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A involução do modelo de justiça digital no Brasil ("back to the past")

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Agenda 12/02/2023 às 16:42

O que justifica o retrocesso gerado por normativas recentes em total desalinho com o microssistema de justiça digital?

A involução do modelo de justiça digital no Brasil (“back to the past”)1.

O Judiciário brasileiro realizou, no período da pandemia, uma verdadeira travessia para uma Justiça adequada à nova realidade2 e conformação social, permeada pela tecnologia e totalmente digitalizada que se encontrava, até o presente momento, incorporada ao nosso cotidiano, como uma alternativa posta à disposição do Sistema de Justiça, em razão dos amplos benefícios e do aumento expressivo de eficiência que trazem para a prestação jurisdicional e, especialmente, para seu destinatário final: o cidadão3.

Passamos de um momento onde a justiça estava acessível na palma de mão, para um retrocesso sem precedentes. A Administração da Justiça, como mostra sua evolução na história é sempre mutável e adequada às necessidades sociais de seu tempo, concretizadas, pela entrega do bem da vida de maneira eficiente, célere e justa. Na consecução de tal objetivo, os desafios e os questionamentos constantes constituem a mola propulsora no enfrentamento de toda sorte de problemas que se apresentam. Essa, enfim, é a essência da evolução. Contudo, o que estamos vendo recentemente é justamente o contrário!

É praticamente indiscutível que o modelo de justiça digital, é comprovadamente, mais célere, eficiente e menos oneroso. Então, qual será o motivo do retrocesso? Existe de fato algum fundamento jurídico sólido para que o mesmo ocorra? É o que pretendemos analisar no presente.

O binômio processo eletrônico e modelo de justiça digital (com audiências telepresenciais - virtuais; atendimento de todas as partes e atores processuais por meio do balcão virtual; especialização e “desmaterialização da justiça” por meio do Núcleo de Justiça 4.0; o cumprimento de atos processais por meio eletrônico; a utilização da tecnologia a favor do processo, com práticas como: automação4, ferramentas de B.I.5, inteligência artificial6 etc.) representa a essência desse momento pós-pandêmico.

Lado outro, para responder a realidade atual, de um mundo interconectado e digital, devemos operar com as ferramentas digitais disponíveis7, com dinamismo, flexibilidade e agilidade, sem perder de vista que cada processo hospeda uma vida8.

Olhando para esse lado humano, não temos dúvida que o modelo de justiça digital representa aquilo que melhor se pode fornecer a sociedade, que tem pressa, que não tem tempo a perder, que demanda por serviços públicos eficientes e ágeis, mas, acima de tudo acessíveis de modo fácil, prático e rápido.

Ainda, o digital permite a aproximação, facilita o acesso9 até mesmo daquelas pessoas mais carentes e desprovidas de recurso10, possibilita um acompanhamento efetivo e em tempo real das partes, torna dinâmico o fluxo processual, gerando por via de consequência maior empatia11-12.

Na mesma linha, voltado à dimensão institucional do Poder Judiciário, calcado no acesso à justiça e na boa administração da justiça, busca-se, por meio do modelo de justiça digital a participação responsável e cooperativa dos atores processuais, o que Boaventura De Souza Santos indica como a democratização da administração da Justiça13.

Com isso se coloca o cidadão no centro e no foco das atenções do Poder Judiciário, invertendo uma lógica secular e permitindo maior participação social, e, por via de consequência, tornando mais transparente e democrático, não apenas o acesso ao Poder Judiciário, mas, a própria Administração da Justiça.

A conclusão que chegamos então, é de que a tecnologia pode e deve ser usada para efetivar direitos, trazendo melhor qualidade de vida ao cidadão e usuário dos serviços judiciário, colocando esse no centro e no foco das atenções. De outro lado, o Poder Judiciário demonstrou que está preparado para a nova realidade 4.0 com a utilização de ferramentas tecnológicas e o respeito as regras da boa administração da justiça.

