento e preservação de que o Poder Público dispõe.

(INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

De fato, pode-se dizer que a territorialidade antecede o processo expropriatório do imóvel registrado em nome de particular. A função social da territorialidade dos quilombos, espaço social onde os modos de criar, de fazer e viver dos quilombolas se materializam, deve se sobrepor sobre a propriedade privada.

É evidente que a desapropriação só se faz necessária se essas terras foram adquiridas legalmente. Ou seja, a grilagem das terras quilombolas deve ser combatida com veemência em função da diferença constitucional que elas possuem. Toffoli (2017, grifos no original) entende que:

Nesse sentido, foi cuidadoso o art. 13 do decreto impugnado, na medida em que não excluiu a possibilidade de aquisição do domínio pelos remanescentes das comunidades quilombolas mediante prescrição aquisitiva (usucapião) que já tenha se operado, ou quando presente vício no título de propriedade particular, hipóteses nas quais não haverá desapropriação.

Portanto, as terras obtidas ao arrepio da lei devem ser simplesmente entregues à comunidade de quilombo. No caso contrário, urge instalar o processo desapropriatório.

Dessa maneira, o território quilombola avança, por meio da desapropriação, sobre a sagrada propriedade privada, cabendo ao Estado fazê-lo no interesse e no total da área identificada pela comunidade de quilombos como territorialidade que lhe permite viver com dignidade:

A adequada exegese do art. 68 do ADCT passa, pois, pela perspectiva de sua íntima relação com o disposto nos arts. 215 e 216 do corpo da Constituição da República. Nessa medida, a compreensão sistemática da Carta Política não só autoriza como exige, quando incidente título de propriedade particular legítimo sobre as terras ocupadas por quilombolas, seja o processo de transferência da propriedade para estes mediada por regular procedimento de desapropriação. E esse imperativo constitucional é preservado pelo art. 13 do Decreto 4.887/2003. (WEBER, 2015, grifos no original).

A territorialidade quilombola, pois, perfila com a proteção constitucional dos modos de criar, de fazer e de viver dos membros da comunidade de quilombos. A decolonialidade, assim como a colonialidade do poder, é discurso e prática (MALDONADO-TORRES, 2007). Esse processo desapropriatório é uma prática decolonial.

A proteção do território quilombola é mandamento constitucional, o que impõe ao Estado adotar todas as medidas necessárias para mantê-lo.

Não se atenta, portanto, às prováveis hipóteses de legítimas comunidades quilombolas que foram ilegalmente expulsas das terras que ocupavam e se fixaram em outra localidade próxima. Ignora-se a relação que a comunidade possui com a terra, esta mais importante do que a determinação “dessa ou daquela” terra. (INSTITUTO PRO BONO; CONECTAS, SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIIREITO PÚBLICO, 2004).

Na verdade, toda forma de aquisição da propriedade imobiliária pela comunidade quilombola deve ser protegida e amparada pelo Estado. Assim, o processo desapropriatório só faz sentido se a comunidade não adquiriu as terras por meio da usucapião. Nesse sentido, Weber pontua que:

Por outro lado, na medida em que assegura uma proteção especial, a previsão do art. 68 do ADCT não prejudica nem interfere na aquisição da propriedade por meio do usucapião que já se tenha eventualmente operado: se já ocorreu o usucapião em favor dos remanescentes das comunidades quilombolas, não há razão para a instauração do procedimento de desapropriação. Diversamente, se por alguma razão não se operou a prescrição aquisitiva – pela intercorrência de alguma causa suspensiva ou interruptiva – aí sim tem lugar a desapropriação. (WEBER, 2015, grifos no original).

Qualquer medida necessária para a restauração ou composição do território quilombola deve ser adotada pelo Estado. No caso, a propriedade de parcela de terras por particulares e que foram assinaladas pelos membros da comunidade de quilombo como integrantes do seu território não pode configurar como empecilho para o cumprimento do preceito decolonial constitucional.

