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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

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Agenda 14/09/2022 às 09:38

4 REFLEXÕES DECOLONIAIS FINAIS

Esta pesquisa qualitativa analisou, sob a perspectiva de colonialidade e decolonialidade, o conceito de quilombo que foi disputado no campo jurídico, autonomizado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3239.

Na referida ação, o Partido Democratas pretendia que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, editado para regulamentar o artigo constitucional quilombola – art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988.

O julgamento da ADI 3239 encerrou-se em 8 de fevereiro de 2018, portanto, 14 anos após o seu ajuizamento. Apenas o relator da ação, Cézar Peluso, votou a favor do pedido dos Democratas. Votaram pela constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 as ministras Rosa Weber, Carmem Lúcia, e os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio, Celso de Mello57.

No entanto, Dias Toffoli e Gilmar Mendes adotaram o entendimento, minoritário, de que apenas as comunidades que se encontravam de posse de suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição republicana, ou que comprovassem a suspensão ou a perda da posse em função de atos criminosos praticados por terceiros possuiriam o direito ao título de propriedade.

Dessa forma, o giro decolonial grafado em algumas partes do texto do Decreto 4.887/2003, materializado, principalmente, pelos critérios da autoatribuição e pela territorialidade, manteve-se incólume na leitura que os ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram da mencionada norma jurídica.

Dissipa-se, portanto, em parte, o olhar do colonizador sobre as comunidades quilombolas. Anteriormente tipificadas como crime, agora sinalizam um direito que se adquire pela posse de terras. Em um solo praticamente ocupado por brancos, os quilombos enegreciam as terras brasileiras. É disso de que se tratavam as comunidades quilombolas: a luta de homens negros e de mulheres negras contra a desumanização e por terra onde pudessem cultivar os seus modos de criar, de fazer e de viver.

A orientação teórica foi oriunda do pensamento do grupo modernidade/colonialidade que possibilitou lançar olhar sobre esta realidade para perceber que as regras ditadas pelas instituições do Brasil Colônia e do Brasil Império em relação às negras e aos negros foram revogadas como normas. Todavia, a colonialidade do poder, do saber e do ser ainda determina quais são os papéis e os lugares destinados à comunidade negra na organização social. Ainda os mantêm na desigualdade e os trata como seres inferiores.

A colonialidade desconhecendo, pois, qualquer barreira, porventura existente, entre Colônia, Império e República, assenzala os negros e as negras nas periferias, nas favelas, nos manicômios e nos presídios. Não há no direito contemporâneo brasileiro regramento que considere os afrodescendentes como objeto, mas a colonialidade os desumaniza, os coisifica, por meio da miséria, do analfabetismo, do aprisionamento e de outras inúmeras barreiras sociais. Os indicadores sociais brasileiros afirmam: corpos negros são descartáveis.

Em um primeiro momento, os quilombos reagiam contra a coisificação e contra a desumanização desencadeadas pelo direito; agora, são instrumentos de luta ante a continuidade desse processo de negação da humanidade de homens negros e de mulheres negras provocada pela colonialidade.

A quilombagem de Clóvis Moura e o quilombismo de Abdias Nascimento revelam que os mecanismos de resistência negra à colonialidade não ocorrem de forma singular, ao contrário, são múltiplos, diversos, envolvendo cores, sons, silêncios, articulações diferentes, embora todos expressem a força simbólica do significado de um quilombo. Por isso, o RAP, as escolas de samba, as ocupações dos sem-terra são quilombos. Ousa-se dizer aqui que os brincantes do bumba meu boi, do samba de cumbuca, do pagode do Mimbó, do tambor de crioula são expressões quilombolas.

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Os quilombos representam, pois, a decolonialidade, uma vez que subvertem as hierarquias, os lugares e os papéis tipificados pela colonialidade e um giro decolonial ao valorizar os saberes e os sabores das comunidades quilombolas.

Os quilombos materializam, portanto, a resistência à classificação imposta pela colonialidade e a seus mecanismos de poder, de controle e de reprodução social. Assim, a inclusão do artigo constitucional quilombola no texto constitucional representa a decolonialidade. Onde há colonialidade, há quilombos.