A inovação operada pelo Poder Judiciário viabilizou a otimização da democracia e intensificou o acesso à justiça, aumentando a transparência, a eficiência, a celeridade e a economicidade. Com os resultados obtidos e exaustivamente comprovados no estudo dos dados estatísticos do Poder Judiciário, a justiça deixou de visualizar o indivíduo como mero consumidor de produtos e serviços digitais, e passou a entendê-lo como autor da realidade democrática sempre mutante.

Nesse contexto, o Poder Judiciário demonstrou que soube se adaptar e se reinventar frente a maior crise sanitária do período recente da história da humanidade (COVID-19)14 e de toda revolução tecnológica vivida pela sociedade. Na esfera da inovação, os números apresentados pelo relatório “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça, comprovam que modelo de justiça digital, efetivamente possibilitou a redução de custos, o aumento da eficácia, da celeridade e da eficiência do Poder Judiciário brasileiro, comprovando que a Justiça 4.0 é o caminho a ser trilhado.

Importante, então, destacar alguns desses números. No plano global o relatório Justiça em Números 2022 demonstra que os gastos do Poder Judiciário tiveram uma redução 5,6%, e apresentaram o mesmo valor de 201315. Estamos falando de um gasto de 103,9 bilhões de reais, comprovando que o modelo de justiça digital é muito mais econômico, portanto, menos custoso para sociedade. Importante, ressaltar que até o início da pandemia, os gastos dos Poder Judiciário, tinham uma curva crescente16.

A introdução do modelo digital possibilitou a inversão dessa curva de crescimento dos gastos do Poder Judiciário, com uma redução significativa das despesas, economizando bilhões de reais17 para os cofres públicos. Só esse argumento já seria suficiente para defender o modelo de justiça digital, num país onde as despesas públicas são crescentes e a necessidade de redução gasto público é imperativa18, sendo certo que o Judiciário brasileiro é um dos mais caros do mundo19.

Comparando ao orçamento anual do Poder Judiciário, é possível observar que esta quantia é maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) de 10 estados brasileiros considerados individualmente20, analisando a Lei Orçamentária do ano de 2021 (ano que foram coletados os dados do Justiça em número 2022), podemos observar que o custo do Judiciário superou aquele destinado a educação (R$ 75 bilhões), ao meio ambiente (R$ 2 bilhões) e correspondeu a 72% dos gastos destinado da saúde (impactada pela maior pandemia da história recente da humanidade). Além disso, se comparado internacionalmente o Judiciário brasileiro é um dos que mais gastam em todo o mundo (o custo do Judiciário Brasileiro é superior em quase 10 vezes ao dos EUA e da Inglaterra21), conforme vimos acima.

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Em vista disso, é imprescindível entender e assimilar que o orçamento em relação ao Poder Judiciário é extremamente elevado, particularmente em um momento no qual o Brasil enfrenta difíceis escolhas em relação ao seu equilíbrio fiscal e no qual a União pretende empenhar recursos em programas sociais superando o teto de gastos. Nesse contexto, é imperioso que o Poder Judiciário controle os seus próprios gastos antes que os outros Poderes do Estado e a própria população – que é, afinal de contas, quem paga por tudo – sintam que a situação excede os parâmetros aceitáveis e assim o façam22.

Deste modo, não se duvida que o modelo de justiça digital nesse contexto se apresenta como a melhor opção para redução drástica das despesas do Poder Judiciário, basta verificar que no ano de 2020 se concretizou uma redução de 4,5%23 das despesas realizadas e no ano de 2021, quando o modelo de Justiça digital foi consolidado, teve uma redução 5,6%24 dos gastos do Poder Judiciário.

Além dessa economia direta aos cofres públicos, temos também a redução de despesas das partes e dos atores processuais, bem como daqueles que participam do processo (v.g. testemunhas). Ora, com o modelo digital as testemunhas não precisam se deslocar para o Fórum, deixando de trabalhar no dia da audiência e realizando gastos não previstos no seu orçamento, o mesmo vale para as partes. De outro lado, aos advogados facilitou e amplificou não apenas a possibilidade de atuação em todo o território nacional, mas, possibilitando realizar mais de uma audiência e sessão no mesmo dia, o que no modelo presencial na maioria das vezes era quase impossível, bem como agilizou e facilitou o trabalho25.

