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Analisando o julgamento de Olga Benário: uma discussão sobre o HC n° 26.155/DF no STF

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5. Os argumentos da Defesa

O processo do Habeas Corpus nº 26.155/DF, protocolado em 03 de junho de 1936, pelo advogado Heitor Lima, em favor de Maria Prestes, tinha o objetivo de impedir a expulsão de Olga do território brasileiro. A peça de defesa montada por Heitor Lima possuía dois argumentos centrais: (i) a primeira alegação consistia em dizer que Olga não poderia ser expulsa do Brasil, baseado nos direitos de nacionalidade de seu filho com Prestes e no seu casamento com o líder comunista e (ii) a segunda alegação baseava-se no fato de Olga não ser uma presa nociva ou perigosa para a ordem pública ou o interesse nacional conforme o art. 113, inciso 15 da Constituição de 1934.

Sobre a primeira alegação, é importante destacar, antes de nos debruçarmos sobre o conteúdo do argumento, que o casamento por si só, não poderia ser considerado como um elemento suficiente para configurar Olga como cidadã brasileira. Por outro lado, vale pontuar que o casamento possibilitaria a solicitação da permanência de Olga em território brasileiro. Todavia, Luiz Gustavo Bichara e Marcela Nogueira Reis apontaram em seu artigo a seguinte questão:

Um grande entrave, no entanto, residia no fato de que nem Olga, nem Prestes tinham meios legais e documentais de atestar sua união como marido e mulher. Foragidos e clandestinos por quase toda a duração de sua estada no Brasil, obviamente não compareceram a um cartório para formalizar o matrimônio (embora também não o tenham feito durante a passagem por inúmeros nações no exterior, imagina-se que por motivos de segurança). Não havia, portanto, do ponto de vista formal, casamento que justificasse a permanência de Olga como esposa em território brasileiro. (BICHARA & REIS, 2018: 124)

Quanto ao conteúdo jurídico do argumento, Heitor Lima fez uso do art. 4º do Código Civil de 1916 que vigeu de 1916 a 2002 que apontava que a personalidade civil do homem começa a partir do nascimento com vida, mas que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Combinado com tal artigo, o advogado fundamentou seu ponto com o princípio da pessoalidade da pena, disposta no artigo 113, inciso 27 da Constituição de 1934 previsto também na Constituição de 1988 em seu artigo 5º, inciso 45. Nesse sentido, Lima formulou o brilhante argumento da seguinte forma:

Se a lei considera na gestante duas pessoas distintas, a mãe e o nascituro; se a Constituição estatui que nenhuma pena passará da pessoa do delinquente (...) se a expulsão é uma pena; se tal pena alcançará em seus efeitos o filho da expulsanda, embora ainda não nascido: segue-se que o decreto de expulsão, além de ferir o preceito constitucional protetor da maternidade, ofende ainda o princípio da personalidade da pena. (...) Maria Prestes sustenta que o seu filho é brasileiro, foi concebido no Brasil, quer nascer e viver no Brasil. Como brasileiro, tem o direito de não ser expulso do Brasil (LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936)

A segunda alegação usada pelo advogado baseava-se substancialmente no fato de Olga Benário não ser uma prisioneira nociva e, dessa forma, ela não estaria sujeita à expulsão conforme previsto na Constituição de 1934. Para corroborar esse ponto, mesmo não havendo qualquer imputação objetiva de crime relacionado à Olga, o advogado salientou que a lei não dizia que os criminosos seriam expulsos, mas sim que seriam processados e punidos. Ainda sobre este ponto, Lima destacou que a Alemanha, país de origem da judia, não requisitou a deportação da mesma para que ela fosse julgada e punida em seu país.

