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Análise da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação de prisão preventiva

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Agenda 27/03/2023 às 18:01

RESUMO

O presente estudo traz a análise do fundamento da garantia da ordem pública para a decretação da prisão preventiva no ordenamento jurídico brasileiro. Primeiramente, analisam-se as medidas cautelares em geral e os princípios constitucionais atinentes a elas. Em seguida, faz-se uma análise pormenorizada do instituto da prisão preventiva no Brasil, com um breve histórico e as hipóteses de cabimento. Posteriormente, é analisado especificamente o argumento da garantia da ordem pública, sob o prisma doutrinário e a partir da jurisprudência dos tribunais superiores. A partir deste panorama, será demonstrada a inconstitucionalidade do referido fundamento da prisão preventiva, ante a ausência de caráter cautelar.

Palavras-chave: Garantia da ordem pública. Prisão preventiva. Medidas Cautelares. Processo Penal. Prisão Cautelar.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeras mudanças significativas, sobretudo no campo dos direitos e das garantias fundamentais, que foram profundamente ampliados com a promulgação da Carta Magna, estabelecendo um Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, torna-se necessário avaliar as leis até então vigentes, adequando suas interpretações conforme a nova ordem constitucional. No âmbito do processo penal, esse fenômeno torna-se especialmente relevante, dado o seu papel de garantidor da efetivação dos direitos fundamentais do réu, limitando a atuação estatal de forma a evitar excessos punitivos.

A existência do instituto das prisões cautelares remonta ao Código de Processo Penal da década de 40 e, diante das inúmeras modificações constitucionais e legislativas, torna-se imperioso reavaliar a viabilidade da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva e, sobretudo, analisar como discipliná-la à luz dos direitos e garantias fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988.

As prisões cautelares têm por objetivo garantir o andamento do processo penal em situações excepcionais onde a liberdade do réu possa comprometer o regular prosseguimento da ação. No Brasil, a prisão preventiva é a medida cautelar mais comumente aplicada pelo judiciário. Tal medida só pode ser aplicada, em tese, se verificados indícios de materialidade e autoria do réu, além de um fundamento que pode ser a garantia da ordem pública ou econômica, a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

No entanto, na prática, a prisão preventiva, sobretudo sob o fundamento de garantia da ordem pública, é comumente decretada sob argumentos genéricos e baseados em concepções como o interesse público e a periculosidade do agente. Por ser um fundamento muito amplo, a garantia da ordem pública acaba dando ensejo a um grande número de prisões preventivas, contrariando princípios constitucionais basilares como a presunção de inocência.

O presente trabalho visa analisar a viabilidade da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva sob a ordem constitucional vigente. Para tanto, foram utilizadas diversas obras doutrinárias consagradas de processualistas penais clássicos e modernos, artigos e teses sobre o assunto, além de uma extensa pesquisa jurisprudencial.

No primeiro capítulo, serão abordadas as medidas cautelares sob o prisma da lei 12.403/11. Além disso, será feita uma análise dos princípios constitucionais que norteiam as medidas cautelares.

O segundo capítulo trata especificamente das prisões preventivas. Serão abordados os conceitos de fumus comissi delicti e periculum libertatis, justificando seu uso no processo penal em detrimento dos fundamentos clássicos do processo civil para as cautelares. A seguir, serão analisadas as hipóteses legais de decretação de prisão preventiva.

Posteriormente, no terceiro capítulo, analisaremos especificamente a hipótese da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva. Serão abordadas suas motivações, impactos e sua (in)constitucionalidade

Por fim, serão reunidas diversas decisões dos tribunais superiores sobre o assunto, analisando como o STF e o STJ vem decidindo no que tange ao argumento da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva.

MEDIDAS CAUTELARES

Inicialmente, para entender as prisões cautelares, faremos uma breve análise das medidas cautelares no processo penal brasileiro. As restrições à liberdade e a direitos pessoais realizadas antes do trânsito em julgado da ação penal estão previstas no Código de Processo Penal e representam as chamadas medidas cautelares.

Insta salientar que, no processo penal inexiste processo cautelar, apenas processos de conhecimento e de execução. O que existem são medidas cautelares1, que podem ser aplicadas a qualquer momento durante o processo, seja ele de conhecimento ou de execução. Não há, portanto, uma ação penal autônoma, um processo separado, apenas medidas cautelares, como as prisões, sequestro de bens, que, a rigor, podem ser decretadas no processo de conhecimento, ou mesmo durante o processo de execução.