A redução dos custos na adoção do modelo de justiça digital deve ser vista de forma ampla. Sem dúvida é extremamente complexa de ser mensurada na totalidade, mas, perfeitamente possível de compreender e validar sua existência, como por exemplo: (i) despesas de deslocamento, (ii) perda do dia de trabalho, (iii) perda do tempo útil da pessoa a espera do ato processual. Pondere-se ainda, o desgaste psicológico pela necessidade de frequentar o ambiente da justiça, a tensão gerada justamente pelo ambiente desconfortável26.

Além disso, temos dezenas de custos indiretos: (i) deterioração do veículo utilizado para o deslocamento; (ii) o custo do combustível; (iii) custo de materiais de consumo (papel, copo, produtos de limpeza etc.); (iv) custo de segurança; (v) custo de infraestrutura para manutenção do prédio etc.

Em suma, a redução das despesas é bem maior que aquela indicada nos números levantados, de outro lado, essa economia não é apenas para o serviço público, mas, para todos os atores processuais e participantes dos atos processuais, bem como para o meio ambiente. Nesse contexto, não podemos desprezar o impacto ambiental do modelo de justiça digital, esse impacto é possível de ser verificado na redução de consumo de combustível no deslocamento, no consumo de material descartável, no consumo de papel, no consumo de energia, água e gás, dentre inúmeros outros.

Desta forma, resta clara a eficiência do modelo digital e sua alta capacidade de reduzir custos. Conforme destaca Micheli Pereira27 o “Judiciário que funciona bem é aquele age de forma eficiente, imparcial e pouca custosa, e, via de consequência, o Judiciário que funciona mal é aquele que não atende a estes quesitos”28.

Assim, indubitavelmente o modelo de justiça digital é o menos oneroso e mais eficiente, por via de consequente mais célere que o modelo tradicional. No plano da eficiência, revisitando novamente os números, podemos verificar no aspecto nacional que “o tempo do acervo e o do baixado reduziram entre 2019 e 2020, ou seja, além dos processos terem sido solucionados de forma mais célere, houve redução do acervo antigo29.

Para exemplificar, vamos pegar o caso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), que já é há anos o Tribunal mais produtivo do Brasil30. Em março de 2020, a produtividade na 1ª instância aumentou significativamente em comparação com o mesmo período em 2019, sendo registradas 195.293 sentenças em março (2020) contra 146.247 em março do ano anterior (2019), consubstanciando um crescimento de 33,54%. De outro lado, foram proferidas 179.974 decisões, 6,46% a mais do que em março de 2019 (169.058), e os despachos cresceram 8,77% (461.237 contra 424.048). Na segunda instância, também houve avanços, com o julgamento de 17.729 processos, 2,96% a mais do que em março de 2019 (17.219)31.

Esse aumento se refletiu em todos os Tribunais, conforme aponta o Relatório Justiça em Números de 2021 do Conselho Nacional de Justiça32. Ainda, nesse aumento de produtividade excepcional é possível identificar que mesmo com a necessidade de resguardar as regras de isolamento social, no período entre abril e agosto de 2020, foram realizadas mais de 360 mil audiências de forma 100% “on-line33, o que possibilitou uma posição de destaque mundial do Brasil34.

Deste modo, olhando para o maior problema do Judiciário Brasileiro: a morosidade35, o modelo de justiça digital também se apresenta como o remédio adequado.

Assim, é possível concluir que o modelo de Justiça 4.0 é mais eficiente, célere, eficaz e muito menos custoso, sendo imperativa sua expansão e consolidação no Judiciário Nacional.

A pergunta então que devemos fazer é: o que justifica o retrocesso gerado por normativas recentes em total desalinho com o microssistema de justiça digital36? As normativas promoveram modificações pontuais, sem analisar e verificar todo o conjunto normativo que forma um verdadeiro bloco sistêmico do modelo de justiça digital, atentando contra os precedentes firmados anteriormente no CNJ37, em descompasso com a legislação processual e em frontal violação ao princípio da boa administração da justiça38 e as diretrizes da Análise Econômica do Direito.

