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Ordinária ou bonitinha: violência contra a mulher no cinema e nas redes sociais

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Reflete-se sobre a interseccionalidade descolonial, que envolve o tratamento do estupro e a desigualdade de gênero, ao perpassarem-se as dimensões econômicas, raciais e socioculturais.

Resumo: Este artigo resulta de reflexão conjunta e interdisciplinar, que objetiva promover um diálogo interseccional sobre gênero e patriarcado na sociedade brasileira, depreendendo-se da análise do cinema e das redes sociais o transitar entre o real e a ficção, o legal e o legítimo, em suas permanências e mudanças sob o olhar descolonial. Almeja-se realizar uma análise de manifestações feitas nas redes sociais, envolvendo denúncias sobre crimes semelhantes aos relatados no texto de Nelson Rodrigues, retratado no filme brasileiro Bonitinha, mas Ordinária, de 2013. A metodologia aqui empregada é qualitativa, descritivo-analítica, em pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados permitirão elucidar sobre a permanência dos valores da colonialidade, nas dimensões econômica, racial e sociocultural, demonstrando-se o quanto esses continuam presentes na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Filme brasileiro. Redes sociais. Estupro. Descolonial. Patriarcado.


Considerações iniciais

Uma pesquisa pode ter por motivação razões intelectuais, pessoais e práticas, mas, sejam elas de que ordem for, só garantirão a cientificidade da investigação quando seus resultados proporcionarem a realização de algo de forma mais eficaz e/ou promoção do avanço da reflexão, que, não resultando de desejo particular ou vontade do pesquisador, para sua consecução, contribui para a transformação social.

A construção do conhecimento inovador requer o conhecimento mínimo sobre o tema investigado, para permitir ultrapassar limites visíveis ao observador comum. Assim que a delimitação espaço-temporal e a consecução dos objetivos traçados estarão subjacentes à formulação da pergunta de pesquisa, cuja resposta será alcançada a partir da definição do caminho a ser percorrido, no qual se devem considerar seus requisitos, ou seja, a forma como métodos, técnicas e procedimentos serão contemplados, percurso no qual transpareça o fundamento teórico capaz de fornecer as melhores respostas para a pergunta inicial.

A investigação da qual resultou este artigo é qualitativa em sua abordagem, sendo conduzida na forma descritivo-analítica, por intermédio de pesquisa bibliográfica e documental, tendo como questão norteadora a forma como a interseccionalidade descolonial permeia o estupro, tema central na narrativa do filme brasileiro “Bonitinha, mas Ordinária”, adaptação de 2013 da peça homônima de Nelson Rodrigues, feita quarenta anos depois da primeira versão para o cinema (de 1963), e quando em um vídeo (case) realidade de um processo judicial que circulou nas redes sociais dos brasileiros, no início do mês de novembro de 2020.

Importante ressaltar sobre a abordagem da obra em questão adaptada para o cinema que, ao falarmos de literatura, partindo do pensamento de Barthes (2004), refletimos também sobre o momento e contexto histórico em que determinada obra foi concebida. Isso porque o autor escreve a partir da imitação de signos que, em algum momento, foram emitidos, isto é, de um gesto anterior. E, como tal, “[...] o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (BARTHES, 2004, p. 62). Isso nos faz analisar o drama rodrigueano considerando a sociedade, história, psique e liberdade do autor.

É de conhecimento geral que a obra de Nelson Rodrigues contém altas doses de erotismo, violência nua e crua, apontando o cinismo e a hipocrisia da sociedade. Tal quais conhecidas personagens mulheres do realismo, como a Madame Bovary, de Flaubert, com as consequências para a mulher que tenta escapar das normas sociais de sua época, e como Capitu, de Machado de Assis, vista e narrada pela subjetividade de Bentinho, sem ter ali a sua voz propriamente dita, as mulheres das obras rodrigueanas apresentam o papel da mulher em seu determinado contexto social.

