Sumário: 1. Introdução. 2. Status da proteção assegurada pela inviolabilidade do domicílio. 3. A classificação do drone segundo as gerações de direito probatório. 4. O uso de drone no enfrentamento à macrocriminalidade. 4.1. Natureza da prova produzida com o uso de drone. 4.2. O regime legal do drone no Brasil. 4.3. O tratamento do drone na jurisprudência brasileira. 5. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Quando se trata do emprego de técnicas especiais de investigação criminal, um dos principais obstáculos suscitados em âmbito doutrinário e jurisprudencial se refere ao cabimento da limitação de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição e em documentos internacionais de proteção aos direitos humanos. Sobre tais limites ao direito à prova, ensinam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho que: “O direito à prova, conquanto constitucionalmente assegurado, por estar inserido nas garantias da ação e da defesa e do contraditório [...], não é absoluto, encontrando limites”1.
Em especial, destacam-se as inviolabilidades da intimidade, da vida privada, da honra e imagens das pessoas, bem como a inviolabilidade do domicílio (art. 5º, incisos X e XI, da Constituição Federal). No que se refere, especificamente, ao emprego de veículo aéreo não tribulado (VANT)2 ou aeronave remotamente pilotada (Remotely Piloted Aircraft System – RPAS), também chamados popularmente de drones3, como técnica de investigação criminal, para o enfrentamento e repressão eficiente de crimes praticados por organizações criminosas, avulta o óbice ligado à proteção do asilo da pessoa natural.
Nesse sentido, também se ressalta a problemática da ilicitude das provas obtidas com uso de aeronave remotamente pilotada. Ocorre que, antes mesmo de se falar em prova ilícita, cumpre ao operador jurídico responder a algumas indagações de ordem epistêmica, como, por exemplo, se a ordem constitucional conferiu caráter absoluto ou relativo à inviolabilidade do domicílio, para, apenas, ao final, dizer se a utilização de drones chega realmente a violar algum princípio ou direito fundamental.
Além disso, para que se possa falar em uso de drone como técnica de investigação, mostra-se oportuna uma análise do direito probatório, mormente de suas gerações, que foi dividida pela doutrina em primeira, segunda e terceira geração. Outrossim, convém examinar a disciplina legal de RPAS no ordenamento jurídico brasileiro e seu respectivo tratamento na esfera jurisprudencial.
Assim, o presente trabalho tem por escopo analisar os limites e as possibilidades de uso de sistema de aeronave remotamente pilotada como técnica (i)legítima de investigação criminal, para a reunião de elementos de informação capazes de justificar a decretação de medidas cautelares de natureza probatória e, consequentemente, também auxiliar na localização de vítimas, de bens ou de objetos de origem criminosa.
STATUS DA PROTEÇÃO ASSEGURADA PELA INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO
Em relação ao rol dos direitos fundamentais previsto na Constituição Federal de 1988, sabe-se que o Brasil adota um sistema aberto (não taxativo) de direitos fundamentais, conforme cláusula de abertura contida no art. 5º, §2º, da CF/88. Tais direitos são encontrados ao longo do texto constitucional, podendo ser expressos ou implícitos, ou, ainda, decorrentes dos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte.
Nesse contexto, a inviolabilidade do domicílio está situada no rol dos direitos fundamentais expressos. A propósito, dispõe o art. 5º, da CF/88: “XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”45. Cuida-se, a um só tempo, de um direito e de uma garantia individual, pois a referida disposição constitucional encerra, em si mesma, a própria garantia, que, por sua vez, visa à tutela do direito à intimidade e ao recesso do lar.
Historicamente, embora com um viés religioso, a proteção concedida ao lar remonta aos mais antigos tempos. Fustel de Coulanges observa que nas sociedades gregas o lar funcionava como uma espécie de altar, onde o fogo doméstico se apossa do solo e a família permanecia agrupada ao seu redor. Conforme explica Coulanges: “A ideia de domicílio nasce naturalmente. A família está ligada ao fogo doméstico, o fogo doméstico ao solo – assim, uma conexão estreita se estabelece entre o solo e a família”6.
Ainda, segundo Nelson Hungria: “Foi na liberal Inglaterra que o princípio da inviolabilidade do domicílio deparou o mais categórico reconhecimento. Antes mesmo que a Revolução Francesa erigisse em garantia constitucional o princípio de que ‘la maison de chaque citoyen est um asile inviolable’, o cidadão inglês já podia dizer: “my house is my castle”7.
De acordo com José Afonso da Silva: “O objeto de tutela não é, porém, a propriedade, mas o respeito à personalidade, de que a esfera privativa e íntima é aspecto saliente. A proteção dirige-se basicamente contra as autoridades. Visa a impedir que estas invadam o lar. Mas também se dirige aos particulares. O crime de violação de domicílio tem por objeto tornar eficaz a regra da inviolabilidade do domicílio”8.
Apesar disso, a cláusula de garantia e proteção do domicílio comporta algumas restrições, as quais foram expressamente previstas no texto constitucional. Vale dizer: “essas restrições à proteção do domicílio ligam-se ao interesse da própria segurança individual (caso de delito) ou do socorro (desastre ou socorro), ou da Justiça, apenas durante o dia (determinação judicial), para busca e apreensão de criminosos ou de objeto de crime”9.
Violado o domicílio, fora das hipóteses estritamente previstas pelo legislador constituinte, consideram-se ilícitas as provas obtidas diretamente como decorrência da violação à garantia fundamental - expressiva de tutela do direito à privacidade do indivíduo e da própria personalidade humana, bem como se reputam viciadas as demais provas derivadas, por força do princípio constitucional da vedação das provas ilícitas e da teoria dos frutos da árvore envenenada (art. 5º, inciso LVI, da CF/88 e art. 157, “caput”, e §1º, do CPP).