Silvane Battaglin Schwengber, que fez um extenso trabalho de mensuração de eficiência em diversos tribunais do país, resultando na sua tese de doutorado, destacou que “Os índices de eficiência podem e devem ser mais cuidadosamente analisados se estão refletindo genuína ineficiência técnica ou se refletem outros fatores que, por falta de dados, ainda não puderam ser considerados”39. Parece que o movimento de retorno ao passado, como bem pontuaram os professores Dierle e Malone40, não se atentou para os dados, para os números, para as repercussões e, acima de tudo, para os impactos negativos da guinada realizada, em especial na vida dos usuários dos serviços judiciários.

O retorno ao modelo presencial da prática dos atos judiciais seria como se no momento atual fosse exigido dos usuários dos aplicativos de transporte (v.g. “uber”, “free now”, “cabify”, etc.), que voltassem a fazer sinal para o táxi na rua, deixando de ter a comodidade de chamar com um toque na tela do celular, no lugar em que se encontram, o veículo desejado com o preço ofertado previamente. Ou ainda, que sejam obrigados a buscar uma locadora de vídeo (ainda existe alguma?) se desejarem assistir um filme ou uma série, ao invés de utilizar os aplicativos de streaming (v.g. Netflix, HBO, Amazon Prime, etc.), ou que deixem de utilizar as câmeras digitais dos seus smartphones e passem a utilizar uma câmera fotográfica analógica, com filme de 36 poses, sem possibilidade de postar de imediato na redes sociais, compartilhar e com uma limitação clara do número de fotos.

Estamos vivenciando um verdadeiro retorno ao passado (back to the past)41. Seria algo como imaginar que nos dias de hoje deixaríamos de utilizar os aplicativos de mensagem instantânea e voltaríamos a usar cartas postadas nos correios, não me parece possível.

Em suma, voltar ao modelo de justiça presencial (com audiências e atos processuais realizados exclusivamente no prédio do Fórum) é voltar ao passado42, atentando contra todos os princípios regentes do microssistema de justiça digital, violando de modo frontal os princípios da vedação do retrocesso, da boa Administração da Justiça, da Análise Econômica do Direito, da proporcionalidade e da razoabilidade. Logicamente, não parece razoável ou quiçá adequado esse retorno ao passado. Além disso, esse retorno, parece não atentar para todo o aumento de eficiência dos serviços judiciais largamente demonstrado e comprovado pelos números e pela própria experiência prática43.

Sem dúvida, parece um movimento pendular, o modelo de justiça digital, inovou, revolucionou, rompeu paradigmas, agora se pretende retroceder com todos os avanços e ganhos obtidos (econômicos, financeiros, de eficiência, de celeridade e ambientais). Como ressaltou o Ministro Toffoli “prudência não é sinônimo de resistência à mudança”44, temos aqui, ao que parece, um caso típico resistência à mudança, o que é natural e corriqueiro no Judiciário, basta verificar que toda a evolução obtida enfrentou resistência, quando passamos da escrita à mão para máquina de escrever, dessa para o computador, do processo físico para o digital, tudo foi realizado com muita resistência. Não seria diferente agora.

A barreira cultural precisa ser rompida, é preciso entender que o mundo mudou, a realidade do século XXI é totalmente diferente daquela vivida no século XX. A sociedade evoluiu e com ela deve evoluir também a Administração da Justiça, os tempos de hoje, não recomendam que o mesmo modelo do passado seja adotado.

A questão então, como bem pontuada, por Dierle e Malone

“(...)deve ser colocada à crítica da comunidade jurídica, permitindo seu amadurecimento a partir do debate público. A questão central que se coloca é: em pleno 2023, deve ser lida com muita cautela toda iniciativa de se reduzir o avanço do uso da tecnologia para tramitação de procedimentos judiciais, salvo quando seu uso coloque em risco a própria normatividade e atrapalhe os direitos de seu destinatário principal: o cidadão. É preciso avançar devagar, mas não retroceder. Reduzir a implementação de tribunais híbridos impactará no próprio avanço alcançado e que vem tornando o Judiciário brasileiro um exemplo mundial de inovação com sua postura receptiva às novas tecnologias, em prol do aprimoramento e democratização do acesso à Justiça”45.