Isso, porque é o interesse social que impõe a desapropriação das terras que configuram a territorialidade quilombola.

Necessário, porém, o ato expropriatório, deve o Estado, como responsável direto pela execução das políticas e diretrizes constitucionais, indenizar os proprietários particulares, se regularmente exerciam o seu direito até a promulgação da Carta de 1988. O referido processo de desapropriação é de nítido interesse social e será feito em benefício das comunidades remanescentes de quilombos. (TOFFOLI, 2017).

A reconstrução do território quilombola, portanto, encontra guarida no texto constitucional. Esse discurso decolonial desvela o “ocultamiento de la colonialidad”51 (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 32) que tem a propriedade privada como um dos seus pilares. A proteção especial que o artigo constitucional quilombola carrega, de estatura decolonial, mitiga a propriedade privada, com seu aspecto oculto da colonialidade do poder.

Pode-se afirmar, então, que o enegrecimento da estrutura fundiária brasileira, inaugurada pelos primeiros quilombos, recebe proteção constitucional, artigos 68 do ADCT, e 215 e 216, e tem, apenas, o seu mero detalhamento no Decreto 4.887/2003. Essa visão de mundo retira a legitimidade da classificação racial e de suas odientas “assimetrias de poder” (BENAVENTE; PIZARRO, 2014, p. 157), impostas pela colonialidade. Esses artigos da Constituição de 1988 representam a resistência negra à coisificação de homens e mulheres negras e a afirmação de suas dignidades.

Os quilombos subverteram a ordem do regime escravocrata e denunciam a marginalidade social a que se encontram submetidos, no regime republicano que se encontra estruturado, a partir de uma “[...] lógica opressiva [...] de la colonialidad [...] (MIGNOLO, 2007, p. 25). Os quilombos emergem como contrapartida à fundação da modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2007).

Mi tesis es la seguiente: el pensamiento decolonial emergió en la fundación misma de la modernidade/colonialidad como su contrapartida. Y eso ocurrió em las Américas, en el pensamiento indígena e y em pensamento afro-caribeño; continuó luego en Asia y África, no relacionados com el pensamiento decolonial em las Américas, pero sí como contrapartida de la reorganizacación de la modernidad/colonialidad del império britânico y el colonialismo francês.52 (MIGNOLO, 2007, p. 27).

Portanto, o critério da autoatribuição quilombola pode ser tomado como a contrapartida à colonialidade a que faz referência Mignolo, uma vez que conturba a classificação social empreendida pela colonialidade do poder.

A autoidentificação quilombola permite a integração ao Estado-nação qualificada em função do reconhecimento de suas identidades e das diferenças (GASPARIN; RODRIGUES, 2016). Rosa Weber, em seu voto, associa a autoatribuição de uma determinada identidade, no caso quilombola, à própria dignidade humana.

E a adoção da autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola em absoluto se ressente, a meu juízo, de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Assumindo-se a boa-fé, a ninguém se pode recusar a identidade a si mesmo atribuída – e para a má-fé o direito dispõe de remédios apropriados. Logo, em princípio, ao sujeito que se afirma quilombola ou mocambeiro não se pode negar o direito de assim fazê-lo sem correr o risco de ofender a própria dignidade humana daquele que o faz. (WEBER, 2015).

A colonialidade do ser atribui uma identidade negativa às pessoas que possuem a tonalidade da pele mais escura, inferiorizando-os, tornando-os dispensáveis, descartáveis. Conforme Maldonado-Torres (2007, p. 135), “O, bien, podría plantearse la colonialidad como discurso y práctica que [...] predica la inferioridad natural de sujetos [...], lo que marca a ciertos sujetos como dispensables53[...]”. A autoatribuição quilombola associa à identidade negra rebeldia, resistência, organização, batuques, festas, companheirismo, solidariedade. Ser negro é saber resistir.