Isso porque, no cenário das provas ilícitas, consideram-se como tais aquelas que forem obtidas em violação a normas constitucionais ou legais (art. 157, “caput”, do CPP). Conforme explica Guilherme de Souza Nucci: “Logo, ilicitude é o gênero do qual se difundem as várias formas de ilegalidades. A infração a normas constitucionais (ex.: invasão de domicílio sem ordem judicial e distante das exceções previstas no art. 5º, XI, da CF, para obter um documento incriminador) ou a normas legais [...] caracteriza o universo da ilicitude, cuja consequência é a extração da prova do processo”10.
Sobre o status da proteção assegurada pela inviolabilidade do domicílio, tanto para o STF como para a doutrina majoritária, não existem direitos fundamentais absolutos, quer seja em virtude da característica intrínseca da relatividade dos direitos fundamentais, quer seja em razão do princípio da razoabilidade, que admite o emprego da técnica conhecida como juízo de ponderação no caso de colisão entre direitos fundamentais. Outrossim, até mesmo de acordo com o princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas, os direitos e garantias fundamentais consagrados na Lei Maior não são ilimitados, visto que encontram seus limites nos demais direitos igualmente assegurados pela Texto Magno.
Como preleciona Renato Brasileiro de Lima: “As liberdades públicas não podem ser interpretadas em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio da convivência das liberdades: não se permite que sejam exercidas de modo danoso à ordem pública e às liberdades alheias; não podem funcionar como mecanismo de salvaguarda para atividades ilícitas”11. Uma parcela da doutrina, por outro lado, afirma que o direito de não ser torturado, o direito de não ser escravizado e o direito de não ser compulsoriamente associado integrariam um bloco de três direitos fundamentais de natureza absoluta12.
Por exemplo, já decidiu o STF no julgamento do MS n. 23.452/RJ que:
“Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição” (destaques do próprio relator)13.
Com efeito, certo é que “estudar os direitos fundamentais significa principalmente estudar suas limitações14”. Assim, no que diz respeito às espécies de limitações, Ingo Wolfgang Sarlet ensina que há pelo menos três tipos, pois “[...] os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na Constituição. Da mesma forma, há quem inclua uma terceira alternativa, vinculada à possibilidade de se estabelecer restrições por força de colisões entre direitos fundamentais, mesmo inexistindo limitação expressa ou autorização expressa assegurando a possibilidade de restrição pelo legislador”15.
No caso da inviolabilidade domiciliar, está-se diante de limites diretamente estabelecidos pela Constituição. Nesta hipótese, segundo J.J. Gomes Canotilho, “fala-se de restrições constitucionais directas. É a lei constitucional que, de forma expressa, procede a um primeiro recorte restritivo do conteúdo juridicamente garantido de um direito fundamental (ex.: art. 45º, restrição da liberdade de reunião proibindo as manifestações violentas ou armadas)”16.
Seja como for, nenhuma restrição será legítima se ferir a extensão e alcance do núcleo essencial do preceito fundamental, cujo conteúdo normativo se afigura irrestringível, sob pena de sua aniquilação total. Novamente, diz Sarlet: “Com efeito, a limitação de um direito fundamental não pode privá-lo de um mínimo de eficácia. A ideia fundamental deste requisito é a de que existem conteúdos invioláveis dos direitos fundamentais que se reconduzem a posições mínimas indisponíveis às intervenções dos poderes estatais, mas que também podem ser opostas – inclusive diretamente – a particulares, embora quanto a esse último aspecto exista divergência doutrinária relevante”17.
No que tange ao domicílio, portanto, existe um âmbito de proteção do direito fundamental passível de restrição, por intermédio de uma intervenção, que pode ser de natureza particular (ex.: invasão da habitação para prestar socorro) ou estatal (ex.: busca e apreensão domiciliar). Aliás, em sua tese que propõe a restringibilidade de todos os direitos fundamentais, afirma Virgílio Afonso da Silva: “todos os direitos fundamentais são restringíveis e todos os direitos fundamentais são regulamentáveis”18, contanto que haja um ônus argumentativo ou uma fundamentação constitucional adequada. Há que se mencionar, ainda, a possibilidade de exclusão de condutas ou situações do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, porquanto “um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas”19.
Daí resulta inafastável a conclusão no sentido de que a cláusula tutelar da inviolabilidade do domicílio ostenta status relativo, visto que não existem na ordem constitucional brasileira direitos e garantias absolutos. Neste sentido, desde que preservado o seu núcleo essencial e observada a necessidade de argumentação adequada, todos os direitos fundamentais são restringíveis. Além disso, a concepção constitucional moderna é de que inexistem garantias individuais de ordem absoluta, especialmente com o escopo de salvaguardar condutas ilícitas.
A CLASSIFICAÇÃO DO DRONE SEGUNDO AS GERAÇÕES DE DIREITO PROBATÓRIO
A questão envolvendo o uso de aeronave remotamente pilotada (RPAS) em investigações criminais guarda especial relação com o tema das gerações de direito probatório, tendo-se em vista que a classificação das provas em gerações – primeira, segunda e terceira – “está diretamente relacionada à necessidade (ou não) de prévia autorização judicial (cláusula de reserva de jurisdição) para a execução de certos procedimentos investigatórios invasivos, notadamente à vida privada e ao direito à intimidade”20.