A experiência da comunidade negra na luta contra a opressão da colonialidade do poder encontra-se estampada na principal lei da República. Por isso, não há como esquecer essa tática negra de resistência. Há uma norma que garante terras às comunidades negras quilombolas envoltas a outras que divinizam a propriedade privada e que elevam a livre concorrência como princípio da atividade econômica brasileira.

Na verdade, cuida de um leve giro decolonial. A própria localização da norma constitucional quilombola, incluída entre aquelas que constituem o corpo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, demonstra que a colonialidade encontrava-se atenta para as movimentações efetuadas pelos quilombolas, reagindo oportunamente.

Do mesmo modo, o Decreto 4.887/2003, cujo conteúdo anuncia um giro decolonial, sofreu uma oposição sistemática da colonialidade, por meio do ajuizamento de uma ação judicial: a ADI 3239.

Não se pode esquecer que como texto decolonializado, sua interpretação, e, portanto aplicação, encontra-se sujeita à visão de mundo de instituições formatadas na colonialidade. Esta foi a aposta do Partido da Frente Liberal, atual Democratas. A tática adotada pelo DEM parecia acertada, uma vez que o relator da ADI 3239, Cézar Peluso, considerou que o Decreto 4.887/2003 feria a Constituição.

Em seu voto, Peluso destila colonialidade. Em primeiro lugar, entende que o artigo 68 do ADCT não é uma norma de eficácia plena e de aplicação imediata e que o Decreto 4.887/2003 seria responsável pela desestabilização da paz social. Pondera, ainda, que as comunidades quilombolas deveriam comprovar que haviam procurado abrigo nas terras que, agora, reclamavam como suas, antes ou logo após a abolição, e lá permanecido até a promulgação da Constituição de 1988.

Eis a colonialidade materializada no voto de Cézar Peluso: os quilombos expressam um fenômeno social que findou com o fim do regime escravocrata em terras brasileiras. Os negros e as negras fugiam para conquistar a tão sonhada liberdade.

No entanto, os discursos de Rosa Weber e de Dias Toffoli que floram da ADI 3239, embora dúbios, contraditórios, apontam para uma visão decolonial da resistência negra coletiva. É a partir deles, principalmente, que emergem da ADI 3239 o conceito decolonial das comunidades quilombolas. Quilombo é toda comunidade negra que se autoidentifica como tal, independentemente, portanto, de elaboração de laudo antropológico ou de quaisquer outras espécies de perícia administrativa ou judicial para avaliar a veracidade de tal afirmação. E pelo fato de o artigo 68 do ADCT abrigar um direito fundamental, cabe ao Estado organizar sua estrutura administrativa a fim de titular a parcela das terras que a comunidade, baseada em critérios de territorialidade, identifica como integrante do quilombo.

Dessa forma, torna-se perceptível dos discursos textuais da ADI 3239 que os quilombos são direitos humanos de negros e de negras brasileiras que se expressam coletivamente na luta contra a violação da dignidade da pessoa humana negra. Direitos que são violados cotidianamente pelas situações simbólicas e reais concebidas pela colonialidade.

Deveras, a colonialidade está sempre à espreita. Entende-se, aqui, por exemplo, que, embora a ação proposta pelo DEM tenha sido julgada improcedente, a perspectiva decolonial, como texto, expressa no artigo constitucional quilombola, encontra-se sob o risco de ter sua eficácia esvaziada pela colonialidade do poder.

As razões são diversas. O decreto 4.887/2003 abriga apenas uma das experiências das comunidades de quilombos. Há outras manifestações quilombolas, conforme apontam Abdias Nascimento e Clóvis Moura, não protegidas por aquela norma; a medição e a demarcação das terras, ainda que se respeitem os critérios de territorialidade indicados pela comunidade de quilombos, requer uma instrução procedimental em que a narrativa quilombola pode ser negada ou violada pelo conhecimento científico; a própria existência do decreto 4.887/2003 enfraquece o entendimento de que o artigo 68 do ADCT comporta uma norma garantidora de um direito fundamental e de eficácia plena, portanto, despido da necessidade de integração legislativa.