Esse autorreconhecimento como quilombola traz para si, negros e negras, escolhas próprias, boicotando a categorização que lhes havia sido imposta pelos colonizadores. “O cônsul inglês no Pará, por exemplo, distinguia entre brancos nativos e brancos estrangeiros, enquanto reservava uma única categoria para pretos e pardos livres” (CUNHA, 1985, p. 19).

Ao contrário do que afirma o requerente, trata-se, em verdade, de critério plenamente adequado à identificação dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”. Com efeito, cabe aos próprios indivíduos e membros do grupo se reconhecerem e se identificarem como pertencentes a determinado grupo étnico. (TOFFOLI, 2017, grifo no original).

Portanto, a autoatribuição é oportunidade de decolonizar a classificação identitária imposta pela colonialidade do poder. A autoidentificação representa, também, uma recusa à marginalização social prescrita pela colonialidade do poder. Segundo Weber (2015, grifos no original), “Recusar a autoidentificação implica converter a comunidade remanescente do quilombo em gueto, substituindo-se a lógica do reconhecimento pela lógica da segregação.”

Da mesma maneira, o critério de autoatribuição adotado no Decreto 4.887/2003 rompe com a colonialidade, ao não se ajustar ou não se adequar ao perfil exigido pelo projeto da modernidade (CASTRO-GÓMEZ, 2005).

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI” (Negros em busca de justiça. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p. 11).

Não é demais lembrar que, diante de norma constitucional assim qualificada, recomenda a doutrina se evite “método interpretativo que reduza ou debilite, sem justo motivo, a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais.” (TOFFOLI, 2017).

O artigo constitucional quilombola trouxe os indesejáveis, os marginalizados, os párias para o texto sagrado, a Constituição Federal. Nos dizeres de Castro-Gómez (2005, p. 173), “[...] a constituição define formalmente um tipo desejável de subjetividade moderna”.

É lógico que os quilombolas não se adequam a espécime desejado e alentado por uma subjetividade alicerçada na colonialidade do ser. Por isso, a colonialidade do poder, objetivada na petição do Partido Democratas, conspira contra o critério da autoatribuição: “À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional” (DEMOCRATAS, 2004).

Porém, a decolonialidade da Constituição brasileira exige que sua leitura tenha como “[...] puntos de apoyo [...] otros palenques [...] en las memorias y experiencias de la esclavitud [...]” 54(MIGNOLO, 2007, p. 33). Rosa Weber, por exemplo, em seu voto, cita a jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul, em citação já referida. E, com isso, provoca um leve giro decolonial do direito brasileiro ao apoiar sua tese em uma jurisprudência de um tribunal do continente africano. A maior parte da população da África do Sul é de homens negros e de mulheres negras, atingindo cerca de 80%. As condições de vida de sua população negra são deploráveis. A expectativa de vida, por exemplo, naquele país, é inferior a 60 anos (DATHEIN, 2010). Vale destacar que “Várias dificuldades, desafios e opções econômicas e sociais têm surpreendente semelhança com as do Brasil” (DATHEIN,2010, p. 99).

Asi, cada nudo de la red de esta genealogia es um punto de despegue y apertura que reintroduce lenguas, memorias, economias, organizaciones socialies, subjetividades, esplendores y misérias de los legados imperiales. La actualidad pide, reclama, um pensamiento decolonial que articule genealogias desperdigadas por el planeta e ofrezca modalidades económicas, políticas, sociales y subjetivas “otras”.55 (MIGNOLO, 2007, p. 45).

É a composição racial e as semelhanças sociais da África do Sul com o Brasil que torna essa parte da decisão da ministra Rosa Weber em um discurso decolonial. Ou seja, sua fala se apropria de uma experiência constitucional de um país em que suas riquezas naturais e seus recursos humanos foram explorados por europeus, sendo que a comunidade negra é a principal vítima do processo de colonização ali instalado.

