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DPVAT: reflexões sobre prescrição e decadência e os interesses das vítimas de acidentes de trânsito

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Agenda 22/06/2007 às 00:00

4. O DPVAT e a prescrição

É de se indagar, a par do que vimos até aqui, acerca da incidência do art. 206, § 3.º, IX do CC.

Esta norma substantiva estabelece prescrever em 3 (três) anos "a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de responsabilidade civil obrigatório"

Como demonstrado acima, o seguro DPVAT não é seguro de responsabilidade civil fundado na teoria da culpa, mas sim seguro obrigatório de danos pessoais, cuja indenização deve ser prestada, nos termos da própria lei do DPVAT, a todas as vítimas de acidentes automobilísticos independentemente de apuração de culpa, bastando seja demonstrado a existência de dano (às vítimas transportadas ou não) e sua causa (acidente envolvendo veículos automotores).

Também é certo que o legislador substantivo jamais cuidou de estabelecer prazos prescricionais para os seguros obrigatórios de danos pessoais, que é o caso do DPVAT.

Por isso podemos concluir que em razão da omissão legislativa no que tange aos seguros obrigatórios de danos há de prevalecer a incidência do art. 205 do CC, competindo a nós, operadores do direito, sepultar a péssima herança decorrente da equivocada nomenclatura do antigo Recovat. [14]

Cumpre-nos estabelecer, definitivamente, que o DPVAT não é seguro de responsabilidade civil e por isso não está sujeito ao prazo do art. 206, § 3.º, IX do CC.

A pretensão dos beneficiários (vítimas, transportadas ou não, passageiros ou motoristas) do DPVAT prescreve, então, em 10 (dez) anos a contar da ciência expressa dada ao beneficiário da negativa da seguradora ao pagamento da indenização, nos termos da Súmula 229 do Superior Tribunal de Justiça, [15] ou da data do recibo de pagamento realizado a menor. [16]

Cumpre-nos também esclarecer que não se aplica o prazo prescricional estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor para a solução dos conflitos decorrentes do DPVAT.

Com efeito, não se pode falar em dano causado por defeito do produto ou serviço o simples fato de a seguradora negar-se ao pagamento da indenização pretendida pela vítima do acidente de trânsito.

A jurisprudência formada no universo dos seguros facultativos, perfeitamente aplicável, por analogia, aos casos de DPVAT, no que tange aos prazos prescricionais, é assente no sentido de afastar, por tais razões, a prescrição qüinqüenal do Código de Defesa do Consumidor:

"Civil. Acidente de veículo. Seguro. Indenização. Recusa. Prescrição ânua, Código Civil, art. 178, § 6.º, II. Inaplicabilidade à espécie do Código de Defesa do Consumidor, Art. 27.

I. Em caso de recusa da empresa seguradora ao pagamento da indenização contratada, o prazo prescricional da ação que a reclama é o de um (1) ano, nos termos do art. 178, § 6.º, II, do Código Civil.

II. Inaplicabilidade do lapso prescricional qüinqüenal, por não se enquadre a espécie do conceito de ‘danos causados por fato do produto ou do serviço’, na exegese dada pela 2ª Seção do STJ, uniformizadora da matéria, ao art. 27 c/c os arts. 12, 13 e 14 do Código de Defesa do Consumidor.

(...) Na hipótese aqui versada, contrato de seguro de veículos, seriam exemplos de fato do serviço aqueles acidentes decorrentes das garantias adicionais ao contrato, como o caso do segurado que, por mera pane no sistema elétrico de seu automóvel, acionava a assistência 24 horas, vindo o guincho que rebocava seu carro até a oficina mais próxima, sofrer colisão, causando-lhe grandes avarias em seu veículo. (...)" (STJ, REsp 207.789, 2ª Seção, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 27.06.2001, DJ 24.09.2001). [17]

"Seguro. Prescrição. Ação de cobrança de Indenização securitária proposta mais de um ano após a negativa da seguradora. Prescrição do direito ocorrida. Prazo ânuo é do CCB e não do CDC, que se refere às pretensões decorrentes de danos de acidente de consumo previstos nos arts. 12 e 14 do CDC. Sentença correta. Recurso Improvido." (ApCív 2004.001.01921; rel. Des. José Carlos Varanda; 10ª Câm. Cív do TJRJ; j. 29.06.2004). [18]


5. Direito intertemporal

Os prazos prescricionais (e também os decadenciais) sofrem influências, muitas vezes indesejáveis, com o surgimento de uma nova lei, principalmente quando a discussão recai sobre os casos de direitos adquiridos, conforme magistério de Humberto Theodoro Junior:

"Quando uma lei nova interfere nos prazos prescricionais, a preocupação histórica sempre se situou no plano do direito adquirido e, conseqüentemente, na necessidade de evitar efeitos retroativos que pudessem desestabilizar a situação jurídica já estabilizada." [19]

É necessário sejam criadas, assim, regras de transição para a aplicação da nova lei, a fim de que sejam respeitadas as relações estabelecidas sob o amparo da lei revogada e, por conseguinte, o novo prazo prescricional não traga prejuízos ao titular da pretensão.

