2. A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA E SUAS LEIS
A lei de 7 de novembro de 1831 foi a primeira lei com intuito de inibir a escravatura no Brasil, denominada “Lei Feijó” em homenagem a Diogo Antônio Feijó, um dos elaboradores. O desembargador Georgenor de Sousa Franco Filho (2019) afirma que essa norma jurídica tinha o objetivo de proibir a importação de escravos e atribuía devidas penalidades aos que praticassem tal ato, porém, nunca foi efetivada e recebeu a expressão popular “lei pra inglês ver”, tendo em vista que sua criação decorreu da pressão vinda dos ingleses para a extinção do tráfico negreiro.
Quase 20 anos depois, no dia 4 de setembro de 1850 foi promulgada a lei “Eusébio de Queirós” (recordando seu autor: Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, Ministro da Justiça da época), que determinava a proibição definitiva do tráfico. O ato normativo foi resultado da lei Bill Aberdeen, originada na Inglaterra, que dava direito à marinha britânica de apreender navios que transportavam escravos e tivessem o Brasil como destino.
De acordo com o art. 1º da lei Eusébio de Queirós, embarcações avistadas no Brasil (qualquer nacionalidade) ou fora do país (especificamente brasileiras) seriam apreendidas, a apreensão também ocorreria se a embarcação apresentasse sinais de tentativa de importação. Essa prática foi considerada pirataria (art. 4º) e o escravo encontrado devia ser reexportado para seu local original (art. 6º). A lei também não permitia a concessão de passaportes a tripulantes de navios mercantes que se destinassem à África sem que fosse assinado o termo do não transporte de escravos. Os efeitos realmente almejados foram obtidos somente na década de 70, momento em que o país recebeu um significativo número de imigrantes para trabalharem na agricultura.
A terceira lei criada foi a primeira sancionada pela Princesa Isabel, recebeu o nome de “Lei do Ventre Livre”, pois garantia liberdade aos filhos da mulher escrava a partir da data de sua sanção (28.09.1871). Conforme a norma jurídica, o dono da escrava tinha o dever de criar a o menor até os oito anos de idade completos, após isso, poderia entregá-lo ao Estado, recebendo uma indenização pecuniária na quantia de 600$000 (seiscentos mil réis), sendo assim, o governo destinava a criança aos cuidados de associações especialmente autorizadas (art. 2º), o dono também tinha a opção de utilizar os serviços do menor até os 21 anos de idade (art. 1º § 1º).
Segundo Georgenor, tais associações autorizadas, em particular as chamadas Casas dos Expostos, podiam usufruir dos serviços dos menores de maneira gratuita, desde que deles tratassem e cuidassem, tinham também o dever de garantir a eles um pecúlio e um emprego quando chegassem aos 21 anos. O art. 4º admitia ao escravo o direito de construir um pecúlio, podendo ser resultante de heranças, doações e legados. Em caso de óbito, o pecúlio era dividido entre o cônjuge e os demais herdeiros do falecido, foi por meio disso, que muitos escravos conseguiram obter sua carta de alforria.
Conforme o art. 6º da mesma lei, declarou-se libertos escravos com as seguintes características: que pertencessem ao Estado; que fossem dados em usufruto à Coroa; escravos das heranças vagas; que fossem abandonados por seus senhores (com condição de ficarem sob inspeção do governo durante cinco anos). Essa norma jurídica ainda produziu uma matrícula para cada escravo existente, declarando nela dados como: nome, sexo, aptidão para trabalho e filiação (art. 8º). O parágrafo 2 ainda estabelece que os escravos que não estivessem matriculados no prazo de um ano, passariam assim a serem livres. Na maioria das vezes, a lei era burlada descaradamente pelos senhores, por isso, a Lei do Ventre Livre não foi capaz de satisfazer a opinião das pessoas.
Logo após, foi sancionada a quarta lei na data 28.09.1885, ela recebeu o título de “Lei dos Sexagenários”. Seu objetivo era assegurar proteção e liberdade a escravos que possuíssem idade superior a sessenta anos. O ato normativo regulou uma nova matrícula garantida aos escravos e também os valores para cada, para o sexo masculino, esses valores podiam variar de 900$000 (novecentos mil réis) à 200$000 (duzentos mil réis). O sexo feminino sofria o abatimento de um valor 25% inferior ao dos homens, tendo em vista que escravas tinham uma valorização menor. Não era permitido a matrícula de escravos com mais de sessenta anos, somente inscrição em arrolamento especial (art. 3º § 10º, § 11º e § 12º). Com base nessas regras, o escravo tinha a obrigação de prestar serviços ao seu ex-senhor durante três anos como indenização pela alforria (com algumas exceções), essa indenização também podia ser paga em dinheiro.