As respostas constitucionais que os juízes e os tribunais europeus apresentam para a resolução dos seus problemas, quando não se trata dos imigrantes, não devem ser aplicadas em solo brasileiro sem o mínimo questionamento ou mesmo adaptações. Rosa Weber, portanto, rema contra a maré da colonialidade do saber.

É a similitude do grau de privação de direitos da comunidade negra, tanto no continente africano quanto em terras brasileiras, que justifica a menção à jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul, e isto é uma postura decolonial. Do mesmo modo, há decolonialidade na fala da ministra Rosa Weber, ao citar a seguinte decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos:

A temática mereceu debate no âmbito do sistema regional interamericano de proteção internacional dos direitos humanos. No caso da comunidade Moiwana v. Suriname (2005), a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito de propriedade de comunidade descendente dos maroons – designação dada em diversos países das Américas aos escravos fugitivos que formaram grupos independentes, que guardam evidentes similaridades com os quilombolas brasileiros – sobre as terras tradicionais com as quais mantidas relações territoriais específicas. (WEBER, 2015).

Dessa maneira, as comunidades quilombolas da América Latina iniciam um processo de diálogo em que as experiências quilombolas do Suriname fortalecem as comunidades de quilombos brasileiras. Ademais, Rosa Weber traz a fala dos subalternos para a jurisprudência constitucional deste país. As vozes dos quilombos ecoam por todo continente americano. A resistência negra ganha, logicamente, uma dimensão continental.

[...] Desenvolveram-se, assim, comunidades de fugitivos que receberam diferentes nomes, como cumbes na Venezuela e palenques na Colômbia. Na Jamaica, no restante do Caribe inglês e no Sul dos EUA, foram chamados de marrons. Na Guiana Holandesa e depois Suriname, ficaram conhecidos como bush negroes. Em São Domigos (Haiti) e outras partes do Caribe francês, o termo era marronage; já em Cuba e Porto Rico, cimarronaje; no Brasil, receberam inicialmente o nome de “mocambos”, para depois serem denominados “quilombos” [...]. (GOMES, 2018, p. 367).

Os quilombos representam uma práxis política (WALSH, 2007) contra a colonialidade do poder. Ao demonstrar que não se trata de um fenômeno localizado em um determinado país, mas que ocorreu e ocorre onde houve escravização, enfraquece a classificação racial realizada pela colonialidade do poder. Houve resistência negra, com heróis conhecidos e anônimos, à inferiorização ditada pelos colonizadores e pela colonialidade.

No caso, pois, não se trata apenas de um pensamento decolonial, mas de uma práxis política que incorpora a proteção que as comunidades negras do Suriname receberam ao patrimônio das comunidades quilombolas brasileiras. Há, nesse comportamento de Weber, um resultado prático, objetivo: o enegrecimento de terras urbanas e rurais no Brasil.

Em convergência com esse entendimento a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do paradigmático caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em 2001, ao declarar violados os artigos 21 (direito de propriedade) e 25 (direito a proteção judicial eficaz) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) pelo Estado da Nicarágua porque, não obstante reconhecida, na Constituição daquele país, a propriedade comunal dos povos indígenas sobre as terras por eles ocupadas, jamais havia sido regulado procedimento especifico para permitir o exercício desse direito.

Sentenciou a Corte Interamericana que o Estado demandado – a Nicarágua – equipasse o seu direito interno com mecanismos para efetivar a delimitação e a titulação da propriedade dos povos tradicionais, em conformidade com seus costumes, fosse por medidas legislativas, fosse por medidas administrativas ou de qualquer outro caráter justamente por se tratar de direito fundamental. (WEBER, 2015, grifo no original).