A denominação de “medidas cautelares” se deu a partir da Lei nº 12.403/11 que trouxe inúmeras medidas alternativas ao cárcere ampliando possibilidades de medidas cautelares diversas da prisão, embora já existissem outras cautelares desde a década de 40, quando o código foi publicado, porém com nomes diversos.

As alternativas trazidas pela Lei n. 12.403/2011

As inovações trazidas pela lei de 2011 foram um grande avanço para o sistema processual penal brasileiro, posto que, em nome de princípios como a proporcionalidade e a presunção de inocência, há muitos casos onde uma prisão, ainda que cautelar e provisória, não é a medida mais necessária ou adequada para lidar com um indivíduo que cometeu um fato delituoso. Nas palavras de Aury Lopes Jr (2014), essas medidas foram implementadas “rompendo com o binômio prisão-liberdade até então vigente”. Ainda nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima2 disserta que:

[...] durante anos e anos, nosso sistema processual penal ofereceu ao magistrado apenas duas opções de medidas cautelares de natureza pessoal: prisão cautelar ou liberdade provisória, lembrando que essa medida de contracautela só pode ser concedida àquele que foi anteriormente preso em flagrante. Tem-se aí o que a doutrina denominava de bipolaridade cautelar do sistema brasileiro. Significa dizer que, no sistema originalmente previsto no CPP, ou o acusado respondia ao processo com total privação de liberdade, permanecendo preso cautelarmente, ou então lhe era deferido o direito à liberdade provisória.

Nucci3 também comentou as mudanças legislativas, apontando para a possibilidade do novo artigo 319 do Código de Processo Penal implicar não só numa mudança na mentalidade dos operadores do direito como também no próprio quadro prisional do país. Ele aponta para o fato de que muitas vezes não é necessário o cárcere fechado para conter acusados da prática de crimes, sendo suficientes outras medidas alternativas.

As modalidades de medidas cautelares diversas da prisão estão previstas no rol taxativo do artigo 319 do Código de Processo Penal:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semiimputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica

Prisão cautelar e os princípios constitucionais

Mesmo com a mudança legislativa que ampliou as possibilidades de medidas cautelares diversas do cárcere no sistema penal brasileiro, as prisões cautelares, ainda hoje, são largamente aplicadas pelos tribunais. Em muitos casos, a prisão cautelar não é a medida necessária nem a mais proporcional, no entanto, é decretada pelos juízes, e quase sempre requisitada pelo Ministério Público, usualmente sob argumentos como a periculosidade do agente e a gravidade do delito. Em muitos casos não há real necessidade de prisão cautelar, que só pode ser decretada sob específicas condições como veremos.

Nesse sentido, CALAMANDREI4, nos ensina que, as medidas cautelares têm uma função imediata, que é assegurar a eficácia do procedimento, o que, por sua vez, vai efetivar o direito material, sendo essa a eficácia mediata das medidas cautelares. O autor fala ainda em uma “instrumentalidade qualificada”, na medida em que a tutela cautelar atua para assegurar um melhor resultado do processo judicial, que é um meio para a efetivação do direito material, ou seja, ela atua como um “instrumento do instrumento”.

Aury Lopes Jr. sublinha em sua obra:

“as medidas cautelares não se destinam a fazer justiça, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado”5.

Dessa maneira, podemos extrair que, só terá natureza verdadeiramente cautelar a medida que servir como instrumento do processo, e, ainda, só será constitucional a medida que for verdadeiramente cautelar. Na mesma linha segue DELMANTO JUNIOR6 que afirma “acreditamos, igualmente, que a característica da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório”.

Temos, portanto, que o objetivo da prisão cautelar é garantir a aplicação da lei penal, sendo cabível apenas em situações excepcionais, em ocasiões nas quais o réu, permanecendo livre, obsta o andamento do processo penal. Por conseguinte, essa modalidade de prisão é puramente uma garantia ao andamento do processo, e não deve ser aplicada sob nenhum outro fundamento, posto que restringe a liberdade do indivíduo antes do término do processo criminal, além de ferir o princípio constitucional da presunção de inocência.

