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Ordinária ou bonitinha: violência contra a mulher no cinema e nas redes sociais

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Um exercício de análise nas dimensões da descolonialidade

Em sendo a análise descolonial, o desafio que se impõe é a mudança paradigmática. Alinhavar a produção devastadora, denunciadora dos bons costumes, presente na obra rodrigueana, representada no filme abordado neste artigo, com o case Mariana Ferrer. O intérprete menos atento poderia, em um primeiro momento, chegar a conclusões de similaridade entre a mulher no processo real abordado e a personagem feminina principal no drama do filme anteriormente descrito.

Ultrapassar essa leitura alcançando as invisibilidades inerentes ao processo colonial é o desafio que se impõe. Em outras palavras, abordar os conteúdos de aversão, tal qual denunciados pelo amigo de Lara Resende, ou as subjetividades que ultrapassaram o dilema legalidade/legitimidade, presentes no debate disseminado nas redes sociais, entre os brasileiros, no início do mês de novembro de 2020, sobre as agressões feitas pelo advogado do réu à jovem Mariana Ferrer, durante seu depoimento, é exercício de aproximação analítico-reflexiva descolonial.

Essa aproximação pode ocorrer em três dimensões, destrinchadas a seguir, sendo elas: (a) a dimensão econômica, na qual a dicotomia entre o poder monetário entre as personagens traz eminente (des)favorecimento; (b) a dimensão racial, na qual a opressão é agravada por conta da cor, raça ou etnia das personagens; e (c) a dimensão sociocultural, na qual as questões de gênero e sua construção histórica (des)beneficiam partes.

Primeiramente, tomando-se a dimensão econômica, na qual a mercadoria se apresenta de forma similar, porém assimétrica, nas territorialidades, real e ficção. No real (case), encontra-se o deslumbre do poder econômico, presente na cena em que o crime teria ocorrido, na profissão do réu abastado – “empresário de atletas de alto desempenho” – e, até mesmo, na reputação do advogado que faz sua defesa. A despeito de todos esses elementos, os receptores do vídeo identificaram-se muito mais com as agressões verbais por ela sofridas do que com a condição econômica menos favorecida da vítima. No filme (ficção), a riqueza promove no público repulsa e nojo, mas, de forma diversa, não faz com que a garota rica desperte piedade ou simpatia, essa é dada àquela que, pobre, não mede esforços para prover o sustento de sua família.

Considerando-se a dimensão racial, em perspectiva interseccional da análise, o filme apresenta somente negros, na verdade, como atores secundários, sendo eles os estupradores da moça rica. Todos os demais personagens são brancos ou mestiços. Se o diretor do filme pretendeu, com isso, demonstrar que “negro é bandido”, não se pode afirmar. O mesmo no caso de Mariana Ferrer, pois o crime, segundo denúncia, acontecera sem que se pudesse identificar qualquer pessoa negra, quer seja testemunha, quer seja integrante do Judiciário; réu, vítima, juiz, advogado ou promotor. Tal análise tem como fundamento a falta de representatividade que não reflete a realidade brasileira em questão de proporcionalidade de estatísticas. Como caracterizou Darcy Ribeiro (1983), povo transplantado é aquele que mantém em seu território de destino as características dadas na origem, não sendo fruto do caldeamento cultural. Assim é o sul do Brasil.

Finalmente, na dimensão sociocultural, a desigualdade de gênero é evidenciada pela heteronormatividade no case e na dramaturgia (filme), permitindo ao observador descolonial encontrar permanências e mudanças no transcurso dos pouco mais de 40 anos que separam os dois casos de estupro. No caso relatado no filme, a vulnerabilidade do sexo feminino é condição sine qua non para a vida social se perpetuar dentro da normalidade fundada no sistema patriarcal colonial.

Diversamente, a reação dos receptores, aqueles anônimos que tiveram acesso ao vídeo do depoimento veiculado pelo The Intecept BR, bem como os que o partilharam em suas redes sociais, incluso nestes os mais de 4 milhões que manifestaram sua indignação ao assinarem a petição no www.change.org, insurge com a ocorrência de virulência do seu defensor em juízo. O patriarcado não é mais sustentáculo de continuidade, configura-se como comportamento patológico.


Desdobramentos: Lei Mariana Ferrer

O nome de Mariana Ferrer é lembrado recorrentemente, com o surgimento, dia após dia, de situações de violência sexual, difamação e descrédito da vítima. Agora, com uma lei conhecida com seu nome, espera-se que mudanças ocorram no tratamento direcionado a pessoas em casos de abuso sexual, pelas partes e pelos demais sujeitos processuais durante o julgamento.

