PRINCIPAIS ARGUMENTOS QUE LEVAM À MANUTENÇÃO DA SENTENÇA INCONSTITUCIONAL PASSADA EM JULGADO.
A – A prevalência do valor certeza sobre o da justiça.
O segundo argumento apresentado em defesa da flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado é o presente, todavia, apresentado em sentido contrário.
No cotejamento entre o valor certeza ou segurança jurídica e o valor justiça, o legislador constitucional efetuou sua opção pela segurança [46]. Assim, não cabe ao intérprete uma escolha entre qual valor deva prevalecer. A Constituição aponta a opção a ser tomada: a certeza, a segurança das relações jurídicas é o valor maior a ser preservado. E se houver um conflito entre este e o valor justiça, a justiça será sacrificada. "Essa é a razão pela qual, por exemplo, não se admite ação rescisória para corrigir injustiça da sentença. A opção é política..." [47]
No mesmo sentido, é o entendimento de Ada Pellegrini Grinover:
Então, eu não posso aceitar posições que ponham em conflito coisa julgada e justiça, dando prevalência ao valor justiça, porque a escolha não é do intérprete, mas essa escolha já foi feita pelo legislador constituinte (...) Diante disso, também não posso aceitar a posição de Humberto Theodoro Júnior, que na verdade, foi autor de um parecer, nesse mesmo sentido a que me referi, coisa julgada "versus" justiça, e que foi depois acolhido no voto, que iniciou [48], praticamente, essa doutrina, do Ministro José Augusto Delgado [49]
Dentro dessa ótica, a interpretação restritiva [50] da disposição Constitucional, segundo a qual o inciso XXXVI do art. 5º da CF é dirigido somente ao legislador não pode ser aceita, pois só serve para a tese de que a "inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode ser alegada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, independentemente da propositura de ação rescisória" [51]. Botelho de Mesquita esclarece que "em direito constitucional, deve prevalecer sempre o chamado princípio da máxima efetividade". E apresenta-o, enunciado por J. J. Gomes Canotilho:
"A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e, embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas, deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)" [52]
No processo civil, pelo princípio do contraditório e da ampla defesa, as partes podem influir no convencimento do juiz. Assim, espera-se que, ao ter a decisão proferida, o processo tenha permitido que aquela decisão seja justa. Então, é de se supor, que a sentença ou o acórdão que possuam o trânsito em julgado sejam justos, pelo menos, em princípio. Assim, à coisa julgada deve ser atribuída a marca da justeza.
É claro que a parte sucumbente terá dificuldade em enxergar como justa a decisão que contrarie o seu pedido. Isso, aliado à enorme possibilidade de encontrar inconstitucionalidade na decisão, face à característica formal [53] de nossa Carta Magna, pode suscitar, com relativa freqüência, o questionamento da constitucionalidade, ou mesmo do valor justiça da decisão. Se a coisa julgada fosse atacada com estes fundamentos, eles poderiam servir para novo ataque à parte vencedora do primeiro julgamento, agora sucumbente. Isso seria perpetuar o conflito, levá-lo à eternidade. Seria sobrecarregar ao infinito o Judiciário já sobrecarregado, seria caminhar no sentido contrário da paz social, seria estabelecer um processo que não teria fim. E o processo, conceitualmente, busca um fim para o litígio. Nesta direção é o ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira:
(...) Mesmo a doutrina favorável, em maior ou menor medida, à proposta "relativizadora" não pode deixar de advertir-se da insuficiência, para justificá-la, da mera invocação de eventual "injustiça" contida na sentença passada em julgado. Condicionar a prevalência da coisa julgada, pura e simplesmente, à verificação da justiça da sentença redunda em golpear de morte o próprio instituto. Poucas vezes a parte vencida se convence de que sua derrota foi justa. Se quisermos abrir-lhe sempre a possibilidade de obter novo julgamento da causa, com o exclusivo fundamento de que o anterior foi injusto, teremos de suportar uma série indefinida de processos com idêntico objeto: mal comparando, algo como uma sinfonia não apenas inacabada, como a de Schubert, mas inacabável – e bem menos bela. [54]
José Ignácio Botelho de Mesquita escreveu sobre o tema, com o mesmo entendimento:
De resto, a coisa julgada não visa apenas garantir a certeza, a segurança e a estabilidade das relações jurídicas protegidas por sentenças transitadas em julgado.
A coisa julgada é uma exigência lógica e ontológica do conceito de Processo. Processo é caminho em direção a algo. Supõe que um dia termine.