Um estudo dos princípios que orientam as prisões cautelares, é, portanto, fundamental para garantir a harmonia do sistema, conciliando as medidas cautelares com o ordenamento jurídico posterior à promulgação da Constituição de 1988. Nesse sentido, para se construir um sistema jurídico lógico e coerente, todo o direito positivo deve ter seu início e seu fim na Constituição Federal, que é o fundamento de validade da ordem jurídica.

Dessa forma, para uma análise mais eficiente das prisões cautelares se faz necessário uma análise principiológica desse instituto jurídico, sobretudo por conta da necessidade de ajustar a existência de uma prisão antes do trânsito em julgado ao princípio da presunção de inocência.

Presunção de inocência

O princípio da presunção de inocência remonta suas origens no Direito Romano, embora tenha sido deixado de lado durante todo o período da inquisição, onde figurava a presunção da culpa. Com o advento das ideias iluministas à época da revolução francesa, surgiu a preocupação em proteger os direitos do cidadão frente aos arbítrios estatais. Nesse contexto, a presunção de inocência foi prevista expressamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que em seu artigo 9 afirmava: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei. ”7. Posteriormente, foi positivado também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969.

No ordenamento jurídico brasileiro, apenas com a Constituição de 1988 que se teve a premissa da presunção de inocência como um valor fundamental, que em seu artigo 5º, LVII, da Constituição, prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Na verdade, a rigor, a constituição não fala expressamente na presunção de inocência, mas trata da afirmação da inocência como valor normativo a ser considerado ao longo de toda a persecução penal, que deve ser considerada como abrangendo desde a fase investigatória, pré-processual quanto a fase processual propriamente dita.8

Tal princípio configura uma das garantias penais constitucionais mais relevantes, por conta de sua função de limitar o autoritarismo estatal. Nesse sentido, têm se que o Estado além de ser o detentor do direito de instaurar a persecução penal, têm também o ônus de provar a a materialidade e autoria do fato delituoso.

Capez9 posiciona-se sobre o assunto no sentido de que:

O princípio da presunção de inocência desdobra-se em três aspectos: a) no momento da instrução processual, como presunção legal relativa de não culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; b) no momento da avaliação da prova, valorando-a em favor do acusado quando houver dúvida; c) no curso do processo penal, como paradigma de tratamento do imputado, especialmente no que concerne à análise da necessidade da prisão processual.

Aury Lopes Jr.10 disserta sobre a difícil coexistência entre as prisões cautelares e a presunção de inocência prevista no texto constitucional, uma vez que esse princípio enseja um dever de tratamento para com o réu que atua em duas dimensões: interna e externa. Internamente, a presunção de inocência impõe a carga da prova nas mãos do acusador e estabelece que, na dúvida, a sentença seja favorável ao réu, além de restringir o abuso das prisões cautelares. Externamente, estabelece um limite a publicidade do réu e do processo, evitando a exposição midiática, que é uma condenação por si só, antes mesmo do processo ter fim.

Dessa forma, é de suma relevância a observação da necessidade e indispensabilidade da medida cautelar frente a gravidade de uma prisão antes do trânsito em julgado do processo judicial, e a consequência da não observância dos deveres de tratamento da presunção de inocência para o acusado.

Judicialização e Motivação

Originalmente, o Código de Processo Penal brasileiro, datado de 1941, tratou das prisões anteriores ao trânsito em julgado a partir de uma concepção de antecipação da culpabilidade. Isso significa que, na redação original do código, a fundamentação da prisão não se dava por meio de uma razão cautelar específica, e sim, com base na lei.

A partir da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, da Lei nº 11.719, de 2008, que, como já citado aqui, promoveu diversas alterações no âmbito das medidas cautelares, a prisão antes do trânsito em julgado da condenação passou a ter como requisito uma ordem judicial escrita e fundamentada, conforme estabelece o artigo 5 º, LXI da Constituição11, que consagrou o princípio da judicialização.

Os princípios da judicialização e da motivação significam que as medidas cautelares só podem ser aplicadas mediante prévia manifestação judicial, sendo indispensável a fundamentação da decisão do magistrado. A única hipótese de prisão cautelar onde a decisão não é prévia é no caso de prisão em flagrante, hipótese na qual a manifestação do judiciário se dará em momento imediatamente posterior a decretação da prisão pela autoridade policial ou outra pessoa. Nesse caso, o juiz irá decidir se homologa ou relaxa a prisão, sempre de maneira fundamentada como dispõe o artigo 93, IX, da Constituição12.