Nos parece, então, que a cada dia, precisamos menos de grandes construções e salas de audiência adornadas e mais de transparência, linguagem compreensível e fundamentação das decisões. Precisamos de menos tijolos e mais BYTES!

Nesse sentido, o momento presente traz consigo uma nova configuração da justiça, que impõe necessariamente uma nova mentalidade. Urge que se supere a “visão tradicional” da magistratura, forçando o juiz a repensar sobre o seu papel dentro da nova sociedade contemporânea46. “Quando se reflete sobre a necessidade de um novo juiz, é porque se tem em conta que o juiz de hoje não mais pode estar identificado como o juiz de ontem, ou seja, diante de uma nova sociedade digital”47, hiper-conectada, com inéditas demandas e necessidades, o novo juiz é aquele que está em sintonia com a nova conformação social e preparado para responder de forma ágil, transparente, com eficiência e criatividade, às expectativas da sociedade moderna48.

Assim, a conclusão que chegamos é que o modelo de justiça digital é, definitivamente, o melhor modelo, posto que comprovadamente reduz a morosidade processual, aumenta a efetividade, acarretando maior eficiência do Poder Judiciário, com drástica redução dos custos e consequentemente maior sustentabilidade. Isso não significa dizer que ele é a panaceia para todos os males do Judiciário, mas, sem dúvida representa um caminho seguro para minorar muitos dos seus inúmeros problemas. Logicamente que o modelo deverá ser constantemente ajustado, aprimorado e aperfeiçoado.

E aqui chegamos no ponto nevrálgico da questão: o que fazer ante as normativas recentes? A resposta é simples: dialogar! Discutir, debater os modelos e chegar num ponto que seja bom para todos (jurisdicionados, atores processuais, participantes dos processos, juízes e servidores). Precisamos cada vez mais exercitar a arte de buscar o consenso a partir do dissenso.

A discussão no campo exclusivamente das ideias é sempre válida para o engrandecimento, para o aperfeiçoamento e para a consolidação da opinião, para isso, precisamos ouvir, e ouvir com eficácia, implica dar àquele que fala sua completa atenção, somada à sua capacidade de compreensão, somente desta forma crescemos, assim nos fortalecemos e conseguimos construímos um futuro melhor. A Administração da Justiça na presente quadra, não pode prescindir do diálogo, da troca de ideias e do debate das políticas públicas implantadas, especialmente, quando elas têm impacto em todo o sistema de justiça49.

Isso não significa dizer que necessariamente as normativas recentes sejam ruins e as anteriores sejam melhores, logicamente, que a percepção da realidade depende do ponto de vista em que cada um se situa. Da mesma forma que interpretamos o mundo com base em nossas percepções da realidade, a compreensão da realidade acaba por refletir as visões de pontos de vistas diferentes, e, como disse o sábio Leonardo Boff “ponto de vista é a vista de um ponto”50, cada uma vê a questão de forma diferente, porque estão em pontos diferentes51. Os advogados olham a questão de um determinando ponto, os juízes e servidores de outro, é como se desenhássemos o número 6 (seis) no chão, e cada um ficasse numa ponta um lado enxerga o número 6 (seis) e o outro lado o número 9 (nove), mas, ambos estão corretos.

Da mesma forma a alta cúpula do Poder Judiciário, na questão em discussão, cada um olhou o tema do seu ponto de vista (um viu o número 6 e o outro o número 9), sem perceber e se atentar para o outro ponto. O que precisamos agora é, mais do que nunca, dialogar, ouvir os argumentos de todos e perceber que todos terão razão no ponto de vista colocado, e assim, caminhar para uma solução de consenso.