Razões de natureza cultural, sociológica ou política, ou até mesmo religiosa, podem influir poderosamente na opção de incluir ou não incluir a coisa julgada entre as garantias constitucionais ou infraconstitucionais do processo, conforme agora se está pretendendo. Daí não se extrai, contudo, que aquelas razões constituam o fundamento jurídico da coisa julgada. Processo sem coisa julgada é mero procedimento ou processo de jurisdição voluntária, administrativa ou graciosa. De jurisdição contenciosa nunca será. [55]
A corrente "desconsideracionista" vale-se do argumento de que a coisa julgada tem o condão de transformar o preto em branco, falso em verdadeiro e o quadrado em redondo. Barbosa Moreira responde que:
Desde que ela [a coisa julgada material] se configure, já não há lugar – salvo expressa exceção legal – para indagação alguma acerca da situação anterior. Não porque a res iudicata tenha a virtude mágica de transformar o falso em verdadeiro (ou, conforme diziam textos antigos em termos pitorescos, de fazer do quadrado redondo, ou do branco preto), mas simplesmente porque ela torna juridicamente irrelevante – sempre com a ressalva acima – a indagação sobre falso e verdadeiro, quadrado redondo, branco e preto. [56]
Luiz Guilherme Marinoni apresenta o seguinte ensinamento:
Mesmo sem adentrar em complexos temas da filosofia do direito, pode-se logicamente argumentar que as teses da "relativização" não fornecem qualquer resposta para o problema da correção da decisão que substituiria a decisão qualificada pela coisa julgada. Ora, admitir que o Estado-Juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado-Juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de "relativizar" a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça. [57]
Um exemplo hipotético pode bem ajudar na compreensão da questão: Imaginemos a aquisição de imóvel residencial em praça pública. O adquirente, depois de morar vários anos, com sua família, é notificado de que, por força de inconstitucionalidade ou de injustiça da decisão, ela foi "flexibilizada". A conseqüência seria a anulação daquela praça, na qual houve a aquisição da casa. Diante de casos como este, teríamos o fim da segurança jurídica. Não cabe o argumento de que a flexibilização só seria aplicável em casos bem limitados, com enumeração taxativa. A criatividade dos operadores do direito beira ao infinito para romper limites.
Em sentido contrário ao entendimento de que a segurança jurídica decorre da coisa julgada é a lição de Rosemiro Pereira Leal:
A garantia da coisa julgada (...) não tem escopo de gerar segurança, porque, no Estado Democrático, não é da segurança em si que se cogita como fundamento dos atos jurídicos, mas da legitimidade obtida pelo processo jurídico que venha a estabelecer a segurança almejada, mesmo que seja esta ainda concebível em escopos meta-jurídicos do obsoleto e paternal Estado Social de direito como está em Dinamarco [58].
Face ao acima exposto, para nós, a eventual injustiça (e cremos poder considerar a inconstitucionalidade, como espécie do gênero injustiça), não é argumento suficiente para atacar a coisa julgada.
B – A coisa julgada como fundamento do Estado democrático de direito.
Da Teoria Geral do Estado, segundo a lição de Dalmo de Abreu Dallari [59], concluímos que, o Estado Moderno possui como notas características o povo, o território, a soberania e a finalidade. Sem desconsiderar as demais características do Estado, trataremos, ainda que brevemente, por haver maior liame com o objeto do presente artigo, apenas da finalidade. Em síntese, Dallari diz que a finalidade do Estado é o bem comum. E cita o conceito formulado pelo Papa João XXIII: O bem comum é "o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana" [60]. A finalidade da República Federativa do Brasil está estampada nos primeiros artigos de nossa Constituição Federal. Dentre outros, temos como objetivos fundamentais, construir uma sociedade livre justa e solidária (art. 3º, I), promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III).
Para bem atingir sua finalidade, a República Federativa do Brasil possui como fundamento o Estado Democrático de Direito. Democrático, pois o parágrafo único do art. 1º estabelece que "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição." Nessa linha de raciocínio, Nelson Nery Junior ensina:
Não é apenas de Estado de Direito que se cogita, mas de Estado Democrático de Direito. Isto porque o Estado nazista, bem como o de reconhecidas ditaduras como o de Cuba, são "de direito", porque tinham e têm normas legais regulando as atividades do Estado e dos particulares. Não basta. É necessário que esse Estado de Direito, legal, seja democrático, instituído e regulado por princípios que se traduzem no bem-estar de todos, na igualdade, na solidariedade. É por isso que, no Brasil, se pode discutir a constitucionalidade de determinada lei sob fundamento de que não atende à letra ou ao espírito da Constituição.
Para as atividades do poder Judiciário, a manifestação do princípio do Estado Democrático de Direito ocorre por intermédio do instituto da coisa julgada. Em outras palavras, a coisa julgada é elemento de existência do Estado Democrático de Direito. [61]
Na mesma obra, Nery Junior leciona que, em 1941, Hitler assinou Lei que conferia poderes ao Ministério Público para intervir no processo civil e dizer se a sentença era justa, conforme os fundamentos do Reich alemão e os anseios do povo. Se o entendimento fosse no sentido de que a sentença era injusta, o Ministério Público alemão poderia propor ação rescisória. A injustiça da sentença era causa de rescindibilidade da sentença, na Alemanha nazista. Vale notar que nem a ditadura nazista ousou desrespeitar a coisa julgada. Foi criada nova causa para a ação rescisória, mas a coisa julgada não foi flexibilizada.