Para o fundo de emancipação (já criado anteriormente pela Lei do Ventre Livre) foi-se introduzido algumas regras consideradas importantes (art. 2º), sendo elas: I – Taxas e rendas para a legislação vigente; II – Taxa de 5% adicionais a todos os impostos gerais, com exceção para exportação; III – Títulos da dívida pública emitidos a 5%, com amortização anual de 1/2%, sendo os juros e a amortização pagos pela referida taxa de 5%. Era a partir desse fundo de emancipação que se originavam os recursos para pagar as indenizações e conceder liberdade aos escravos que estavam inscritos.
Pode-se dizer que o projeto em questão não gerou muitas consequências, considerando a baixa expectativa de vida dos escravizados, além disso, essas pessoas não ficavam de fato livres, pois conforme o art. 3º §13º, ao completarem a idade determinada e após terem cumprido o tempo de indenização pela alforria, era previsto que os escravos ficassem sob os cuidados do seu ex-senhor até a morte. Contudo, Georgenor afirma que a Lei dos Sexagenários auxiliou no cuidado ao domicílio do ex-escravo, à sua saúde e também à sua prestação de serviços pós- "liberdade".
Por fim, a quinta lei, sendo ela a mais popular quando se trata a questão da escravatura, a lei nº 3.353, promulgada no dia 13 de maio de 1988 e denominada “Lei Áurea”. Perante o ponto culminante, Flávia Lages de Castro declara:
“Os abolicionistas cresciam em número, o movimento se agigantava no país, mas o golpe de misericórdia veio mesmo dos próprios escravos que, com o auxílio dos abolicionistas, começaram a abandonar as fazendas causando o caos no trabalho e tornando a situação insustentável. O desespero tomou conta dos escravistas que em vão tentaram incluir o exército no combate às fugas e rebeliões. A saída era única: a abolição, muitos fazendeiros que haviam lutado contra a emancipação também viram isto.” (LAGES, 2010, p. 405).
A Princesa Imperial Regente sancionou a lei em nome do seu pai, o Imperador D. Pedro II e nela decretou a extinção da escravidão (art. 1º).
Após a aquisição da liberdade dos escravos, é conhecido que os mesmos não eram considerados dignos para a obtenção de emprego, portanto, o acesso à educação a essas pessoas foi negado. Diante disso, nem exercer a cidadania podiam, já que o direito de votar era concedido somente a homens alfabetizados. O número de escravos em 1887 era de 723.419, número bastante reduzido quando comparado ao ano de 1818, que era de 1.930.000. Mesmo com a redução, esses ex-escravos sofreram um grande e brutal impacto, e, por isso passaram a viver em uma condição de grande inferioridade, destituídos de proteção e segurança e sobrevivendo à base de atividades informais.
3. O PROCESSO PÓS-ABOLICIONISTA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA AS PESSOAS QUE FORAM ESCRAVIZADAS
O contexto social do Brasil no XIX, que culminou na abolição da escravatura, foi marcado por um período de constante pressão por parte dos liberais e pelo engajamento popular, que mobilizou diversos setores da sociedade contra o império. Diante disso, a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1988, não teve caráter compassivo, mas sim, a fim de cessar as manifestações ao longo do país frente à instituição escravocrata. Contudo, diversos fatores corroboraram para tal feito, mas o avanço do liberalismo foi decisivo, inviabilizando o escravismo brasileiro não apenas por ser considerado anacrônico e antieconômico, mas sobretudo, por ser incondizente com o desenvolvimento do País.
Nesse viés, é notório o descaso em relação aos libertos, visto que não foram realizadas reformas que integrassem os mesmos socialmente, em uma sociedade baseada em trabalho assalariado. A então, mão-de-obra obsoleta, foi deixada às margens da sociedade quando passaram à condição de pessoas portadoras de direitos. Logo, revelando um passado marcado por injustiças, preconceitos e disparidades sociais que perpetuam até os dias atuais. O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), por sua vez, no livro “A integração do negro na sociedade de classes”, retrata o reflexo dessa transição:
“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...) Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”. (FERNANDES. 2008)
No entanto, após a abolição e devido falta de um processo de inserção à ordem social, os negros tornaram-se um grupo inferiorizado e marginalizado, pois as desigualdades deixadas pela escravidão não foram combatidas. Além disso, o fato de serem expulsos das propriedades que foram escravizados, a falta de emprego e de acesso à terra colaborou para a intensificação do quilombismo. Os quilombos representavam um símbolo de resistência, força e ao mesmo tempo, foi a maneira encontrada para assim garantir a sobrevivência dos libertos, já que os mesmos não se encaixavam na realidade brasileira. Sendo assim, é possível observar que o processo pós-abolição é marcado pela segregação racial e pela discrepância no âmbito social.