Objetiva-se, no diálogo descolonial, presente nas dimensões interseccionais, contribuir para a reflexão sobre a permanência do patriarcado e a desigualdade de gênero. A construção do texto se fez em três momentos: nos dois primeiros, envolvem-se análises descritivas do filme e do case veiculado nas redes sociais dos brasileiros; no terceiro e último, faz-se uma reflexão dos dois anteriores, propiciando um avanço em perspectiva descolonial.


“Bonitinha, mas Ordinária”: um filme de 1963

Escritor brasileiro, considerado por muitos críticos como subversivo e polêmico, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) ficou conhecido por construir, em seus textos, personagens imperfeitos, trazendo à baila, muitas vezes, ações duvidosas, obsessivas e mórbidas (MARIA, 2013), para retratar em suas obras, simplesmente, “a vida como ela é...”1.

Aborda-se aqui a representação de “Otto Lara Rezende ou Bonitinha, mas Ordinária”, peça teatral de 1962; mais especificamente, sua refilmagem para o cinema em 2013. Essa versão é uma entre várias outras existentes com semelhante ou mesmo título, sendo uma obra que se apresenta como portadora de um caráter atemporal.

A obra de Nelson Rodrigues tem traços realistas e atuais, sendo o filme considerado uma adaptação fiel da obra. Nele, pode-se acompanhar a trajetória de Edgard, um ex-office-boy que recebe, do genro de seu empregador, uma proposta de obtenção de vantagens, possibilidade de “subir na vida” ao se casar com a jovem Maria Cecília, filha caçula de seu patrão, o Dr. Werneck.

A história retrata a figura de um pai presunçoso, dominador e rico, que decide casar a filha como forma de restabelecer a honra manchada depois do que eles mencionam ter sido um acidente. O fato é, na verdade, um estupro, praticado por cinco homens negros, em um baile funk.

Na visão da família, não seria possível realizar um casamento, com um pretendente da alta sociedade, na medida em que costumes e valores nessa sociedade condenavam uma moça deflorada, por ser impura. Dr. Werneck, o pai da jovem rica, insiste em manter o pretendente inferiorizado. Edgar, o pretendente, estava interessado em outra mulher, uma professora, que faz de tudo para sustentar a família, inclusive uma subentendida prostituição.

O jovem rapaz, no transcorrer da história, é atormentado por suas crenças morais e repete constantemente a frase “O mineiro só é solidário no câncer”, atribuída ao escritor Otto Lara Resende2, como forma de enfatizar a impureza e o egoísmo do ser humano, comportamentos que só desaparecem diante de um fato trágico, como a morte iminente.

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A frase do escritor se torna uma verdade absoluta na filmografia, que, no seu transcorrer, evolui para cenas que culminam em uma festa regada a bebidas, drogas, sexo e estupro “de entretenimento”. Logo depois, nas cenas finais, a verdade do estupro da jovem Maria Cecília (filha do magnata) é revelada, apontando existir por trás de sua fragilidade e doçura uma mulher ardilosa e manipuladora, sendo ela “a mais pervertida da história por tramar a própria curra junto ao cunhado e amante Peixoto” (SILVA, 2011, p. 106).

O filme termina com a redenção de Edgard, personagem o qual se casaria com a suposta garota desonrada, mas que, no inusitado final feliz rodrigueano, segue ao lado de sua amada Ritinha, a professora (MARIA, 2013). A perversão de Maria Cecília tem um fim trágico na história do autor: a morte. Logo após a revelação de que ela própria fora a mandante, a jovem é assassinada por seu perturbado cunhado e amante.

O texto de Nelson Rodrigues, retratado nesta versão do filme, revela a permanência da ordem patriarcal instituída com o colonizador, na qual os homens acabam, também, sendo reféns, por meio da constante exigência de se apresentarem como “machos” provedores econômicos e sexuais. Os homens colocam as mulheres em posição de inferioridade relacional, que pode ser percebida na constante submissão feminina, inclusive em suas sutilezas, ou no fato de as mulheres estarem à mercê das decisões e ameaças dos homens durante toda a narrativa.