Assim, cumpre examinar se a captura de fotografias com o uso de aeronave remotamente pilotada, para fins de investigação criminal, pressupõe prévia autorização judicial fundamentada, bem como realizar a devida classificação da referida técnica de investigação criminal, à luz das três gerações de direito probatório estudadas pela doutrina.
Com base nos precedentes Olmstead (1928), Katz (1967) e Kyllo (2001), da Suprema Corte norte-americana, classificam-se as provas, cronologicamente, em 1ª geração, 2ª geração e 3ª geração, considerando-se a evolução da interpretação constitucional quanto às limitações da atuação estatal frente a proteção assegurada pela 4ª Emenda da Constituição do Estados Unidos da América. No caso “Olmstead”, segundo o Professor Danilo Knijnik:
“Com efeito, julgado em 1928 pela Suprema Corte americana, Olmstead teve conversas telefônicas interceptadas pela inserção de um equipamento diretamente na fiação da empresa telefônica e na via pública. Os investigadores não haviam invadido, penetrado ou adentrado no domicílio, na propriedade ou nos pertences de quem quer que fosse. E o sinal de ‘voz’ que corria pelos fios da companhia telefônica não era uma coisa.
Chamada a apreciar a alegação de que a prova seria ilícita, pois realizada sem mandado judicial, a Suprema Corte concluiu que a ação policial não havia ‘penetrado em qualquer propriedade do acusado’, e que a correta interpretação da 4ª Emenda não poderia dar-se de forma a ‘alargá-la para além do conceito prático de pessoas, casas, papéis e pertences’ ou ‘para aplicar buscas e apreensões de forma a proibir escutar ou observar’”21.
Neste primeiro momento da trilogia, então, restou consagrada a teoria proprietária (trespass theory), que conferiu uma interpretação constitucional protetiva de coisas, objetos e lugares. Como afirma Knijnik: “a proteção constitucional estender-se-ia apenas para áreas tangíveis e demarcáveis, exigindo a entrada, o ingresso e a violação de um espaço privado ou particular, o que, na espécie, efetivamente não havia ocorrido, dado que nenhuma propriedade de Olmstead fora devassada pela autoridade”22.
Por sua vez, após quase quarenta anos, em 1967, no caso “Katz v. United States”, a Suprema Corte dos EUA alterou sua posição e passou a entender que a 4º Emenda regulava não apenas a busca de itens tangíveis, mas também se estendia para a gravação de declarações orais. Sobre o busílis mencionado, explicam João Biffe Junior e Joaquim Leitão Junior:
“No caso Katz v. United States, o investigado foi condenado por tribunal da Califórnia por transmitir informações de apostas por telefone, de Los Angeles para Miami e Boston, conduta esta proibida por lei federal.
A prova da prática delitiva foi obtida pelos agentes do FBI por meio da instalação de um dispositivo de gravação externamente a uma cabine de telefone público, utilizada pelo investigado. Como a cabine telefônica era pública, não haveria invasão ou ingresso em propriedade privada e tampouco apreensão de coisas, portanto, aplicável o precedente Olmstead v. United States, o que tornava a prova lícita.
[...]
No entanto, a Suprema Corte firmou o entendimento de que o meio pelo qual o Governo obteve a prova violou a privacidade do investigado, no momento em que ele utilizou a cabine de telefone, pois ainda que o investigado pudesse ser visto pelos agentes (cabine de vidro), ao fechar a porta atrás de si e pagar o valor que lhe permitia realizar a chamada, tinha o direito de supor que as palavras que pronunciaria ao telefone não seriam transmitidas para o mundo6, tratando-se assim de uma busca e apreensão, na acepção da 4ª Emenda.
Ou seja, a 4ª Emenda regula não só a apreensão de itens tangíveis, mas estende-se também ao registo de declarações orais”23.
Num segundo momento, portanto, observa-se a superação da teoria proprietária (Olmstead) para tornar efetivo o acolhimento da teoria da proteção constitucional integral (Katz), que amplia o âmbito de proteção constitucional de coisas, lugares e pertences para pessoas e suas expectativas de privacidade.
Por fim, já no ano de 2001, a Suprema Corte dos Estados Unidos concluiu que “os avanços tecnológicos sobre a materialidade das coisas não pode limitar o âmbito de proteção da vida privada e do direito à intimidade”24, ao julgar o caso conhecido como “Kyllo v. United States”. Desse modo, “a interpretação da 4ª Emenda, ao aludir a coisas, pertences, papéis e lugares, deveria sofrer uma atualização interpretativa, para além da doutrina Katz”25. A respeito do caso concreto subjacente, elucida Renato Brasileiro de Lima:
“O caso concreto dizia respeito a um agente de polícia que desconfiava que Danny Kyllo cultivava maconha no interior de sua residência. Apesar da suspeita, os elementos de informação até então existentes eram frágeis para que se pudesse obter um mandado judicial. Sabedores de que o cultivo de maconha demandava a utilização de lâmpadas de alta intensidade, surgiu, então, a ideia, por parte dos policiais, de utilizar um equipamento de captação térmica para que se pudesse monitorar, da via pública, emanações de calor do interior da residência de Kyllo. Com base na utilização desse equipamento, as autoridades policiais conseguiram, então, obter as evidências necessárias para a expedição de um mandado de busca, do qual resultou a apreensão de inúmeras plantas de cannabis sativa L”26.
Assim, no campo das provas até então desconhecidas não fosse o resultado dos novos avanços tecnológicos, surgem as provas de terceira geração, ou um direito probatório de terceira geração, em cuja contingência se incluem as “provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais até então adotadas”27.