Nessas hipóteses não se pode admitir que os prazos da lei revogada continuem seu curso normal até o final escoamento do tempo por ela previsto.

Também não é correto desejar que os novos prazos sejam aplicados imediatamente, principalmente em relação àqueles que já iniciaram seu respectivo curso sob a vigência da lei revogada.

Para estas situações o Código Civil previu uma específica regra de transição, nos termos de seu art. 2.028: "Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada."

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É de se entender, assim, que em relação à ampliação de determinado prazo prescricional, será aplicada a contagem estabelecida pela nova lei, tomando-se por termo inicial a data do fato ocorrido sob o amparo da lei anterior.

Para as hipóteses de diminuição dos prazos prescricionais, o Código Civil estabelece que deve ser contado e aplicado o prazo da nova lei quando, na data em que entrou em vigor, ainda não tiver transcorrido a metade do prazo fixado pela lei anterior.

Quando, todavia, na data em que passou a viger já tiver transcorrido mais da metade do prazo prescricional estabelecido pela lei anterior, este haverá de ser respeitado e sua contagem seguirá seu curso absolutamente normal até o final.

É mister que se busque conciliar, sempre, os prazos da lei nova e da velha, conforme metodologia adotada por Roubier, invocada por Humberto Theodoro Júnior:

"(...) conta-se o prazo da lei nova a partir de sua vigência, mas não se despreza a fração já transcorrida antes dela. O prazo menor será aplicado, mas se antes de seu vencimento completar-se o prazo antigo (maior), este é que prevalecerá, pois não seria lógico que tendo a lei nova determinado a redução do prazo prescricional sua aplicação acabasse por proporcionar à parte um lapso maior ainda que o da lei velha. Se, porém,o prazo novo (o menor) terminar antes que ultimada a contagem do antigo, é por aquele e não por este que a prescrição se consumará." [20]

Entendemos, assim, não ser possível aplicar retroativamente o prazo menor da nova lei a contar do nascimento da pretensão, sob o argumento de ainda não ter transcorrido mais da metade do prazo.

O efeito retroativo acarretaria, sem dúvida alguma, situações absolutamente temerárias e indesejáveis, eis que a prescrição consumar-se-ia até mesmo antes do início da vigência do novo Código.

As vítimas de acidentes automobilísticos, ocorridos antes da vigência do novo Código, não terão grandes problemas em relação às regras de transição.

Têm elas o prazo, decadencial, de vinte anos para reclamarem, administrativamente, o recebimento da indenização, a contar da data do sinistro, se na data em que passou a viger o novo Código Civil já tiver transcorrido mais da metade do prazo conferido pelo Código anterior, ou seja, se já tiver decorrido, por exemplo, o lapso de dez anos e um dia. Se ainda não tiver decorrido mais da metade do prazo, aplicar-se-á o prazo novo, de dez anos, a contar da entrada em vigor do novo Código.

Caso a resposta negativa da seguradora, ou o pagamento a menor, ocorra antes da entrada em vigor do novo Código, haverão de ser observadas as mesmas regras de transição para exercerem suas pretensões em juízo. Todavia, caso a resposta negativa da seguradora, ou o pagamento a menor, ocorra em data posterior à entrada em vigor do novo Código, o prazo prescricional para exercerem suas pretensões em juízo será de dez anos.

Para as vítimas de acidentes ocorridos a partir da vigência do novo Código o prazo será sempre o da lei nova, de dez anos, tanto para pleitearem o recebimento da indenização administrativamente (prazo decadencial), quanto para, posteriormente, exercerem suas pretensões em juízo depois da reposta negativa da seguradora ou do pagamento realizado a menor (prazo prescricional).


6. Direito projetado

Há uma melhor solução, de lege ferenda, no sentido de atribuir-se especificamente para os casos de seguros obrigatórios em geral o prazo prescricional único de 03 (três) anos, a contar da ciência da recusa expressa da seguradora, nos termos do art. 136, § 4.º, do Projeto de Lei 3.555, de 2004 (PL 3.555): [21]

"Art. 136. Prescrevem:

(...)

§ 4.º Em três anos, contado o prazo da ciência da recusa expressa da seguradora, as pretensões fundadas nos seguros obrigatórios."

Referido prazo prescricional, de acordo com o PL 3.555/2004, será suspenso pelas causas previstas pelo Código Civil e, ainda, com o recebimento do aviso de sinistro pela seguradora e mais uma única vez quando a seguradora receber pedido de reconsideração (art. 138, I e II), cessando a suspensão com a comunicação ao segurado da decisão da seguradora:

"Art. 138. Além das causas previstas no Código Civil, a prescrição da pretensão relativa ao recebimento de indenização ou capital será suspensa:

I – Com o recebimento pela seguradora do aviso do sinistro;

II – Uma única vez quando a seguradora receber pedido de reconsideração da recusa de pagamento.

Parágrafo único. Cessa a suspensão quando o interessado for comunicado da decisão da seguradora."