Gallego (2012, p. 98), ao investigar narrativas femininas nos primeiros filmes baseados em peças de Nelson Rodrigues, observa como é:

[...] curioso que o mesmo dramaturgo autor da conhecida provocação (“mulher gosta de apanhar”) tenha propiciado esta reflexão sobre a submissão feminina de um ponto de vista antimachista. Essas personagens não seriam exemplos obrigatórios de um masoquismo feminino primário, mas eram submissas à violência do lugar social (e sexual) que lhes era destinado.

E até mesmo a perversão de Maria Cecília pode ser vista como forma de lidar com as pressões sociais e pouco libertadoras imbuídas às mulheres da época, tendo a culpa e a morte como desfechos punitivos por esse escape transviado.

A história retratada no filme demonstra, ainda, que a desigualdade de gênero é interseccional, pois o tratamento dado à jovem rica e às jovens pobres é distinto. Quando rica, a jovem é vítima de estupro; quando pobre, é pecadora e, senão o for, é retratada como objeto passível de restauração ou compra. Segundo a escritora Heleieth Saffioti (2004, p. 45), “o gênero é a construção social do masculino e do feminino”. Como construção social, entende-se que seja categoria política, em permanente reelaboração.

Neste sentido, os estudos feministas cunham o conceito gênero, a partir do desenhado por Joan Scott, em 1986, sendo que, desde então, ele passou a ser coletivamente reelaborado, incorporando vulnerabilidades reveladas pelo feminismo, as quais se apoiam na heteronormatividade, ou, ao menos, na biologicidade dos corpos. Gênero, entendido não como mera definição, mas como categoria capaz de dar conta do universo compreendido pelas relações sociais constituídas, incorpora em sua gênese a existência de papéis masculinos e femininos, os quais acabam por enaltecer outras desigualdades, decorrentes dos papéis biológicos, históricos, que definem os dominadores e as dominadas.

A sociedade brasileira tem, entre suas marcas distintivas, a permanência do patriarcado. Mais do que um mero Instituto, ele é modus operandi presente, ainda no século XXI.

Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), escreve um dos blogs feministas mais acessados do Brasil, o Escreva, Lola, Escreva. Ela foi vítima de uma campanha de difamação na Internet, por meio de um blog falso que levava o seu nome e continha postagens de discursos de ódio e contrários às lutas do feminismo. O blog divulgava, ainda, endereço e telefone residenciais da professora, que recebeu ameaças estendendo-se à sua família e ao seu trabalho. Isso resultou na Lei Lola, com seu nome, que investiga crimes misóginos na Internet.

Em seu blog, no post “E o Nelson Rodrigues, hein?”, Lola responde uma leitora que pergunta o posicionamento dela a respeito do autor. Ela afirma ter lido suas obras e o reconhecer como grande dramaturgo. Comenta, também, a ironia de que Nelson Rodrigues, embora pudesse ser considerado à época um “reacionário”, fosse malvisto por eles, por sua escrita subversiva e imoral, e que ainda hoje suas frases de efeito são reproduzidas por pessoas que, em alguns casos, nem sequer leram suas obras ou refletiram sobre seu contexto.

Nelson Rodrigues, que colocou em palavras muito do que o senso comum ditava na época (uma outra frase hedionda sua, esta pouca conhecida, é "Todo tímido é candidato a um crime sexual". E ninguém cita a frase "Sexo é para operário"). A idiotice maior é de quem repete essas besteiras como se fossem verdades indiscutíveis. O centenário de Nelson foi comemorado em agosto de 2012. Nelson morreu e foi enterrado em 1980. E você, qual é a sua desculpa? (ARONOVICH, 2014).

A ativista finaliza o texto indagando essas pessoas que chamam atenção com frases polêmicas do autor, que faleceu em 1980, para que reflitam sobre reproduzirem citações machistas de mais de 40 anos.