Sua utilização em investigações criminais, para embasar pedidos de medidas cautelares de busca e apreensão domiciliar (art. 240, §1º, do CPP), poderá ou não ser reputada válida. Nesse sentido, pontifica Knijnik: “Então, se uma autoridade policial pretender utilizar um tipo de tecnologia que ainda não está disseminada no uso geral do público, segundo a ratio adotada em Kyllo, deve obter uma autorização judicial, com a apresentação dos requisitos indiciários bastantes para isso, pois estaria praticando uma restrição a direito fundamental, que somente à autoridade judiciária caberia autorizar, ante o princípio da reserva de jurisdição ou monopólio da primeira palavra”28.
Em suma, a “ratio decidendi” contida no precedente “Kyllo v. United States” alerta que, devido ao poder devassador, imprevisível e penetrante da tecnologia, sua utilização, quando ainda não pertencer ao uso geral do público, dependerá da análise de uma autoridade judiciária, tal como decorre dos princípios no quais se fundam o Estado Democrático de Direito (art. 1º, “caput”, da CF/88), dentre os quais, merece destaque o da separação de poderes (art. 2º, da CF/88), do qual é corolário a cláusula constitucional da reserva de jurisdição, que incide em matéria afeta à limitação de direitos fundamentais.
Deste modo, verifica-se que o emprego de drones como técnica de investigação criminal se insere no contexto de um direito probatório de terceira geração, já que a própria concepção do dispositivo é fruto do avanço tecnológico e a sua aplicação em atividades de investigação criminal permite alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelas técnicas tradicionais. Quanto à necessidade de mandado judicial para sua utilização em procedimentos investigatórios de natureza criminal, observa-se que o RPAS constitui uma tecnologia que está no uso geral do público, podendo ser facilmente adquirido em lojas físicas ou virtuais de componentes eletrônicos – a depender do modelo, por preços acessíveis –, também seu emprego não se converte numa busca capaz de suprimir a privacidade garantia pela inviolabilidade do domicílio, razões pelas quais se mostra dispensável autorização judicial prévia para a realização de aerofotografias mediante o uso de drone.
O USO DE DRONE NO ENFRENTAMENTO À MACROCRIMINALIDADE
O crime organizado (Lei n. 12.850/13) é uma das vertentes da macrocriminalidade, assim como o é a lavagem de capitais (Lei n. 9.613/98), os delitos contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492/86), as infrações contra a economia popular (Lei n. 1.521/51), o delitos contra a ordem tributária (Lei n. 8.137/90), dentre outros. Conquanto a ele não se resuma, a macrocriminalidade é objeto de estudo no âmbito do Direito Penal Econômico, de modo que engloba em sua definição os chamados crimes do colarinho branco (“white-collar crime”), praticados por indivíduos que gozam de elevado privilégio econômico e social, também os crimes vagos em que a sujeito passivo é a coletividade, além das infrações cujo objeto jurídico tutelado são os bens jurídicos de índole difusa ou transindividual.
Nessa perspectiva, segundo afirmam Marcos Alves da Silva, Priscila Luciene Santos de Lima e Evelise Slongo, a macrocriminalidade reflete uma tendência expansionista do Direito Penal, que “envolve crimes econômicos, responsabilização da pessoa jurídica, crimes tributários, financeiros, dentre outros”29.
Portanto, tida como fruto dos problemas gerados pela globalização, pelo desenvolvimento tecnológico, pelo recrudescimento dos índices de violência e pelo reconhecimento de uma sociedade de risco atualmente, a macrocriminalidade designa um conjunto de crimes que se insere numa tendência expansionista do Direito Penal. Neste caso, destacam-se a tutela de bens jurídicos coletivos, a existência de um sujeito ativo que desfruta e abusa do poder social, econômico e político, daí resultando a “apropriação da coisa coletiva/pública (res pública)”30, bem como a figura da sociedade como sujeito passivo desse gênero de infração penal.
Importante dizer que a macrocriminalidade também gera impactos na economia global31, em razão dos efeitos deletérios advindos de práticas criminosas como, por exemplo, a pirataria, o narcotráfico, a sonegação fiscal, a corrupção de agentes públicos, a lavagem de capitais, bem como é inegável que a omissão estatal na implementação de políticas de prevenção e repressão à criminalidade organizada gera um ambiente de insegurança perante investidores do mercado financeiro.
Certamente, as organizações criminosas ainda representam uma ameaça ao próprio Estado Democrático de Direito, visto que atentam contra seus pilares estruturantes como a transparência, a legalidade, a moralidade, a veracidade, a boa-fé, etc., bem assim surgem como um poder paralelo, ou, “grosso modo”, como espécie de Estado dentro do próprio Estado, capaz de levar à desestabilização da lei e da ordem, sobretudo em face das deficiências do sistema jurídico de controle. Dessa forma, o crime organizado é considerado “um poder paralelo que atua onde o Estado não cumpre suas intrínsecas funções”32.
Por fim, a macrocriminalidade deve ser vista como um obstáculo à concretização de direitos fundamentais assegurados pela Constituição, notadamente os de cunho positivo ou prestacional. Aliás, de acordo com Augusto Martinez Perez Filho, Geralda Cristina de Freitas Ramalheiro e Ricardo Augusto Bonotto Barboza: “Necessário novas e complexas estruturas que demandam um montante cada vez maior de recursos para o combate deste tipo de criminalidade, representando vultuosas somas que deixam de ser direcionadas à realização de direitos sociais”33.