A compreensão é sempre uma forma de interpretação. Os antigos bem diziam: habent as fata libelli, os livros têm seu próprio destino. Tinham razão, porque o destino do texto está ligado ao destino dos leitores. E com esta visão esclareço, novamente, acredito que os envolvidos estão vendo a questão de pontos de vistas distintos, e por isso, penso que a única forma de caminhar para uma solução adequada é através do diálogo e da busca pelo consenso, mesmo que partindo da divergência.

Nesse diapasão, ouso colocar aqui minha visão (meu ponto de vista), entendo que a Justiça 4.0 é muito mais do que um conjunto normativo (microssistema) que contempla avanços tecnológicos determinantes para comunicação e transmissão de informações pelo Sistema de Justiça, pois, na verdade, contempla uma proposta teórico-pragmática, principiológica, orientada por significativas contribuições multidisciplinares (digital, cibernética, estatística, administrativa, gerencial, entre outras)52 para (re)dimensionar o que na contemporaneidade é e deve ser compreendido como efetivação da prestação jurisdicional adequada, célere, justa e de qualidade53.

Pelo que o aperfeiçoamento da Justiça – através do modelo de justiça digital: Justiça 4.0 – é resultado, sim, do processo contemporâneo de desenvolvimento social e humano e dos avanços científicos e tecnológicos, que, no âmbito jurídico, têm oferecido instrumentos digitais que tornam melhor a experiência dos usuários do Sistema de Justiça, e, sensivelmente, aos jurisdicionados, através da melhoria da comunicação e obtenção de informações, da ampliação da acessibilidade, ocasionando, maior transparência, eficiência e celeridade na prestação jurisdicional.

Assim, essa nova perspectiva do acesso à Justiça, através da (re)definição da acessibilidade como expressão também de inclusão digital, insofismavelmente, demanda (re)organização estrutural e funcional do Poder Judiciário, para uma realidade digital e para uma nova justiça: Justiça 4.0 e consequentemente uma nova mentalidade.

Sem dúvida, conforme ensina o Min. Toffoli, “o avanço, a ser conduzido com prudência, mas sem hesitações, representa a melhor e mais adequada resposta a uma realidade social irreversível e que contribui decisivamente para uma maior celeridade da Justiça, tão reclamada pela sociedade”54, bem como, para um maior e mais significativo aumento eficiência e economicidade55.

É preciso reconhecer que o futuro está na nossa frente, precisamos caminhar e ver aonde a “estrada digital” irá nos levar, como disse Fernando Pessoa “navegar é preciso56. O modelo de justiça digital configura um verdadeiro convite a navegação nos novos mares, nos mares da internet, nos mares da tecnologia de modo a propiciar uma travessia57 para os novos tempos.

Ora, conforme bem alertava David Kennedy:

(...) seria surpreendente se a nova ordem estivesse à espera de ser descoberta, em vez de ser construída. Podia ser, claro está, que o nosso mundo já estivesse constituído, estruturado, governado, e a nós nos faltasse simplesmente a visão para compreender como ele funciona. Parece mais plausível, contudo, supor que o nosso entendimento convencional avariou porque as coisas no mundo estão a mudar – a mudar rapidamente e em todos os tipos de direções distintas, ao mesmo tempo. Se é para haver uma nova ordem, jurídica ou outra, ela será tão criada como descoberta”.58

Resta, pois, trabalhar para a consolidação dessa nova justiça: a Justiça 4.0, logicamente que isso implica neste momento ponderação, reflexão e alinhamento de todos os pontos de vista não convergentes. É preciso reconhecer que a disrupção do modelo tradicional do Poder Judiciário não pode acontecer do dia para noite, contudo, é necessário também reconhecer que não devemos abrir mão de todos os ganhos concretizados, o passo dado não permite retrocesso, mas, admite, sem dúvida, temperamento, composição, adequação e correção. Nem tanto ao mar nem tanto à terra, o caminho do meio é sempre o melhor a ser seguido.