Pode-se dizer, portanto, que a tese da segunda alegação de Lima consistia em apontar a preferência da jurisdição brasileira para julgamentos de crimes cometidos no Brasil. Nesse sentido, o advogado fundamentou do seguinte modo:

Não há dúvida, assim, de que Maria Prestes, acusada de participação em graves delitos contra a ordem política e social, está devendo contas a justiça punitiva. Não pode, pois, ser expulsa. Primeiro irá a julgamento; se o remate do processo for a condenação, cumprirá a pena. Depois, se o Executivo apurar que ela, sem praticar novos crimes, terá constituído em elemento nocivo à segurança nacional, expulsa-la-á para sempre. A paciente impetra habeas-corpus, não para ser posta em liberdade; não para neutralizar o constrangimento de qualquer processo; não para fugir ao julgamento dos seus atos pelo judiciário: mas, ao contrário, impetra habeas-corpus para não ser posta em liberdade; para continuar sujeita ao constrangimento do processo que contra ela se prepara na polícia; para ser submetida a julgamento perante os tribunais brasileiros. Em suma: o habeas-corpus é impetrado a fim de que a paciente não seja expulsa. (LIMA, Heitor. Petição inicial do HC 26.155/DF, STF, 1936)

A tese de Lima era engenhosa e o pedido de Habeas Corpus assume, portanto, um caráter inovador não apenas pela dificuldade do caso ou pelos penosos detalhes, mas pelo pedido inusitado (BICHARA & REIS, 2018: 125) em que a não expulsão da paciente era o principal objetivo, em vez do pedido de liberdade.

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6. À guisa de conclusão: a decisão do caso

O desfecho do julgamento do Habeas Corpus de Olga Benário é um ponto vergonhoso na história brasileira. No período da chamada Era Vargas em que se deu, uma série de direitos haviam sido suprimidos, sendo um deles o habeas corpus, fundamental para o caso de Maria Prestes, isto é, de Olga Benário. Como o mesmo não foi reconhecido pelo tribunal, numa demonstração do que nos parece um desprezo para com a Justiça, de forma autoritária e baseada em princípios ideológicos, resultou o caso na expulsão de Olga ainda grávida, em direção à Alemanha Nazista, contrariando os princípios de Justiça básicos do ser humano.

Obviamente, para entendermos melhor essa situação, foi preciso retornarmos ao fato de Olga ter sido identificada como uma das autoras da Intentona Comunista, o que a fez ficar estigmatizada como uma estrangeira nociva aos interesses do Brasil, sendo utilizado contra ela o artigo 113 da Constituição de 1934. A partir disso, Maria Prestes, como seu advogado a chamou, poderia ser expulsa do Brasil. Contudo, sua expulsão poderia acarretar sua morte, por se tratar de uma alemã comunista e judia, perseguida pelo regime nazista de Adolf Hitler7. E isso não foi levado em consideração no julgamento de seu Habeas Corpus.

Agravando ainda mais esse caso, Olga estava grávida de sua filha, concebida em território brasileiro, o que gerava um conflito entre as leis brasileiras, pois segundo o artigo 4 do código civil de 1916, junto com o princípio da pessoalidade da pena, a lei poria a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Além disso, Maria Prestes deveria ter direito ao habeas corpus para o julgamento de seus atos. Por isso, em sua petição inicial, em um de seus argumentos, como vimos acima, seu advogado, Heitor Lima, clamou pelos direitos de Olga Benário e da filha que trazia no ventre.

Com a complexidade do caso de Olga Benário, o caso foi a julgamento no STF. Entretanto, a justiça não foi feita: o entendimento foi de que, com o artigo 2º do Decreto nº 702 de 1936 estava suspensa a garantia do habeas corpus, já que o Estado estava equiparado ao Estado de Guerra. Devido a isso, o STF sequer conheceu do pedido de Habeas Corpus:

O Desfecho do pedido não poderia ser mais trágico. Designado relator do processo, o ministro Bento de Faria indeferiu, uma por uma, todas as solicitações do advogado. E, alegando que o instituto do habeas-corpus estava suspenso pelo estado de sítio e pelo estado de guerra decretados por Getúlio Vargas, decidiu simplesmente não tomar conhecimento do pedido. Votaram com o relator o presidente da Corte Suprema e os ministros Hermenegildo de Barros, Plínio Casado, Laudo de Camargo, Costa Manso, Otávio Kelly e Ataulpho de Paiva. Os três ministros restantes Eduardo Espínola, Carvalho Mourão e Carlos Maximiliano criaram um artifício para evitar simplesmente desconhecer o pedido: conheceram, mas negaram o habeas-corpus. (MORAIS, 1987: 199)