Vem de longa data a crítica à ineficiência do sistema jurídico de combate ao crime organizado. Nessa linha, ensina Antonio Scarance Fernandes: “O campo mais problemático para o legislador e para a doutrina é o da criminalidade grave e/ou organizada. Têm os países dificuldade em enfrentá-la. Não sabem mesmo como criar um corpo legislativo que, outorgando eficiência ao sistema repressivo, não fira os direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição e Convenções Internacionais”34.
Com efeito, na atualidade, consabido que o combate eficiente e eficaz à criminalidade organizada não pode mais ficar refém da utilização exclusiva dos tradicionais métodos de investigação, como a requisição de documentos, oitiva de testemunhas etc. A repressão e combate ao crime organizado é ineficaz se o Estado se utiliza dos mesmos instrumentos de combate à criminalidade comum. Conforme ensinam Cleber Massom e Vinicius Marçal: “Somente com a adoção de técnicas especiais de investigação é possível, assim mesmo com dificuldade, revelar-se em minúcias o foco e o modo de atuação da criminalidade organizada, bem como a identidade dos seus membros”35.
Somado a isso, não se pode olvidar que, atualmente, o garantismo propugna uma compreensão de seu duplo viés negativo e positivo. Ou seja, não apenas pelo prisma originário de defesa exclusiva de direitos fundamentais de primeira geração, de imposição de limites de atuação do Estado (negativo), mas também pelo reconhecimento de obrigações de caráter positivo a cargo do Estado, que abrangem os deveres de prevenir, investigar e sancionar – com eficiência e eficácia – as violações dos direitos humanos fundamentais (p. ex. o art. 144 da CF expressa um dever estatal de proteção aplicável a todos os direitos fundamentais).
Diante desse contexto, Douglas Fischer e Frederico Valdez Pereira propõem a ideia de “garantismo penal integral”36, segundo a qual o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. Igualmente, o garantismo integral ressalta que a obrigação positiva do Estado existe tanto para garantir proteção aos violadores do ordenamento jurídico (v.g. acusados) como para proteger os direitos fundamentais dos demais integrantes da sociedade, o que inclui a tutela judicial das vítimas.
Seu escopo, enfim, é justamente alcançar um equilíbrio na proteção dos direitos e garantias individuais do investigado ou acusado com os direitos fundamentais titularizados pela coletividade, por meio da previsão de estruturas e mecanismos adaptados a prevenir, coibir e sancionar efetiva e eficazmente as lesões verificadas, sem excluir a possibilidade de restrição dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, desde que adequado, necessário e proporcional em sentido estrito (p. ex. mitigação da prescritibilidade de alguns crimes políticos ou ponderação da vedação de dupla persecução).
Em razão disso, faz-se premente a necessidade de adoção de técnicas especiais de investigação criminal e de todos os meios de obtenção de prova admitidos, a exemplo do uso de aeronave remotamente pilotada (RPAS), para o combate eficiente de crimes em que estejam envolvidas organizações criminosas, tal como autoriza o art. 369 do CPC c/c o art. 3º do CPP. Sua relevância no âmbito do crime organizado reside no fato de permitir, por meio de aerofotografias, o levantamento de áreas de imóveis utilizados por organizações criminosas, via de regra, com o intuito de ocultar e armazenar o produto ou o proveito da prática delituosa. Ou como diz José Paulo Baltazar Junior: “Permite, ainda, obviar a dificuldade da Justiça Penal em recair sempre sobre os peixes pequenos ou soldados da organização, encarregados do serviços sujo, como os transportadores de droga, enquanto os mandantes restam protegidos pelo manto da organização lícita ou com aparência de lícita”37.
4. 1. Natureza da prova produzida com o uso de drone
Inicialmente, a partir do advento da Lei n. 11.690/98, afirma-se que passou a constar expressamente do CPP a distinção entre prova e elementos informativos. Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima define elementos informativos como sendo “aqueles colhidos na fase investigatória, sem a necessária participação dialética das partes”38. Apesar de não estarem sujeitos à observância obrigatória do contraditória e da ampla defesa, “são de vital importância para a persecução penal, pois, além de auxiliar na formação da opinio delicti do órgão da acusação, podem subsidiar a decretação de medidas cautelares pelo magistrado ou fundamentar uma decisão de absolvição sumária (CPP, art. 397)”39.
A seu turno, “a palavra prova só pode ser usada para se referir aos elementos de convicção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por conseguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório (ainda que diferido) e da ampla defesa”40. Logo, funcionando o contraditório como verdadeira condição de existência da prova, só poderão ser considerada como tais os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação dialética das partes.
Com base em tal diferenciação, nota-se que as fotografias aéreas obtidas com a utilização de aeronave remotamente pilotada podem ingressar nos autos como prova ou como elemento informativo, a depender do momento em que vieram a ser produzidas e acostadas aos autos. Fato é que, como regra, tais aerofotografias funcionaram como elementos informativos, uma vez que, conforme já visto, são produzidas independentemente de contraditório ou autorização judicial, bem como, no âmbito da investigação criminal, sua utilidade está em subsidiar a decretação de medidas cautelares, a exemplo da busca e apreensão domiciliar.
De qualquer sorte, convém sublinhar que as fotografias, por si, são consideradas como espécie de prova documental. Como salienta José Frederico Marques: “O documento em sentido estrito, ou documento instrumental, é o documento escrito. [...] Hoje, porém, graças ao progresso técnico-científico, outros meios existem de representação documental, que, ao lado dos escritos ou instrumentos, mantém a representação do fato. Por isso, ao lado do documento escrito, ou documento em, sentido estrito, outras provas documentais são usadas, como a prova fotográfica, e ainda a cinematográfica e a fonográfica”41.