Assim, pensamos que é perfeitamente possível a adoção de um modelo híbrido que permite a realização de audiências virtuais/telepresenciais (totalmente – com todos os participantes fora do Fórum ou parcialmente – com alguns participantes no Fórum). Nas audiências totalmente virtuais/telepresenciais não seria obrigatória a participação do juiz na sede fórum, isso porque, não se pode extrair da Constituição cidadã de 1988 um comando no sentido de que o magistrado só pode atuar de dentro do seu gabinete no interior do fórum59, mormente porquanto ausente qualquer preceito normativo neste sentido e, porque, por outro lado, isso afastaria o julgador do usuário da justiça. A tecnologia está aproximando o cidadão da justiça e não o contrário60. Contudo, isso não significa que o magistrado não precisa “aparecer na Comarca”, que estaria definitivamente dispensado da presença física no Fórum. Ao contrário, significa que é um modelo híbrido, quando necessário estará presente, seja para realização de audiência ou outro ato processual (v.g. inspeção pessoal), seja para o atendimento aos advogados que desejarem a modalidade presencial. Mas, não sendo necessária a presença, não precisa praticar todos os atos processuais do Fórum e isso inclui, logicamente, as audiências totalmente virtuais/telepresenciais.

Nesse modelo híbrido se mantem o núcleo central (o core) do microssistema de justiça digital, com o juízo 100% digital61, o balcão virtual e o Núcleo de Justiça 4.062, sendo possível o teletrabalho, logicamente que regulamentado e disciplinado pelos Tribunais (não me parece viável uma norma detalhada em âmbito nacional, salvo, se for apenas principiológica, com diretrizes gerais) que terão capacidade de analisar e observar a realidade local de um país de dimensão continental, atento as peculiaridades de cada região, poderiam perfeitamente numa construção coletiva e democrática, com participação de todos os interessados, encontrar o ponto de equilíbrio do modelo de trabalho remoto (já universalmente consagrado).

Além disso é indispensável o atendimento aos advogados, mesmo que o magistrado não esteja presente fisicamente no Fórum, realizando o mesmo pelos meios digitais disponibilizados pelo Tribunal.

Com isso, parece que iremos caminhar para um modelo que atende os pontos de vista divergentes. Não pretendemos com a sugestão apresentada, logicamente, resolver a questão que é complexa e demanda estudo e compreensão aguçada, mas, se com essa limitada e diminuta contribuição conseguirmos fazer com que a bola do diálogo role em campo, provocando contrapropostas, discussões e debates, estarei satisfeito com resultado. Como diz Bruce Buffer “It's time!” da luta no campo das ideias, para permitir o diálogo, a discussão, a maturação e a compreensão do tema, que irá possibilitar a convergência e consequentemente a solução do problema.

Sobre o autor
Fábio Ribeiro Porto

Doutorando em Direito na Universidade Clássica de Lisboa. Mestre em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-Graduado em Direito Privado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Juiz de Direito e Professor Universitário. Professor Palestrante da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (ESAJ). Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Privado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrou o Grupo de Trabalho sobre provas digitais do Conselho Nacional de Justiça. Membro do Grupo de Trabalho destinado à elaboração de estudos e de propostas voltadas à adequação dos tribunais à Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados). Coordenou o Grupo de Trabalho para estudo de soluções relativas ao acesso à Application Programming Interface (API) e outros mecanismos de integração assíncrona, para comunicação sistêmica e ao modelo de participação da iniciativa privada na evolução, no aprimoramento e no aperfeiçoamento da Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), estabelecida pela Resolução CNJ nº 335/2020. Ex Membro do Grupo de Trabalho da Grupo de Trabalho sobre Transformação Digital da Comissão Permanente da Rede de Cooperação Jurídica e Judiciária Internacional dos Países de Língua Portuguesa. Ex Membro suplente do Comitê Gestor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (CGLGPD) do Conselho Nacional de Justiça. Ex membro da Comissão Judiciária De Articulação Dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (COJES). Ex Membro do Comitê Gestor de Tecnologia da Informação e Comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CGTIC). Ex Membro do Comitê Gestor de Segurança da Informação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CGSI). Ex Membro do Comitê de Gestão dos Sistemas Informatizados do Poder Judiciário. Ex Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro. Ex Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, coordenador do Departamento de Tecnologia da Informação do CNJ na gestão do Ministro Luiz Fux.

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