Ao realizar uma incursão no pensamento de Aníbal Quijano, María Lugones (2014) ressalta que as relações de dominação/exploração revelam o conflito entre os atores sociais, na disputa pelo controle dos recursos materiais, da autoridade coletiva, do trabalho e, também, do sexo. Dessa forma, a colonialidade coloca sua marca nos territórios, a partir de disputas, objetivas e/ou subjetivas, definindo as formas de dominação e exploração que serão perpetradas e perpetuadas. Neste cenário, inscreve-se a continuidade da compreensão colonial de gênero: eurocentrada, racialmente desigual e patrimonialmente delimitada.

A sequência desta reflexão faz um exercício de se resgatarem conteúdos de colonialidade e os reposicionar em perspectiva descolonial, ou seja, analisarem-se as repercussões envolvendo um recente julgamento do caso estupro, denominado caso de Mariana Ferrer, veiculado pelo The Intercept BR, com o drama rodrigueano refilmado em 2013.


O case Mariana Ferrer: veiculação nas redes sociais do julgamento de um estupro

No dia subsequente à realização de um evento na casa noturna Beach Club Cafe de La Musique, em Florianópolis, estado de Santa Catarina, Brasil, em dezembro de 2018, a jovem Mariana Ferrer, então com 21 anos, que atuava como hostess, registrou uma Notitia Criminis3 por estupro. Seguiu-se esse registro, um inquérito e consequente denúncia do acusado, o empresário André de Camargo Aranha. Como parte dos procedimentos necessários ao andamento do processo, o Poder Judiciário do estado de Santa Catarina, em audiência com mais de três horas de duração, ouviu a vítima e outras testemunhas elencadas no processo.

Durante o curso do processo, todos os atos revestiam-se de sigilosidade, estando protegidos por Segredo de Justiça, medida adotada neste tipo de caso concreto no Brasil (GODOY, 2021).

Para fins de garantia processual, ocorreu a gravação na íntegra da audiência, mas, legalmente, nenhuma parte ou todo da gravação poderia ser veiculada, transmitida ou dada publicidade, sem a devida autorização judicial. Fato esse que não aconteceu, quando do vazamento de um vídeo, de poucos minutos, contendo fragmentos do depoimento de Mariana, no site The Intercept BR4.

Em geral, processos são públicos por natureza no Brasil. Ocorre que o instituto do Segredo de Justiça existe justamente para dar segurança jurídica ao processo e aos envolvidos. Este é um instrumento que serve para resguardar as informações das partes e evitar que informações concernentes à investigação ou ao processo sejam prejudicadas. O zelo pela privacidade é elemento-chave em um caso como o que está sendo abrangido neste trabalho.

O Segredo de Justiça só existe em casos excepcionais, visto que a publicidade dos atos públicos é matéria formalmente constitucional, como pode ser notado no artigo 5º, inciso LX da Constituição Federal Brasileira (1988):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; [...].

Tal instituto ampara valores necessários tanto para o andamento do processo quanto para preservação de informações delicadas de vítimas de violência sexual. Porém, no dia 3 de outubro de 2020, o site The Intercept BR divulgou (Imagem 1) um vídeo contendo partes do depoimento da vítima do processo de estupro, nas quais ela sofreu ataques verbais pelo advogado do réu, durante a realização das perguntas em sua inquirição. A íntegra da gravação foi também publicada, no dia seguinte, pelo Jornal O Estado de São Paulo, após o Ministério Público do estado de santa Catarina acusar The Intercept BR de editar o vídeo, propositalmente, para imputar ao juiz, promotor e demais autoridades presentes uma denúncia de omissão diante das agressões morais, verbalmente feitas pelo advogado do réu contra a vítima, na ocasião de seu testemunho.