Vale dizer, sob um viés pragmático, dificilmente uma aerofotografia será recepcionada como prova, em sentido técnico, no bojo de uma ação penal, mesmo que assegurada a manifestação da parte contrária, tendo em vista que a formação de um juízo de certeza em torno da culpa exige prova plena, o que não se espera de uma fotografia aérea produzida após a consumação do fato.
Em relação aos meios de obtenção de prova, de se registrar que o uso de drone para obtenção de aerofotografias está inserido no contexto das técnicas especiais de investigação, que surgiram com a Convenção da ONU contra o Crime Organizado (Convenção de Palermo – art. 20) e cuja adoção é recomendada explicitamente pela Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (Convenção de Mérida – art. 50). Ademais, para que tais técnicas sejam eficazes na investigação de crimes graves, impõe-se a observância de seu caráter sigiloso e a sua submissão ao chamado contraditório diferido.
Como bem analisa André Luís Charan: “O objetivo da instituição das técnicas especiais de investigação é justamente buscar eficiência na persecução estatal dos crimes praticados por grupos criminosos organizados, dotados de grande poder econômico e profissionalismo e aparelhados com as mais novas tecnologias de informação e comunicação”42.
Demais, oportuno frisar que tais técnicas especiais de investigação constituem um rol meramente exemplificativo, conforme se depreende do teor do próprio art. 3º, “caput”, da Lei n. 12.850/13. Assim, a par dos meios já conhecidos como a colaboração premiada e a infiltração de agentes, as provas obtidas com o uso de drone devem ser encaradas como mais uma técnica especial de investigação criminal e verdadeiro meio de obtenção de prova.
O regime legal do drone no Brasil
No ordenamento jurídico brasileiro, não há uma codificação especificamente dirigida à disciplina legal das atividades de comércio e uso de aeronaves remotamente pilotadas (RPAS). No geral, aplicam-se, no que couber, as normas do Código Brasileiro de Aeronáutica, o regulamento de aviação civil especial expedido pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC e as portarias baixadas pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo - DECEA, órgão central do Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro (SISCEAB), dotado de competência para legislar sobre procedimentos para o acesso ao espaço aéreo.
Dessa forma, dentre as normas que se destinam a regular o controle do espaço aéreo e que também se aplicam diretamente aos drones, incluem-se os seguintes atos normativos: a) Lei n.º 7.565/86 – Código Brasileiro de Aeronáutica; b) RBAC-E n.º 94 - ANAC; c) ICA n.º 100-40 - DECEA; d) MCA n.º 56-1 - DECEA; e) MCA n.º 56-2 – DECEA; f) MCA n.º 56-3 – DECEA; e g) MCA n.º 56-4 – DECEA.
A Lei n. 7.565/86 – Código Brasileiro de Aeronáutica é aplicável aos operadores de aeronaves não tripuladas, notadamente, no que diz respeito à submissão da aeronave às normas, orientação, coordenação, controle e fiscalização do Ministério da Aeronáutica (art. 12, inciso IV), à fixação de zonas em que se proíbe ou restringe o tráfego aéreo (art. 15) e à proibição de transporte de explosivo, munições, arma de fogo, material bélico, equipamento destinado a levantamento aerofotogramétrico ou de prospecção (art. 21).
Além disso, como um dos principais corpos normativos a respeito do tema envolvendo aeronave não tripulada, ressalta-se o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil Especial - RBAC-E 94, que aborda os requisitos gerais de competência da ANAC para aeronaves não tripuladas, estabelecendo os requisitos gerais para aeronaves não tripuladas de uso civil. Esse Regulamento Especial estabelece as condições para a operação de aeronaves não tripuladas no Brasil, tendo por finalidade promover um desenvolvimento sustentável e seguro para o setor, bem como algumas restrições operacionais.
Exemplificativamente, consoante os mencionados requisitos gerais: todo piloto de RPA deve ser maior de 18 anos de idade; há exigência de certificado de aeronavegabilidade dependendo do modelo do RPA e classificação estabelecida de acordo com seu peso de decolagem; entre as regras de voo, a operação de aeromodelos de peso máximo de decolagem acima de 250 gramas somente é permitida pela ANAC em áreas distantes de terceiros.
Já por meio da edição da ICA 100-40 (DECEA), que dispõe sobre aeronaves não tripuladas e o acesso ao espaço aéreo brasileiro, objetivou-se regulamentar os procedimentos e responsabilidade necessários para o acesso seguro ao Espaço Aéreo Brasileiro para aeronaves não tripuladas. Nessa Instrução, foram previstas regras de acesso ao espaço aéreo e sanções administrativas para efeito de infração de tráfego aéreo (ex.: voar próximo ou sobrevoar aglomeração de pessoas que não sejam anuentes com a operação).
A par disso, também é importante destacar os Manuais do Comando da Aeronáutica (MCA), cujo conteúdo é de observância obrigatória, conforme rol abaixo elencado:
MCA 56-1 (DECEA): aprova o manual que trata de aeronaves não tripuladas para uso exclusivo em apoio às situações emergenciais.
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MCA 56-2 (DECEA): trata de aeronaves não tripuladas para uso recreativo-aeromodelos.
MCA 56-3 (DECEA): aprova o manual que trata de aeronaves não tripuladas para uso em proveito dos órgãos ligados aos governos federal, estadual e municipal.
MCA 56-4 (DECEA): aprova o manual que trata de aeronaves não tripuladas para uso em proveito dos órgãos de Segurança Pública, da Defesa Civil e de Fiscalização da Receita Federal.