Depreende-se, portanto, que a colonialidade do poder, define, em sua maior parte, os papéis e os lugares sociais que os negros e as negras ocupam na sociedade brasileira. Mas não só isso: permanece sobre seu controle a quantidade da parcela do solo que será destinada às comunidades quilombolas e, ainda, qual a espécie de conhecimento que serve para aquilatar as falas e as experiências de homens negros e de mulheres negras. A autoatribuição é decolonial, mas a territorialidade, disciplinada no Decreto 4.887/2003, excreta colonialidade do poder, do saber e do ser.

A ambiguidade que o Decreto 4.887/2003 guarda em si talvez seja pelo fato de que a atual Constituição brasileira não propôs, explicitamente, como o fez a Constituição boliviana de 2009, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada na decolonização. Embora isto não fosse o bastante para resgatar a humanidade roubada de milhões de pessoas negras, pelo menos apontava um caminho epistêmico a ser trilhado, e, sem dúvida, assim como ocorre na Bolívia, a condição de colonialidade não estaria superada, cabendo a exigência de resistência permanente.

Independentemente de tudo isto, os quilombos continuam sendo instrumentos de resistência à colonialidade. Se, no campo jurídico, revela-se predominante intelectual, no dia a dia são as comunidades quilombolas que dão o tom rebelde. Na verdade, o giro decolonial se traduz em cores e sons diversos.

Por isso, o pensamento decolonial abriga infindas possibilidades de pesquisa social, uma vez que a colonialidade do poder, a partir de uma classificação racial, atua em cada um dos planos, dos âmbitos e das dimensões materiais e subjetivas da existência de homens negros e de mulheres negras.

É preciso, pois, decolonizar o olhar, o agir. A percepção da colonialidade do poder não permite neutralidade, ainda mais para quem tem a pele escura, como o autor da presente pesquisa. Não se pode esquecer que a colonialidade classifica os negros e as negras como seres inferiores, desprovidos de quaisquer saberes, ou mesmo de alma.

Por isso, esta pesquisa trouxe as falas de pessoas negras que escreveram sobre a escravização e sobre o fenômeno quilombola, destacando, aqui, Maria Sueli Rodrigues de Sousa (2015), Débora Cardoso (2014), Solimar Oliveira Lima (2016), Francisca Raquel Costa (2014) e Mairton Celestino da Silva (2014). Negros e negras piauienses que enfrentam a colonialidade do saber.

Ao longo destas páginas, há algumas lágrimas negras, mas há, também, a certeza da necessidade de continuar resistindo à colonialidade do poder, do saber e do ser e que o caminho a ser trilhado foi aberto pelo primeiro homem negro e pela primeira mulher negra que fugiu para as matas para organizarem coletivamente os quilombos.


Apêndices - CATEGORIZAÇÃO DOS DISCURSOS TEXTUAIS

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas. APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina. APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso. APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber. APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli. APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República. APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público.

Legenda: Colonialidade do poder – Colonialidade do saber – Colonialidade do ser

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas

  • A demarcação das áreas, antes de levar em conta critérios históricos-antropológicos, será realizada mediante a indicação dos próprios interessados (art. 2º, § 3°).
  • O ato normativo ora contestado refoge – e muito á matéria de que trata o mencionado dispositivo, pois disciplina direitos e deveres entre particulares e administração pública, define os titulares da propriedade das terras onde se localizam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa.
  • Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer a futuras indenizações.
  • A toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional .
  • Segundo a letra da Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos.
  • Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes-, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas que efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT, e realizar, por via oblíquas uma reforma agrária sui generis.
  • Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição.
  • De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional “suas terras” constante do art.68 do ADCT.
  • Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país.
  • A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados.
  • Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural.
  • Parece evidente que as áreas a que se refere a Constituição consolidam-se naquelas que, conforme estudos histórico-antropológicos, constatou-se a localização efetiva de um quilombo.
  • Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição.
  • A área cuja a propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão-somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formara.
  • Ademais, ter-se-ia o uso de recursos públicos por ocasião de indenização decorrentes de desapropriações realizadas ao arrepio da Constituição.

APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina58

APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso59

APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber60

APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli61

APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República

APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira. Disputa de sentidos do conceito de quilombo.: Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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