1. O ART. 285-A DO CPC
O art. 285-A foi inserido no CPC pela Lei nº 11.277/06. Seu teor é o seguinte:
"Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
§ 1º. Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco (5) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
§ 2º. Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso".
Esse dispositivo suscita uma importante reflexão acerca do princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). Não é por outra razão que ele é um dos mais polêmicos no âmbito das últimas reformas do CPC.
2. AUSÊNCIA DE OFENSA AO CONTRADITÓRIO
A grande questão – que de plano exsurge – reside em saber se há, na aplicação do art. 285-A, ofensa ao contraditório. Numa apressada leitura, poder-se-ia afirmar positivamente, pois o dispositivo permite o julgamento sem citação. Mas, fazendo uma detida análise, afasta-se a conclusão de que há mácula ao princípio constitucional.
Ao receber a petição inicial, caso o magistrado aplique o art. 285-A, julgando o mérito da causa initio litis, três situações podem advir:
i) o autor, inconformado, interpõe apelação, e o juiz se retrata, na forma do § 1º;
ii) o autor apela e o juiz mantém a sua decisão (§ 2º);
iii) o autor se conforma com a decisão, deixando escoar in albis o prazo de recurso.
Nas duas primeiras circunstâncias, não há como sustentar ofensa ao contraditório, pois, em ambas, haverá a citação do réu.
Na primeira hipótese, diz o § 1º: "Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco (5) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação". Com o normal seguimento do feito, será o réu citado para apresentar resposta, como se não houvesse aplicação do art. 285-A.
Na vertente traçada no item "ii", reza o § 2º: "Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso". Sendo o réu citado, o contraditório também estará garantido. De mais a mais, a citação, como figura de chamamento do réu para responder ao recurso, não contraria a sistemática do Código. Inclusive, o art. 213 estabelece que a "Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender". No caso do § 2º, supra, a defesa é feita, em primeira mão, através da resposta ao recurso de apelação.
Questão mais complexa se afigura na hipótese versada no item "iii", pois, inexistindo recurso, não será o réu citado. Por conseguinte, a sentença transitará em julgado, operando os efeitos da res iudicata.
Mas, ainda assim, não há qualquer ofensa ao contraditório, sobretudo porque sua exigência é dispensada neste caso.
A razão maior do princípio do contraditório é a proteção da parte processual. Se a decisão judicial, em tese, tem a aptidão de causar prejuízo ao réu, a este deve ser assegurado o direito de contribuir para a formação do convencimento do julgador.
Na questão sob análise, obrigatoriamente, a decisão judicial será plenamente favorável ao réu. Nessa linha, sequer teria ele o que impugnar! Ora, se o réu não tem interesse jurídico em obstar a decisão, não há que ser aplicado o princípio do contraditório.
Destarte, a hipótese do item "iii" não ostenta mitigação ao princípio constitucional, senão verdadeira desnecessidade de sua aplicação. Em outra perspectiva, no processo comum, deixando o réu de responder aos termos do pedido, é desnecessária a intimação do autor para a réplica. Por conseguinte, em princípio, de logo a causa será julgada (art. 330, II). Neste exemplo, não se deve falar em ofensa ao contraditório (do autor), pois, em verdade, não houve qualquer fato que ensejasse a aplicabilidade do referido preceito constitucional.
Não se pode olvidar que a concepção filosófica do contraditório reside na máxima da proteção jurídica. No âmbito do art. 285-A, muito embora o réu não seja citado, estará ele devidamente amparado, porquanto a sentença ser-lhe-á totalmente favorável (aí está, inclusive, um dos requisitos de aplicação do dispositivo). Conseqüentemente, a finalidade da norma constitucional será devidamente alcançada.
A Constituição Federal confere ao réu o direito ao contraditório, porém, em momento algum, determina que seja através de citação inicial. Oportuno dizer que, antes mesmo da reforma, Fredie Didier Jr. (Pressupostos processuais e condições da ação, p. 172), já ensinava que "sentença proferida sem a citação do réu, mas a favor dele, não é inválida nem ineficaz, tendo em vista a total ausência de prejuízo (art. 249, §§ 1º e 2º, do CPC)", esclarecendo, anteriormente, que "a citação não é pressuposto de existência do processo" (ob. cit., p. 169). O § 1º do art. 214, a respeito, já anunciava a possibilidade de processo sem citação, ex vi do comparecimento espontâneo do réu.
No direito moderno, não há razão para se cogitar a nulidade de uma decisão apenas porque não precedeu à oitiva da parte, notadamente quando a decisão lhe é inteiramente benéfica. Com muita propriedade, ao regulamentar as nulidades processuais, diz o art. 250, parágrafo único: "Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados, desde que não resulte prejuízo à defesa".