A ADI 3239 é o mecanismo que a colonialidade do poder se utiliza para frear a implementação do direito que as comunidades quilombolas possuem à titulação das terras que ocupam. A colonialidade defende apenas uma única forma de apropriação da propriedade. Qualquer outra é rechaçada pelo silêncio das leis, dos tribunais ou pelo uso da violência. Essa é a manobra que a minstra Rosa Weber denuncia.

Nesse giro decolonial, merece ser mencionada a referência que Weber faz das Constituições do Equador e da Colômbia.

Observo, no direito comparado, que a Constituição adotada em 2008 pela República do Equador, após referendo popular, reconhece as comunidades afroequatorianas como povos distintos e assegura a proteção das terras comunais e dos territórios ancestrais por elas ocupados. (WEBER, 2015).

No mesmo passo, a Constituição da República da Colômbia, promulgada em 1991, consagra, no Artigo 55 das Disposições Transitórias, o direito de propriedade das comunidades negras daquele país sobre as terras por elas tradicionalmente ocupadas segundo suas próprias práticas, verbis: [...]. (WEBER, 2015).

A ministra do Supremto Tribunal Federal Rosa Weber profana a jurisprudência constitucional brasileira ao mencionar normas constitucionais de países latino-americanos e que possuem dimensão positiva superior a do art. 68 do ADCT. Ora, a Constituição equatoriana menciona expressamente que o Estado respeita a propriedade coletiva de suas comunidades de quilombos, enquanto a colombiana constitucionaliza a territorialidade quilombola.

Há, pois, uma fumaça de uma “[...] revuelta intelectual contra esa perspectiva y contra esse modo eurocêntrico de producir conocimiento56 [...]” (QUIJANO, 2007, p. 95), no voto da ministra Rosa do STF Weber. Toffoli, em menor grau, embarca nessa rebeldia, que foi instaurada pelos movimentos de resistência, com suas narrativas conduzidas à ADI pelos amici curiae:.

Com a Constituição de 1988, operou-se, nas palavras de Treccani, “uma verdadeira inversão do pensamento jurídico: o ser quilombola, fato tipificado como crime durante o período colonial e imperial, passa a ser elemento constitutivo de direito” (p. 79). Ou como destaca Dalmo Dallari, “[a] questão dos quilombos saiu das páginas da História do Brasil, deixou de ser apenas o registro de uma enorme injustiça praticada no passado, para ser encarada como um fato da realidade brasileira do século XXI”. (OLIVEIRA, 2001, p. 11).

Os sobreviventes à colonialidade do poder ocupam um espaço no constitucionalismo brasileiro. É a experiência dos que resistem ao genocídio da colonialidade que ecoa pelos artigos da Constituição de 1988. Porém, é preciso enegrecer as vozes dos que falam em nome dos quilombos.

O conceito decolonial de quilombo orienta que se perceba, antes de tudo, que a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Tal poder se fundamenta e tem como pedra angular a classificação racial/étnica da população mundial, atuando em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas da existência cotidiana (QUIJANO, 2007).

Por isso, pode-se afirmar que as comunidades de quilombos são instrumentos de resistência ao colonialismo e à colonialidade do poder. Logo, cotidianamente se erguem quilombos nas zonas urbanas e rurais do Brasil e de toda a América Latina. Onde há colonialidade, há quilombismo e quilombagem.

O artigo 68 do ADCT não se trata, portanto, de uma mera norma, ainda que sua concretude não tenha se materializado por inteiro. Há de se perceber, por perspectiva decolonial, que “[...] o texto [constitucional] é sempre um evento – representa a real possibilidade de ruptura com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista) [...]” (STRECK, 2006, p. 5).

Tal preceito, por conseguinte, possui natureza decolonial ao impedir a invisibilidade histórica das comunidades quilombolas e ao possibilitar o enegrecimento do branco solo brasileiro. É do artigo constitucional quilombola que ecoam os tambores, anunciando que Dandara e Marielle vivem.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira. Disputa de sentidos do conceito de quilombo.: Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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