Logo, a denominada democracia racial, que caracteriza-se pela inexistência do ódio aos negros, não passou de um mito e foi responsável por gerar uma falsa noção de igualdade. Na medida em que o modelo colonial racista ainda permanecia presente, pautado na superioridade da raça branca, legitimando assim a hierarquia das classes. Diante desse contexto, surge a preocupação com o branqueamento da população, revelando uma outra vertente pós-abolição, não apenas segregacionista, como também extintiva. A intenção era clarear por meio da miscigenação, um dos principais e mais importantes aspectos da formação social brasileira, possibilitando uma vasta pluralidade, no entanto, com o propósito de extinguir a população negra do país.
Por conseguinte, no Congresso Mundial das Raças em 1911, Michèle Duchet, por meio da fórmula Cornélius de Pauw, propôs o método de branqueamento de uma população:
1. De um negro e de uma mulher branca nasce um mulato, meio-negro, meiobranco de cabelos longos.
2. Do mulato e da mulher branca provém o “quarteron” (¼ negro), queimado e de cabelos longos.
3. Do ‘quarteron’ e de uma mulher branca surge o “octavon” (1/8 negro) menos queimado que o ‘Quarteron’.
4. Do ‘Octavon’ e de uma mulher branca vem um filho perfeitamente branco (HOFBAUER, 2003: 75).
De acordo com o teórico, o mesmo poderia ser usado inversamente:
1. De um branco e de uma negra surge o mulato de cabelos longos.
2. Do mulato e da negra vem o „Quarteron‟, que é ¾ de negro e ¼ de branco.
3. Desse “quarteron‟ e de uma negra provém o „Octavon‟, que é 7/8 de negro e meio-quarto de branco. 129
4. Deste „Octavon‟ e da negra vem, enfim, o verdadeiro negro de cabelos enrolados (HOFBAUER, 2003: 105).
Todavia, o casamento inter-racial tinha como finalidade “limpar” a raça do homem, entretanto, o que observou-se foi exatamente o oposto, em virtude das dinâmicas sociais brasileiras. Apesar disso, as políticas de branqueamento serviram como berço para o surgimento da chamada eugenia, que diferentemente da proposta anterior, apresenta um caráter mais científico. E além disso, adicionou mais critérios para distinguir e classificar a humanidade, como por exemplo, o formato do crânio (frenologia), do nariz, dos lábios e do queixo. Essa nova teoria serviu para reforçar a ideia da existência de uma raça superior, a mesma utilizada futuramente pelo partido Nazista como justificativa, na Segunda Guerra Mundial.
Portanto, é perceptível a carga que a escravidão e o processo civilizatório exerceram historicamente na formação social brasileira, expondo uma chaga que perpetua até os dias atuais, o preconceito e a discriminação racial. O racismo estrutural é o fruto de um passado marcado por condições desvantajosas e privilégios, a certos grupos étnico-raciais, e de desigualdades econômicas, políticas e jurídicas.
CONCLUSÃO
O período em pauta foi perpetuado por uma árdua batalha que culminou em sua abolição, um grande e significativo progresso para a sociedade brasileira. Contudo, sabe-se que a legislação da época influenciou fortemente a sociedade, uma vez que, o sistema escravista recebeu embasamento normativo para continuar, bem como os tratamentos sub-humanos que não poderiam ser contestados pelo mesmo âmbito jurídico. Essa normatividade legitimava os comportamentos violentos dos senhores de escravos e garantia a força que as configurações escravagistas exerciam sobre os escravizados, reprimindo tentativas de revolução e resistência.
Dessa maneira, a conjuntura social do Brasil vivenciou uma estrutura de opressão, que rejeitava direitos para os escravos e perpetuava a discriminação racial. Em decorrência disso, muitas vezes o direito de liberdade assegurado a essas pessoas não era respeitado, tendo em vista que os ex-senhores os impediam de os deixarem com ameaças e/ou violência. Ao conseguirem se tornar realmente livres, passavam a viver em condições de grande precariedade, por não serem vistos como “dignos” para a sociedade, tinham uma difícil obtenção de emprego - quando conseguiam uma oportunidade, eram sujeitos a empregos ruins e com péssima remuneração - e tampouco tinham acesso à educação.
Portanto, conclui-se que os reflexos do Brasil escravocrata permanecem enraizados na cultura brasileira no âmbito social, econômico e político. Logo, a transmissão de tais valores é resultante da ausência de um processo transitório após a abolição, o que impossibilitou a inserção dos libertos em uma sociedade marcada pelo racismo. A segregação racial por sua vez, torna-se evidente, na medida que a Lei Áurea não trouxe garantias fundamentais aos negros, como o direito à educação, saúde, moradia, entre outros. Por fim, vale ressaltar a importância e a necessidade de práticas públicas e iniciativas privadas de equidade racial, que rompam com as mazelas deixadas pela escravidão. A inclusão por meio do desenvolvimento de direitos étnicos-raciais é a principal forma de transpor o ciclo do racismo estrutural, reconhecendo as necessidades específicas de cada grupo e assegurando assim, a igualdade.
REFERÊNCIAS
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