3. ANALOGIA ENTRE A SENTENÇA PROFERIDA COM BASE NO ART. 285-A E A DECISÃO INTERLOCUTÓRIA LIMINAR CONCEDIDA INITIO LITIS
O Código permite ao juiz conceder ao autor (e, portanto, contra o réu) liminar de mérito. É o que se verifica na antecipação de tutela (arts. 273 e 461, § 3º) e nas liminares em geral, ex vi da ação possessória (art. 928), do mandado de segurança (LMS, art. 7º, II), da ação civil pública etc, concedidas inaudita altera pars.
As normas autorizativas desses pronunciamentos antecipatórios são constitucionais. Da demonstração de sua constitucionalidade, inclusive, já se ocupou a doutrina e a jurisprudência; sendo prescindível dizer, aqui, o óbvio.
Decisões liminares são diuturnamente exaradas contra o réu sem sua oitiva, que, em verdade, só ocorrerá a posteriori. Não raro, o demandado apenas toma conhecimento de uma decisão contra si proferida quando é efetivada no mundo fático. Neste caso, o contraditório é preservado na medida em que é permitido ao prejudicado manifestar-se no feito, podendo impugnar a decisão liminar através de recurso ou, quiçá, por pedido de reconsideração.
Ressaltemos que a decisão antecipatória, deferida sem oitiva do réu, tem conteúdo semelhante a uma sentença (muito embora não tenha a sua forma), pois, decide – ainda que parcialmente – o mérito da causa.
Nesse enfoque, conquanto possa o juiz – com o devido amparo constitucional – conceder liminar meritória contra um réu sem citá-lo, com muito maior razão, o magistrado poderá beneficiá-lo com sentença de mérito.
Não se diga que, no caso das liminares, o permissivo da decisão inaudita reside no fato de ser ela interlocutória e não sentença. Esse fundamento parece desarrazoado, pois, independentemente de ser decisão interlocutória ou sentença, ambas são pronunciamentos provisórios de mérito, na medida em que poderão ser impugnadas por recurso.
Observa-se que contra a liminar deferida initio litis, o réu prejudicado terá à sua disposição o recurso de agravo que, de ordinário, não terá efeito suspensivo. Já no caso do art. 285-A, sequer o réu precisa se preocupar com o efeito atribuído ao recurso. Se nada foi deferido pelo juiz, igualmente nada haverá de suspender.
4. A ADIN Nº 3.695-5
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, fazendo uso da prerrogativa conferida pelo art. 103, VII, da Constituição Federal, aforou Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao STF. A ação, tombada sob o nº 3.695-5, foi distribuída em 29.03.06 ao Ministro Cezar Peluso.
Segundo consta do petitório inicial daquela ação, o art. 285-A ostentaria mácula aos seguintes princípios constitucionais: igualdade, segurança, acesso à justiça, devido processo legal e contraditório. Vejamos caso a caso.
A decisão fundada no art. 285-A não macula a igualdade. Aliás, não seria exagero dizer que, ao contrário, presta verdadeira homenagem à isonomia. Com a reprodução da sentença precedente, estará o juiz aplicando exatamente o mesmo direito para situações idênticas.
Quanto à segurança jurídica, não se vislumbra qualquer desobediência à CF/88. Não há sustentação nos argumentos trazidos pela OAB quando diz "que o processo será normal ou abreviado segundo sentença antes proferida, cuja publicidade para os jurisdicionados que não foram partes naquele feito não existe".
Tal argumento é despido de lógica jurídica, até mesmo porque, segundo a Constituição, "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos" (art. 93, IX), só havendo restrição à regra "quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" (art. 5º, LX). Portanto, não há que se falar em ausência de publicidade, como ofensa ao princípio da segurança jurídica.
De outro turno, não obstante a decisão exarada com arrimo no art. 285-A faça uso das fundamentações de sentenças prolatadas em outros processos, não se pode olvidar que o magistrado apenas expõe raciocínio puramente jurídico, outrora firmado e reiterado, em causa idêntica. A decisão fundada no art. 285-A não perde, por isso, sua autonomia.
