No texto anterior, tive a oportunidade de me manifestar acerca da devolutividade no reexame necessário, notadamente diante da interposição de apelação parcial por parte da Fazenda Pública. Em um esforço de síntese, chego à conclusão de que a remessa necessária, na condição de prerrogativa processual do Poder Público, abrange uma devolução ampla e integral (horizontal e verticalmente falando) de tudo quanto lhe seja contrário.
Nada obstante, não escapou ao percuciente olhar de alguns leitores o fato de que contemplei a regra, mas não tratei da exceção (e agradeço muito por isso, a propósito)! Não o fiz em razão das escassas linhas a que me proponho escrever. Para aparar essa aresta, portanto, escrevo sobre o tema das decisões ilíquidas no contexto do duplo grau de jurisdição obrigatório.
À guisa de introdução, julgo salutar transcrever as palavras de Cândido Rangel Dinamarco (2017, p. 64): Sentença condenatória ordinária é, nesse sentido, aquela em que estejam presentes os dois momentos lógicos representados (a) pela declaração de um direito com objeto certo, líquido e exigível e (b) pela constituição do título executivo, ou aplicação da vontade sancionatória.
Do exposto, note-se a menção aos termos certo, líquido e exigível. Para fins de desenvolvimento do presente texto, ficaremos jungidos à liquidez, conceito que desperta debates na seara doutrinária. Inobstante, não parece desarrazoado nos filiarmos ao posicionamento de que liquidez não é a determinação, mas a mera determinabilidade de fixação do quantum debeatur. [...]. Não é necessário que o título indique com precisão o quantum debeatur, mas que contenha elementos que possibilitem tal fixação (NEVES, 2020, p. 1098).
Trilhando um raciocínio inverso, Didier et al (2017, p. 218) estabelecem parâmetros para reconhecimento de decisão ilíquida:
Diz-se ilíquida a decisão que (I) deixa de estabelecer o montante da prestação (quantum debeatur), nos casos em que o objeto dessa prestação seja suscetível de quantificação, [...], ou (II) que deixa de individualizar completamente o objeto da prestação, qualquer que seja a sua natureza (quid debeatur) - por exemplo, a que determina ao réu que entregue duas toneladas de grãos, sem identificar a espécie, ou a que impõe a construção de um muro, sem dizer como, onde nem quando fazê-lo.
Postas essas premissas, amoldemo-nos ao instituto do reexame necessário, nosso principal objeto de estudo. Os §§3° e 4° trazem à liça exceções ao duplo grau de jurisdição obrigatório. Significativo é o parágrafo 3°, em específico, ao dispensar a remessa tomando por parâmetro o valor da causa, variável conforme o ente público em juízo. Em outras palavras, e tomando especificamente a União (ou autarquias e fundações de direito público) como parte, caso o valor da condenação ou o proveito econômico seja inferior a 1000 salários-mínimos, não há falar em remessa necessária. No escólio de Guilherme Freire de Melo Barros (2021, p. 132), a lógica do legislador foi a da relevância da condenação diante da capacidade econômica do ente público.
Nada obstante a exceção em comento, o enunciado de súmula n° 490 do STJ estatui que a dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta salários-mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas. Trocando em miúdos, sentenças ilíquidas, a rigor, submetem-se à remessa necessária.
Entrementes, nova controvérsia se arvora quando do julgamento do REsp 1735097-RS, e que deu origem ao informativo 658 do STJ. Aqui, dispensou-se o reexame obrigatório nas sentenças ilíquidas proferidas contrariamente ao INSS (autarquia federal), desde que o valor mensurável do proveito econômico ou do valor da condenação seja inferior a 1000 salários-mínimos. Afastou-se, pois, a incidência do verbete de súmula 490 (o que não importa afirmar sua superação em todos os casos, saliente-se), sob o argumento de que a existência de parâmetros aritméticos é suficiente para caracterizar a sentença como líquida (BARROS, 2021, p. 126).
Com efeito, é hialino que se versa sobre uma questão de lógica, e que desagua diretamente nos princípios da eficiência e da economia processual, no desiderato de concretizar a razoável duração do processo: ora, em sendo um benefício previdenciário algo mensurável, nomeadamente por ser aferível mediante cálculos aritméticos, textualmente previstos em lei, e formulados pelo próprio INSS, pretender uma fixação exata da condenação significaria chancelar um apego excessivo ao formalismo. Se, adotados parâmetros razoáveis e proporcionais de cálculo, o valor for muito aquém dos mencionados 1.000 salários-mínimos (em outros termos, restando indene de dúvidas que não se alcançaria este montante), é manifestamente desarrazoado falar em remessa necessária.
De postimeiro, importa repisar que o Recurso Especial vertente não abre margem para desconsideração ampla e irrestrita do enunciado sumulado n° 490 do STJ. O acórdão restringe a exceção aos feitos de natureza previdenciária. Portanto, que o entendimento aqui aventado seja visto com os imprescindíveis temperamentos.
REFERÊNCIAS
ALVIM, Teresa Arruda et al. Novo CPC aplicado visto por processualistas. Ed única. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em juízo. 11 ed. Salvador: Juspodivm, 2021.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É dispensável a remessa necessária nas sentenças ilíquidas proferidas em desfavor do INSS, cujo valor mensurável da condenação ou do proveito econômico seja inferior a mil 1.000 salários mínimos. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/e6be4c22a5963ab00dfe8f3b695b5332. Acesso em: 17/12/2022.
DANTAS, Bruno et al. Questões relevantes sobre recursos, ações de impugnação e mecanismos de uniformização da jurisprudência. Ed única. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
DIDIER JR., Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil: Execução. 7 ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 12 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.