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Foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), em 23 de novembro de 2021, a Lei 14.245, também conhecida como Lei Mariana Ferrer, “[...] que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos (AGÊNCIA SENADO, 2021). O texto da lei foi sancionado sem vetos e aumenta a pena para o crime de coação durante processos, algo já previsto no Código Penal, sendo a punição de um a quatro anos de reclusão, além de multa. Em caso de crimes sexuais, a pena poderá sofrer acréscimo de um terço (AGÊNCIA SENADO, 2021).

A conduta do advogado no julgamento em questão, por exemplo, vai contra o Artigo 474-A da nova lei, que afirma que:

[...] Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II - a utilização de linguagem, de informação ou material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. (BRASIL, Lei 14.245, 2021).

A Lei 14.245/2021 é aplicada no combate à violência processual – que gera uma revitimização secundária da pessoa vítima de abuso, ao se ultrapassar a atuação esperada na condução de processos, por parte de policiais, advogados, promotores e juízes, por exemplo, atentando-se contra a integridade física e psicológica da vítima.

A lei foi considerada um passo significativo na busca por justiça e proteção às mulheres, uma vez que há subnotificações deste tipo de crime no Brasil, justamente pelo medo de enfrentar situações traumáticas durante o processo, como a violência psicológica no decorrer das apurações e do julgamento.


Considerações finais

A proposição inicial que ensejou a investigação resultante deste artigo surgiu das inquietações provocadas pela repercussão nas redes sociais dos brasileiros, que o case Mariana Ferrer, desdobramento de crime de estupro denunciado pela vítima em 2018, adquiriu no momento em que, durante audiência (gravada), na qual as testemunhas do processo, incluso a vítima, estavam respondendo às perguntas efetuadas pelo advogado do réu e representante do Estado, órgão acusador, na prática de crime de estupro.

A reflexão abordou a interseccionalidade descolonial, que envolve o tratamento do estupro e a desigualdade de gênero, ao perpassarem-se as dimensões econômicas, raciais e socioculturais. Sob a batuta do patriarcado, tais componentes coloniais, mesmo que repaginados, tanto no case Mariana Ferrer como na ficção rodrigueana, permanecem intocados.

A colonialidade invisibilizada está presente na realidade e na ficção, quando, mesmo após transcorridos mais de 40 anos, a discussão permanece silenciada pela compreensão de quem assiste ao filme ou ao vídeo do julgamento veiculado nas redes sociais, o receptor.

Os resultados apresentados permitem elucidar sobre a permanência dos valores da colonialidade e espera-se que esta investigação contribua para estudos e releituras de temáticas históricas, na perspectiva descolonial, como ferramenta de resistência. Tais discussões sociais devem ser levantadas na literatura, no cinema, nas redes sociais, no âmbito científico, como forma de enfrentamento a esses posicionamentos patriarcais e às barreiras impostas às mulheres.


Referências

AGÊNCIA SENADO. Sancionada Lei Mariana Ferrer, que protege vítimas de crimes sexuais em julgamentos. Brasília, DF, 23 nov. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/comum/sancionada-lei-mariana-ferrer-que-protege-vitimas-de-crimes-sexuais-em-julgamentos. Acesso em: 4 jul. 2022.

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Notas

1 Título de uma série de textos escritos pelo autor e nome da coluna diária do escritor no jornal “Última Hora”. Os textos no periódico abordavam o conservadorismo da sociedade, o adultério, os dramas cotidianos, a condição humana e outros valores morais como tema, causando controvérsias em meio aos leitores (BARCELOS, 2017).

2 O título da peça foi uma “homenagem” de Nelson ao mineiro Otto Lara Resende, seu amigo e também jornalista. A frase atribuída a Otto na história, possivelmente, faz referência à frase “Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, contida em “Os irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski, do qual Nelson Rodrigues foi um grande admirador (SILVA, 2011).

3 Notícia do crime, forma como se dá conhecimento às autoridades competentes da ocorrência de uma infração penal (BECHARA, 2017).

4 The Intecept é um jornal on-line independente, lançado em 2014, pela First Look Media, com sede nos Estados Unidos. Considera-se seu fundador o estadunidense Pierre Omidyar, um ex-programador de computadores, que lançou em 1995 o e-bay Leilões on-line, uma empresa pontocom de destaque à época.

5 Expressão utilizada pelo veículo de informação para caracterizar o suposto crime.

Sobre os autores
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABREIRA, Dáfini Lisboa; COUTINHO, Dolores Pereira Ribeiro et al. Ordinária ou bonitinha: violência contra a mulher no cinema e nas redes sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7099, 8 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101339. Acesso em: 19 dez. 2024.

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