Imagem 1 – Print da tela: íntegra da audiência

Fonte: ESTADÃO/YOUTUBE. Publicado em 4 nov. 2020. “Veja a íntegra da audiência de Mariana Ferrer em julgamento sobre estupro”. Disponível em: https://youtu.be/P0s9cEAPysY?t=105 [Acesso em: 8 nov. 2020].

A notícia divulgada no Intercept BR teve como apelo o fato de o réu ter supostamente cometido “estupro culposo”5 e repercutiu, de imediato, nas redes sociais e mídias, pois tal figura delituosa inexiste na legislação brasileira.

Estupro é crime tipificado pelo Decreto-Lei 2848/40, conhecido como Código Penal Brasileiro. Este, em seu artigo n. 213, tipifica o crime de estupro como: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 1940).

Tal ato criminoso apenas ocorre quando há intenção de quem o pratica – denominada “dolo” pelo instituto do Código Penal Brasileiro em seu artigo 18 – não podendo, portanto, ocorrer por negligência, imprudência, imperícia ou qualquer tipo de ato involuntário (BRASIL, 1940).

O veículo informativo, além de propagar informação sigilosa pertencente ao Judiciário, também propagou a inverdade a respeito do crime denunciado pelo Ministério Público. No processo em questão, o crime denunciado foi o de Estupro de Vulnerável, tipificado no Código Penal em seu artigo 217-A, parágrafo primeiro:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (BRASIL, 1940).

Porém, apesar disso, o Intercept BR trouxe à tona uma discussão de interesse direto aos poderes Judiciário e Legislativo. Discussão essa que tem cerne na inquirição agressiva para com a vítima em audiência. Os limites ao direito de Ampla Defesa ainda não estavam explícitos.

Embora os direitos da vítima nesses casos estejam assegurados, em matéria materialmente constitucional, a Constituição Federal Brasileira de 1988 é demasiadamente genérica no assunto de agressividade em inquirições. Por isso, fez-se necessária a criação de uma lei específica para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo, a Lei Mariana Ferrer.

Durante os dias subsequentes a essa audiência, uma reação violenta de indignação, pelas injustiças e humilhações impostas pelo advogado do réu, e absolvição do estuprador fora propagada e compartilhada nas redes sociais. Juristas, profissionais de diversas áreas de conhecimento, bem como pessoas que integram diferentes segmentos socioeconômicos, passaram a se pronunciar contra a postura agressiva do advogado, uma aparente indiferença dos agentes do Estado e o desfecho do caso dado com a sentença que absolveu o réu.

Segundo a narradora do vídeo veiculado no Intercept BR, o fato de o réu ter sido inocentado:

[...] gerou revolta entre mulheres e ativistas, levando a hashtag #justiçapormariferrer aos tranding topics do Twitter. Aranha foi identificado, pela polícia, como o autor do estupro, que ocorreu em uma festa, no fim de 2018, em Florianópolis-SC. Ainda assim, a Justiça o inocentou [...]. Até então, Mariana era virgem e afirma ter sido drogada na noite do crime. Aranha é defendido, no processo, por Cláudio Gastão da Rosa Filho, um dos advogados mais caros de Santa Catarina. O Intercept teve acesso às audiências do caso, que mostram Gastão humilhando Mariana [...] O advogado insiste em mostrar fotos sensuais dela, tiradas antes do estupro, e que em nada têm nada a ver com o caso [...] A OAB de Santa Catarina e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos solicitaram esclarecimentos ao advogado e ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, sobre a conduta dele (advogado) durante o interrogatório. Da Justiça, Mariana recebeu apenas o direito de ter o tratamento psicológico dela, da mãe e da irmã menor, pago pela boate em que o crime ocorreu.

(Transcrito do YouTube, The Intercept Brasil, publicado em 3 nov. 2020. “Defesa humilha influencer Mariana Ferrer em julgamento que terminou com sentença de estupro culposo”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X--JAQShBBw [Acesso em: 8 nov. 2020].

As manifestações se fizeram por intermédio da veiculação de mensagens, memes e charges (Imagem 2) com frases de impacto, como “estupro culposo não existe!”.