O PL 3.555/2004 também cuidou de prever a decadência do direito à indenização ou ao capital segurado para o beneficiário que não observar o prazo improrrogável de 03 (três) anos para avisar o sinistro à seguradora:

"Art. 140. Decai do direito à indenização ou ao capital, o beneficiário que deixar de avisar o sinistro à seguradora no prazo de três anos." [22]

Com a aprovação do PL 3.555/2004 os beneficiários do DPVAT terão de observar dois novos prazos, distintos, um sob pena de perder o direito à indenização e outro sob pena de prescrição da pretensão contra a seguradora.

Atualmente, no entanto, haja vista a já mencionada ausência de previsão legal, a prescrição ocorrerá em 10 (dez) anos a contar da comunicação expressa ao segurado da negativa da seguradora ao pagamento da indenização, ou da data do recibo de pagamento realizado a menor.

Todavia, entendemos que assim como nos seguros facultativos individualmente contratados, também as vítimas-beneficiárias do DPVAT haverão de comunicar o sinistro à seguradora durante um primeiro prazo, de natureza decadencial, iniciado com a ocorrência do evento danoso.

Caso não observe este prazo decadencial o beneficiário estará sujeito à perda do direito ao recebimento da indenização a título de DPVAT, conforme notável doutrina de Ernesto Tzirulnik, Flávio de Queiroz B. Cavalcanti e Ayrton Pimentel: [23]

"A ocorrência do sinistro estabelece para o segurado o ônus de comunicar o evento à seguradora, conforme já examinado. Surge, igualmente, a obrigação para a seguradora de promover a regulação do sinistro. Há uma pretensão de obrigação de fazer, exigível pelo segurado. Dessa maneira, desde o instante em que o segurado tenha ciência da ocorrência do sinistro, começa a correr um prazo de prescrição.

"Caso o segurado se quede inerte, decorrido o prazo legalmente previsto, consuma-se a prescrição, [24] extinguindo sua pretensão perante a seguradora.

"Caso o segurado exerça seu ônus e efetue o aviso de sinistro, terá pretensão apenas se a seguradora se negar ao cumprimento de suas obrigações contratuais, ou se demorar injustificadamente as providências ou respostas. (...)

"Enquanto não houver negativa, não surge propriamente a pretensão, pois não caracterizada a violação. O segurado não pode, todavia, ser compelido a esperar por tempo indefinido. Quando alguma regra, legal, administrativa ou contratual, fixar prazo, o ultrapasse dele caracteriza uma violação autônoma, fazendo surgir a pretensão."

A doutrina se refere à incumbência do segurado em comunicar o sinistro à seguradora tão logo lhe seja possível, sob pena de perder o direito de pleitear a indenização, como sendo um ônus e não um dever.

Cumpre-nos, assim, estabelecer, ainda que rapidamente, a diferenciação entre ônus e dever, com o auxílio da valiosa doutrina de Paulo Luiz de Toledo Piza:

"No estágio atual da dogmática jurídica sustenta-se que o ônus, tal qual a obrigação, é uma relação de sujeição; porém, enquanto no ônus há a possibilidade de escolha entre o sacrifício de um interesse próprio e o alheio, na obrigação não há essa alternativa. A distinção é importante, porque, tratando-se de ônus, o titular do interesse não tem ação para exigir a satisfação do seu interesse, ao passo que, tratando-se de obrigação, diferentemente, o titular pode exigir judicialmente o cumprimento da prestação." [25]

As seguradoras têm interesse em que o segurado ou, no caso deste estudo, as vítimas de acidentes de trânsito beneficiárias do DPVAT comuniquem o sinistro o mais rápido possível, a fim de que paguem a respectiva indenização e recalculem suas reservas e provisões técnicas de acordo com a nova realidade.

Todavia, não podem as seguradoras compelir os beneficiários que exerçam este ônus no tempo em que lhes for mais adequado. Não têm ação contra o segurado visando tal desiderato, ao contrário do que ocorreria se a incumbência dos beneficiários do DPVAT fosse classificada como dever.

Às seguradoras cabe apenas aguardar que os beneficiários, sob pena de verem extintas suas pretensões perante aquelas, lhes comuniquem a ocorrência do sinistro e pleiteiem a indenização, quando se iniciará a contagem do prazo para a liquidação das indenizações.

Diante disto e conforme já vimos acima, haja vista a atual ausência de regra legal neste sentido, não nos resta alternativa senão adotar, como prazo decadencial para as vítimas pleitearem a indenização administrativamente, o mesmo prazo que lhes foi conferido para o exercício de suas pretensões em juízo, ou seja, dez anos (art. 205 do CC).

Sobre o autor
Marco Antonio Scarpassa

advogado em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCARPASSA, Marco Antonio. DPVAT: reflexões sobre prescrição e decadência e os interesses das vítimas de acidentes de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1451, 22 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10050. Acesso em: 20 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho publicado originalmente na Revista de Direito Privado, Vol. 29, ano 6, jan.-mar./2007, coord. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Editora Revista dos Tribunais.

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