Assim, Olga foi expulsa do Brasil. E, segundo Fernando Morais, mesmo não havendo dúvidas de que a constituição lhe assegurava o direito de permanecer no país, estando para dar à luz o filho de um brasileiro, não faltaram juristas a teorizar sobre o acerto da decisão de Vargas e Filinto Müller de expulsão do Brasil. (MORAIS, 1987: 195)

Enviada às pressas para a Alemanha, a bordo de um navio cargueiro chamado La Coruña, e considerando ainda seu estado de gravidez, segundo a biografia de Fernando Morais (1987), podemos deduzir que o tratamento dado à Olga Benário nesta viagem foi degradante. E ainda em 1936, em novembro daquele ano, na prisão de Barnimstrasse, em Berlim, nasceu a sua filha, Anita Leocádia. Posteriormente, sua filha foi resgatada por sua avó paterna, a mãe de Luís Carlos Prestes, e Olga seria enviada para uma câmara de gás na Páscoa de 1942. Diferentemente de sua mãe, o fim de Anita foi mais feliz, tendo se tornado uma historiadora e professora da UFRJ.

São casos como o de Olga Benário que nos fazem pensar em como a Justiça pode ser falha e em como períodos de conturbações políticas, principalmente, são aqueles em que escancaradamente grandes atrocidades acabam sendo cometidas. O caso do Habeas Corpus não concedido a Olga Benário ou a Maria Prestes é um dos inúmeros casos em que governos autoritários suprimem os direitos básicos de seus cidadãos e injustiças são cometidas com o aval do Judiciário. E seria leviano afirmar que somente na Era Vargas ou na Ditadura Militar tais ações foram cometidas: o estudo do caso de Olga Benário nos remete a uma reflexão sobre diversas injustiças em que governos passados e futuros puderam ou poderão cometer contra os cidadãos.


Notas

1 Porém, em novembro de 1935, enquanto os preparativos insurrecionais eram planejados, um levante armado estourou na cidade de Natal, o que fez com que Prestes ordenasse que a insurreição fosse estendida ao resto do país. Contudo, somente algumas unidades militares de Recife e do Rio de Janeiro atenderam ao comando e a insurreição foi fortemente reprimida pelo governo Vargas. Muitos líderes comunistas foram presos: segundo Fernando Morais, o número de presos desde o dia 27 de novembro era tão grande e eles estavam espalhados por tantos presídios que a própria polícia perdera a noção de quem ainda estava solto ou quem já havia sido capturado. (MORAIS, 1987: 141)

2 O HC 26.155/DF pode ser acessado na página do Supremo Tribunal Federal através do link https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC26.155MariaPrestesOlgaBenrio.pdf/ <Acesso em 21/12/2022>.

3 É o que consta no inteiro teor do Acórdão do HC 26.155/DF. Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC26155.pdf. Acesso em 21/12/22. Apesar disso, segundo Bichara & Reis (2018), conforme a própria alegação de Heitor Lima na sua defesa, não havia imputação objetiva de nenhum crime a ela (BICHARA & REIS, 2018: 124-125)

4 Promulgada em 4 de abril de 1935, definia os crimes contra a ordem política e nacional e as penas que deviam ser aplicadas nesses casos.

5 Após decretada a ilegalidade da Aliança Nacional Libertadora por Vargas com base na já mencionada Lei de Segurança Nacional revoltas eclodiram pelo país. Após o fim de tais revoltas, a repressão aos comunistas e pessoas que eram consideradas uma ameaça ao regime aumentou muito, como vimos acima.

6 A ordem de deportação de Olga, mulher judia e grávida, para a Alemanha nazista, sabendo que isso muito provavelmente resultaria na morte da mesma, vai contra alguns princípios básicos da Constituição vigente na época. Mas esse aspecto do processo será abordado com mais detalhes a seguir.

7 Aliás, pouco tempo depois de sua expulsão, a Europa passaria por uma das guerras mais destrutivas na história da humanidade, a II Guerra Mundial, marcada por uma ideologia de ódio e justamente pelo antissemitismo e anticomunismo. Neste contexto, Olga Benário seria uma vítima fatal.

Sobre os autores
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Informações sobre o texto

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