Imagem 2 Imagens veiculadas nas redes sociais no Brasil

Fonte: HUMOR POLÍTICO. LATUFF/BRASIL 247. Publicada em 5 nov. 2020.
“Fenasps repudia tratamento judicial a Mariana Ferrer. Não existe estupro culposo”. <https://fenasps.org.br/2020/11/05/fenasps-repudia-tratamento-judicial-a-mariana-ferrer-nao-existe-estupro-culposo/>
LEANDRO FRANCO/HUMOR POLÍTICO/INSTAGRAM. [Acesso em 18 abr. 2021].

Por conseguinte, parte relevante da reação nas redes sociais foi a mobilização para assinatura e partilhamento de um abaixo-assinado pedindo por justiça, disponibilizada em Change.org, a qual foi apontada pelo Jornal O Globo como sendo a petição recordista em assinaturas no Brasil, no ano de 2020. Na data da veiculação da notícia (04/11/2020), o documento já atingira 4 (quatro) milhões de assinaturas.

Imagem 3 Justiça por Mariana Ferrer #JusticaPorMariFerrer

Fonte: LEH CONRADO/CHANGE.ORG. [Acesso em: 9 nov. 2020].

A reação imediata em defesa da vítima centrou-se na violência das alegações feitas pelo advogado do réu (apresentado nas imagens mostradas na audiência), e a repercussão negativa do conteúdo levou o Ministério Público do estado de Santa Catarina, órgão acusador, no dia 4 de novembro de 2020, a pedir a divulgação da gravação, na íntegra, como forma de esclarecer os fatos ocorridos na audiência.

O fato é que, mesmo após constantes lutas e consequentes avanços nas discussões sobre as questões de gênero, as mulheres ainda são rebaixadas, desmoralizadas e têm seus discursos relativizados simplesmente pelo fato de serem mulheres (COLLINS; BILGE, 2021).

Trata-se, neste caso concreto da Mariana Ferrer, de uma persistência em reprimir direitos da possível/provável vítima de violência sexual. Direitos esses resguardados pela Constituição Federal Brasileira de 1988, que assegura a dignidade perante o curso do processo.

Elizabeth Grosz (2020, p. 67-9), no texto “Corpos Reconfigurados”, aborda a codificação da feminilidade como corporalidade, em que tal pensamento misógino prende as mulheres na suposição de que, em razão de sua fisiologia, aspectos biológicos e endocrinológicos específicos, elas são mais corporais do que os homens, de forma que, para eles, esse pensamento é validado como:

[...] uma ordem puramente conceitual e, ao mesmo tempo, permite-lhes satisfazer sua (às vezes recusada) necessidade de contato corporal através de seu acesso aos corpos e aos serviços das mulheres.

[...] A hostilidade do pensamento misógino em relação às mulheres e à feminilidade foi comumente racionalizada através da depreciação e derrisão dos corpos das mulheres. Isto explica, em larga medida, a suspeição, ou hostilidade, de início, do feminismo na re-exploração ou reexame de noções da corporalidade feminina, resgatando e representando os corpos de mulheres das perspectivas e dos interesses relevantes para as próprias mulheres.

Percebemos que o pensamento misógino existente se manifesta quando define o corpo das mulheres como “[...] como frágeis, imperfeitos, desregrados, não confiáveis, sujeitos a várias intrusões que estão fora do controle consciente” (GROSZ, 2020). As mesmas características de sexualidade feminina e reprodução são também as que definem as mulheres culturalmente como vulneráveis, fazendo com que o patriarcado diga que mulheres precisam de tratamento especial e proteção somente quando for conveniente e validado aos homens.

Sobre os autores
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABREIRA, Dáfini Lisboa; COUTINHO, Dolores Pereira Ribeiro et al. Ordinária ou bonitinha: violência contra a mulher no cinema e nas redes sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7099, 8 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101339. Acesso em: 19 dez. 2024.

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