Conforme Humberto Theodoro Júnior, certos autores vêm conferindo dois nortes ao princípio da segurança jurídica: previsibilidade e estabilidade (A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica, p. 35). Nenhum deles resta abalado. Previsível será a decisão do magistrado: no âmbito material, porque público é o seu entendimento acerca da matéria jurídica; no âmbito formal, porque hoje o sistema concebe a possibilidade de sentença prima facie. No que se refere à estabilidade, o julgador apenas antecipa decisão que, mais cedo ou mais tarde, seria proferida. Resolve o caso concreto, nos termos da lei, entregando a tutela jurisdicional, com maior celeridade.
Em outra perspectiva, se o magistrado incorrer em equívoco ao aplicar o art. 285-A, por qualquer razão que seja, ser-lhe-á dada a prerrogativa de retratar-se, tão-logo o autor – maior interessado na "reforma da sentença" – interponha apelação.
O acesso à justiça, na mesma linha, não resta prejudicado. Não há qualquer limitação ao direito de ação. A petição inicial da ADIn sob exame afirma que o direito de ação resta fustigado porquanto a sentença é exarada initio litis, sem prosseguimento do rito. Contudo, deve ser ressaltado que o processo não tem curso por absoluta inutilidade, notadamente porque o convencimento do magistrado adveio no primeiro contato que teve com a causa.
A sentença dada com supedâneo no art. 285-A, contrária ao autor, nada mais denota senão o forte convencimento do julgador de que o acionante não possui o direito alegado. Ora, será que, uma vez citado, iria o réu trazer novos elementos favoráveis ao autor? Por óbvio, não. Se o juiz já está, no primeiro contato com a inicial e documentos que a instruem, certo da inexistência do direito do autor, seria de todo inútil ouvir o réu. Além disso, repita-se que o art. 285-A pressupõe causa na qual, em princípio, não haverá controvérsia fática. A intelecção do juiz volta-se apenas ao direito aplicável.
No que tange ao contraditório, como já visto anteriormente, não há qualquer ofensa, vez que – quando necessário – apenas se apresenta de forma diferida.
Quanto ao devido processo legal, a ADIn utiliza-se de dois argumentos. No primeiro, afirma que "o devido processo é conspurcado quando, o feito tem seu curso abreviado com fundamento em sentença, cuja publicidade é inexistente". Em verdade, aqui se tem uma repetição dos fundamentos utilizados no âmbito da segurança jurídica, que já foram rechaçados. No segundo, a OAB assevera que o magistrado "acaba por dar fim ao processo sem examinar as alegações do autor, sem as rebater". Não é, contudo, o que se afigura quando o juiz aplica o dispositivo sob comento, pois, ao decidir a causa, examinará os fundamentos jurídicos do autor, sobretudo para averiguar se a questão é idêntica a outras já proferidas.
A ADIn, no mais, noticia que o art. 285-A acabou por implementar no nosso sistema uma "sentença vinculante" apta a impedir o curso do processo no primeiro grau. Todavia, não há como se falar em efeito vinculante, pois, o magistrado não está obrigado a julgar na forma estabelecida no artigo sub examine, mesmo convicto, ab initio, de que julgará improcedente o pedido do autor.
Por fim, vale mencionar que o Ministro Cezar Peluso não concedeu a liminar pleiteada. Em verdade, sequer a apreciou, pois não consta que tenha expressamente "deferido" ou "indeferido". Ao receber a inicial, o Ministro apenas determinou a colheita de informações ao Presidente da República e ao Congresso Nacional, abrindo, ainda, vistas por cinco dias ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, sucessivamente. Este último, desde julho de 2006, apresentou parecer pela improcedência do pedido, portanto, opinando pela constitucionalidade do art. 285-A.
Há que se registrar que o Instituto Brasileiro de Direito Processual pleiteou seu ingresso no feito na qualidade de amicus curiae, ostentando seu posicionamento pela constitucionalidade do art. 285-A
A ADIn, até o presente momento, pende de julgamento meritório. Importante frisar que os demais tributais pátrios vem reconhecendo a juridicidade do art. 285-A. Nesse sentido: TRF-1ª Região – 7ª Turma – AMS nº 200638000341614/MG – Rel. Des. Luciano Tolentino Amaral – j. 02.05.07; TRF- 1ª Região – 1ª Turma – AC nº 200638010005180/MG – Rel. Des. José Amilcar Machado – j. 19.03.07; TRF-3ª Região – Turma Suplementar da 2ª Seção – AMS nº 41539/SP – Rel. Juiz Souza Ribeiro – j. 29.03.07; TRF-5ª Região – 3ª Turma – AC nº 397416/SE – Rel. Des. Ridalvo Costa – j. 01.03.07 e TRF-5ª Região – 4ª Turma – AC nº 358361/RN – Rel. Des. Ivan Lira de Carvalho – j. 06.02.07.
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