Como se vê, nos termos dos manuais citados acima, existem variados tipos de operação que podem ser realizadas por aeronaves não tripuladas. Ocorre que nenhum dos atos normativos já mencionado no presente trabalho contém disposição expressa vendando o uso de aeronave remotamente pilotada em atividades de investigação criminal. Pelo contrário, na forma do MCA 56-4/2020, admitem-se operações de aeronaves pertencentes a entidades controladas pelo Estado, tecnicamente chamadas de aeronaves orgânicas, inclusive pelo órgãos de segurança pública, como é o caso da Polícia Civil, quando do desempenho de suas funções de polícia judiciária e na apuração das infrações penais de sua atribuição própria (art. 144, §4º da CF/88 e art. 2º, da Lei n. 12.830/13).
4.3. O tratamento do drone na jurisprudência brasileira
No âmbito da jurisprudência dos Tribunais Superiores, não há registro de decisões enfrentando a questão da licitude e admissibilidade das técnicas de investigação criminal empregadas com o auxílio de aeronave remotamente pilotadas. Por outro lado, no que se refere à jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais, foi possível reunir três precedentes importantes sobre a temática em estudo e oriundos, respectivamente, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Em 2015, no julgamento de habeas corpus impetrado por paciente atuado pela suposta prática do delito de tráfico ilícito de entorpecente e drogas afins, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais enfrentou, dentre outras teses, a alegação do impetrante de que a utilização de drone na nas investigações pela polícia caracterizaria produção de prova ilícita, pois o uso de tal equipamento seria proibido pela ANAC.
Na ocasião, por unanimidade, os julgadores entenderam não ser possível afirmar que a utilização de um “DRONE/VANT” na investigação se deu com inobservância ao disposto na Instrução Suplementar n.º 21-002 da Agência Nacional de Aviação Civil. Ademais, da leitura da referida Instrução Suplementar da ANAC, os Desembargadores não vislumbraram a ilegalidade sustentada pela parte impetrante, reconhecendo a existência de meras suposições, de forma que não havia que se falar em ilegalidade da prisão ou nulidade do feito pelo uso dos retrocitados dispositivos. Eis a ementa do acórdão:
“EMENTA: HABEAS CORPUS - TRÁFICO DE DROGAS - ILEGALIDADE DA PRISÃO - EQUÍVOCO QUANTO A IMPUTAÇÃO DELITIVA - AUSÊNCIA DE PREJUÍZO - USURPAÇÃO DA FUNÇÃO INVESTIGATIVA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA PELA POLÍCIA MILITAR - INOCORRÊNCIA - USO DE DRONE/VANTS PARA FINS INVESTIGATIVOS - PROIBIÇÃO PELA ANAC - IRREGULARIDADE NÃO DEMONSTRADA - PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PRISÃO PREVENTIVA - LIBERDADE PROVISÓRIA - NÃO CABIMENTO - DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA - PRESENÇA DOS ELEMENTOS ENSEJADORES DA CUSTÓDIA CAUTELAR - CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO” (TJ-MG: Habeas Corpus Criminal 1.0000.15.004224-0/000, Rel. Des. PAULO CÉZAR DIAS, j. em 13.03.2015).
No mesmo sentido, no mês de dezembro de 2021, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Território, por meio de sua 1ª Turma Criminal, em julgamento de habeas corpus, firmou o entendimento de que a utilização do aparelho drone para captura de imagens na residência de investigados por tráficos de drogas e associação para o tráfico não constituiu prova ilícita. No caso, o impetrante sustentava a necessidade de trancamento da ação penal por falta de justa causa, uma vez que a denúncia se embasaria em busca e apreensão deferida judicialmente com fundamento em mera “denúncia anônima”, desacompanhada de elementos mínimos de confirmação, bem como em captura de imagens por meio de drone sem autorização judicial.
Prevaleceu a tese segundo a qual, ao invés de violar direitos fundamentais, a utilização do drone consistente em aperfeiçoamento da atividade investigativa, robustecendo os indícios de atividade criminosa em curso, de maneira a subsidiar o deferimento da busca e apreensão. Nessa senda, destacou o Desembargador Carlos Pires Soares Neto (1º vogal): “impedir a utilização dos drones nas investigações policiais consistiria em retrocesso no que se refere ao avanço tecnológico dos meios de investigação, ao passo que, na contramão, as práticas delituosas revelam-se cada dia mais sofisticadas, arrojadas e, nesse caminhar, imunes à persecução penal e à devida punição”.
“HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO (ARTIGOS 33, CAPUT, § 1º, I, II, 35, CAPUT, E 40, V, DA LEI 11.340/06). UTILIZAÇÃO DE DRONE PARA CAPTAÇÃO DE IMAGENS NO DOMICÍLIO DO INVESTIGADO. QUEBRA DO SIGILO DE DADOS DE APARELHO CELULAR SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. MEDIDA CAUTELAR NÃO DISPONIBILIZADA À DEFESA. NULIDADES. PRISÃO. RELAXAMENTO. 1. A utilização do aparelho drone para captura de imagens na residência do investigado não constituiu, no caso ora examinado, prova ilícita (maioria). 2. É nula a quebra do sigilo dos dados de telefones de terceiros, sem que tenha havido prévia autorização judicial. Declarada a nulidade da prova e o seu desentranhamento dos autos, assim como as provas derivadas. 3. A disponibilização de acesso à Defesa, de medida cautelar contendo provas produzidas na investigação policial, somente na fase do artigo 402 do CPP, constitui nulidade insanável, por ofensa à Súmula 14 do STF e aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. 4. Estando a denúncia contaminada pelas provas ilícitas, decreta-se a sua nulidade com o consequente desentranhamento dos autos. 5. Anulada a ação penal, imperativo o relaxamento da prisão do Paciente. 6. Nos termos do artigo 580 do CPP, estende-se os efeitos da decisão aos corréus. 7. Ordem concedida para anular a ação penal e relaxar a prisão do Paciente” (TJDFT: Processo: 07324193120218070000, Rel. Des. CESAR LOYOLA, j. em 02.12.2021).