Mais uma vez, valendo-nos da lição de Nery Junior, temos:
O processo civil é instrumento de realização do regime democrático e dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual reclama o comprometimento do processualista com esses preceitos fundamentais. Sem democracia e sem Estado Democrático de Direito o processo não pode garantir a proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo processo. [62]
Luiz Guilherme Marinoni observa que:
Entretanto, apesar de se reconhecer o primado do princípio da dignidade da pessoa humana como vetor do sistema do direito, é certo que o atual desenvolvimento das teorias pelas quais sempre seria obtenível uma decisão justa ainda não possibilitam sua execução fática. Em outras palavras, ainda não existem condições de disciplinar um processo que sempre conduza a um resultado justo. Diante disso, a falta de critérios seguros e racionais para a "relativização" da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua "desconsideração", estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça. Essa "desconsideração" geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbruch citando a seguinte passagem de Sócrates: "crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?" [63]
A coisa julgada material é quem dá a rigidez necessária ao pilar da segurança jurídica, sobre o qual se apóia o Estado Democrático de Direito. Com a flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado, o Estado Democrático de Direito estará comprometido.
C – Crítica aos argumentos que de apoio à flexibilização da sentença inconstitucional passada em julgado.
O primeiro argumento apresentado que visa dar suporte à corrente "desconsideracionista" é o de que o Judiciário não detém a soberania e não pode ficar intangível. De maneira alguma defendemos a intangibilidade do Poder Judiciário. Assim como os atos administrativos e as leis podem sofrer o controle da constitucionalidade, as decisões do judiciário, por meio dos recursos, também estão sujeitas a passar pelo crivo da constitucionalidade, caso em que, eventualmente, pode até haver o recurso extraordinário, a ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal.
A intangibilidade seria característica não do Judiciário, mas sim da sentença inconstitucional passada em julgado.
Cabe lembrar que a parte desfavorecida pela eventual inconstitucionalidade teve a seu dispor meios para influir no convencimento do juiz, produzir provas, enfim, valer-se de todas as garantias que o processo e a Constituição oferecem, para que a decisão final seja justa. Contou ainda, com o prazo para a propositura da ação rescisória. Não seria razoável, ao final de todos os recursos esgotados, alegar a inconstitucionalidade, pois além de levar o processo a não ter fim, a paz social, a segurança jurídica e o Estado democrático de direito estariam seriamente comprometidos. O Direito não pode socorrer os que dormem.
O segundo argumento apresentado para dar consistência à flexibilização trata da prevalência do princípio da justiça frente ao da segurança jurídica. Desnecessário efetuar o cotejamento dos dois princípios, pois, no item anterior, já o efetuamos, com a defesa da prevalência da segurança jurídica, pois, em suma, toda decisão judicial, pelo menos, em princípio, possui intrinsecamente o valor justiça.
A aplicação da querela nullitatis insanabilis foi o terceiro item, por nós apresentado, com o fito de atacar a sentença inconstitucional passada em julgado. Mas, como ensina Sérgio Bermudes, para os que defendem que a sentença inconstitucional passada em julgado pode ser atacada pela ação de nulidade, essa ação
outra não é senão a querela nullitatis insanabilis, que subsiste no sistema do direito positivo brasileiro e "é o remédio voltado para a impugnação de erros graves cometidos no âmbito da jurisdição". Sem dúvida, a ação de nulidade, declaratória ou constitutiva, tem a querela nullitatis por uma das suas fontes, mas não é a própria querela, simplesmente porque o direito brasileiro não contempla esse instituto. Não existe um procedimento especial com essa denominação, nem normas que consagrem a querela, tal como existente e aplicada nas origens. Dizer-se que a ação para a declaração de nulidade da sentença (abrangido nesse vocábulo o acórdão, tal como acontece, v.g., no caput do art. 485 do CPC) é a querela nullitatis seria o mesmo que entender, por exemplo, que o agravo de instrumento é o agravo ordinário português, ou quiçá a supplicatio romana, sobrevivente no direito pátrio. Se existe a nulidade da coisa julgada por contrária à Constituição (...) tem de existir ação de declaração dessa nulidade, sem que, só por isso, haja sobrevivido o instituto. Há exagero na construção, respeitáveis embora opiniões que a amparam. [64]
É importante também, observar que a querela nullitatis não se relaciona com a injustiça, senão com a validade da sentença como ato processual. [65] Logo, como a justificativa para atacar a sentença inconstitucional passada em julgado está centrada em aspectos referentes à injustiça e não à validade da decisão, temos que é inaplicável a querela nullitatis.
A supremacia do princípio da constitucionalidade foi o quarto e último argumento apresentado a fim de apoiar a corrente desconsideracionista. Defendemos a premissa de que toda decisão judicial, pelo menos em princípio, deve estar em conformidade com as disposições constitucionais. Todavia é a própria Constituição que dá à coisa julgada o status de garantia, de imutabilidade. Assim, embora a sentença possa conter alguma inconstitucionalidade, uma vez adquirida a qualidade de coisa julgada, parece-nos que o ataque a essa decisão também estaria viciado de inconstitucionalidade, por ofender à previsão textual da Carta Magna.