Tal entendimento, posteriormente, em sede de recurso ordinário em habeas corpus, foi ratificado por meio de decisão monocrática do Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, do Superior Tribunal de Justiça, que salientou não se cogitar de ilicitude das provas produzidas, tendo em vista que persistiam todos os outros elementos de provas colhidos antes do uso do drone e que são, por si só, suficientes à fundamentação da busca e apreensão na propriedade do recorrente43.
Por derradeiro, em 2022, a 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo analisou recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra decisão que havia indeferido pedido de expedição de mandado de busca e apreensão domiciliar objeto de anterior representação policial. De acordo com a autoridade judicial, a medida cautelar postulada estava embasada em uma violação anterior indevida do domicílio alheio, pois os investigadores teriam devassado o endereço objeto da diligência sem que houvesse qualquer suspeita prévia da prática de crime naquele logradouro, o que configuraria conduta ilícita. Além disso, ponderou que as aerofografias obtidas com o uso de drone consubstanciava uma violação indireta do domicílio alheio, em desconformidade com a garantia insculpida no art. 5º, inciso XI, da CF.
Todavia, na superior instância, prevaleceu o entendimento no sentido de que não ocorreu violação ao direito de inviolabilidade de domicílio em decorrência da investigação realizada. Conforme os fundamentos da tese vencedora, ressaltou-se que o avanço do desenvolvimento tecnológico, apesar de contribuir para o engrandecimento da sociedade, também é utilizado de forma desvirtuada pela criminalidade, a qual lança mão de todas as ferramentas aptas ao desenvolvimento de atividades ilícitas. Assim, deve ser admitido o melhor aparelhamento das instituições policiais, que devem utilizar-se de ferramentas que as permitam acompanhar o devasso ritmo com o qual se aperfeiçoa e se cerca de subsídios a delinquência.
Foi também consignado que a investigação policial deve se valer de meios que lhe proporcionem maior eficiência, que harmonizem a função policial à hodierna era da tecnologia, sob pena de verdadeiro retrocesso, uma disparidade entre criminosos munidos de aparelhamentos sofisticados e instituições policiais agrilhoadas a métodos já anacrônicos para a execução de suas tarefas, cenário esse que não deve prevalecer.
Frente a tal panorama, segundo a Relatora do acórdão, Desembargadora Fátima Vilas Boas Cruz: “a utilização de aeronave não tripulada (“drone”) se faz mister ao desenvolvimento da atividade policial, desde que empregada de forma razoável e proporcional, ainda mais quando em cotejo a liberdades públicas, as quais, entretanto, não possuem natureza absoluta, e não podem servir para encobrir atividades criminosas [...]”. A esse respeito, vale reproduzir a ementa do aresto:
“APELAÇÃO CRIMINAL - Recurso do Ministério Público Decisão que indeferiu representação para busca e apreensão - Pleito de expedição de mandado de busca e apreensão e de quebra de sigilo de dados de meios eletrônicos eventualmente apreendidos - Necessidade - Elementos autorizadores ao deferimento, em parte, da representação formulada - Licitude dos meios empregados na investigação - Concedida a autorização para busca e apreensão no local indicado - Negada a autorização de acesso, manuseio, consulta e extração dos dados armazenados nos aparelhos de telefonia celular, nada obstante posterior pedido para tal fim com elementos indicadores de sua necessidade - Recurso parcialmente provido” (TJ-SP: Apelação Criminal 1500101-34.2022.8.26.0505, Rel. Des.ª FÁTIMA VILAS BOAS CRUZ, j. em 29.11.2022).
Demais disso, nos precedentes algures colacionados, foi assentado que as imagens obtidas com o uso de drone, pelas forças policiais, eram muito similares àquelas fornecidas pela plataforma “Google Earth”, cujo acesso é permitido irrestritamente a todos que disponham de acesso à rede mundial de computadores.
CONCLUSÃO
Do exposto acima, foi possível constatar que a ordem constitucional brasileira não consagra direitos e garantias absolutos, mormente com o fim de salvaguardar condutas ilícitas.
A seu turno, o uso de drone como técnica de investigação criminal está inserido na terceira geração de direito probatório. Em virtude de seu largo acesso pela coletividade das pessoas, na esteira do precedente “Kyllo v. United States”, não há necessidade de autorização judicial para a realização de aerofografias por meio da referida aeronave, devendo ser considerados válidos os elementos informativos daí resultantes.
Outrossim, o crime organizado se vale dos benefícios promovidos pelo desenvolvimento tecnológico, apresentando estrutura complexa e retroalimentando-se das falhas do sistema jurídico de controle, por isso, os órgãos de persecução criminal também devem dispor de técnicas especiais de investigação e de equipamentos sofisticados para a sua consecução.
Ademais, inexiste qualquer vedação legal ou normativa à utilização de drone em atividades de investigação criminal, bem como a jurisprudência tem entendido que as imagens capturadas por intermédio do citado equipamento não constituem prova ilícita.
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