O artigo 5º, LIV também está diretamente ligado ao princípio da judicialização, uma vez que estabelece que não poderá haver privação de liberdade sem o devido processo legal. Portanto, qualquer hipótese de prisão cautelar demanda um processo judicial, que é um direito fundamental do réu.

Importante destacar que, a prisão cautelar só deve ser aplicada se for necessária e proporcional, cumprindo sua função instrumental, pois, de outra maneira não há como defender o cárcere antes do término do processo justamente por conta da presunção de inocência e da jurisdicionalidade. No entanto, como veremos, na prática a prisão cautelar está sendo degenerada e aplicada de forma equivocada pelos mais diversos tribunais brasileiros em situações onde ela está servindo como uma espécie de mecanismo para conter a violência do país, e não como um instrumento para garantia do processo penal, que é sua justificativa legal.

Proporcionalidade

Embora não previsto expressamente na Constituição, o princípio da proporcionalidade é amplamente tratado pela doutrina e tem como objetivo proteger as liberdades fundamentais dos indivíduos de eventuais arbítrios estatais.

Tal princípio estipula uma série de parâmetros que devem ser observados na hora de escolher a medida cautelar mais adequada para determinado caso. A medida deve ser a mais eficaz para alcançar o objetivo planejado, além de causar o menor prejuízo possível e trazer mais vantagens do que prejuízos. Portanto, a medida adequada e necessária para determinado fim, é justificável se o valor por ela resguardada vai preponderar sobre o valor protegido pelo direito a ser restringido. Nas palavras de Alexy, “quanto mais intensa se relevar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se relevar os fundamentos justificadores dessa intervenção”13.

Aury Lopes Jr. (2013, p. 45) considera este como o princípio dos princípios, uma vez que este perpassa todos os aspectos do instituto das prisões cautelares. A proporcionalidade traz a exigência de que as medidas cautelares somente sejam aplicadas em casos estritamente necessários, observando-se os fins almejados, além da duração e da intensidade da medida.

É de suma importância que a medida cautelar seja destinada a atender sua finalidade proporcionalmente à gravidade do delito, observados pelo juiz a presença do fumus comissi delicti e o periculum libertatis.14

Dessa forma, conclui o autor que: “diante da polimorfologia do sistema cautelar e das diversas medidas alternativas previstas no art. 319, deverá o juiz agir com muita ponderação, lançando mão de medidas cautelares isoladas ou cumulativas e reservando a prisão preventiva como (verdadeira) última ferramenta do sistema” (LOPES JR., 2013, p. 48).

Badaró15, por sua vez, fala da banalização do princípio da proporcionalidade e critica a forma como está sendo aplicado no processo penal brasileiro, transcrevendo um voto do Ministro Eros Grau no STF, in verbis:

    
    “No caso em que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido em máxima segundo a qual ‘não há direitos absolutos’. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo de séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor, não temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas com nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que devia acurdir-nos. Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da ‘necessária atividade persecutória do Estado’, a ‘supremacia do interesse público sobre o individual’. Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo – não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente – não tem lugar em matéria penal e processual penal. Essa Corte ensina (HC 80.23, relator Ministro Ilmar Galvão) que a interpretação sistemática da Constituição ‘leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar’. Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta a supressão. A nos afastarmos disso, retornaremos à barbárie”.

STF, HC n.o 95.009-4/SP, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 06.11.2008, m.v., itens 34 e 35 do voto.

Badaró sublinha ainda que a proporcionalidade não pode ser usada para suprimir garantias individuais em nome do interesse público em nenhuma hipótese. Além disso, deve ser sempre usada em conformidade com a legalidade, exigindo que qualquer restrição a direitos fundamentais venha precedida de lei prévia e escrita.

Provisionalidade

A provisionalidade é um princípio básico das prisões cautelares por conta de sua característica situacional. As prisões cautelares só podem subsistir enquanto determinada situação fática que abarque os requisitos necessários estiver ocorrendo. Assim que a situação fática se transforma, não deve mais subsistir a prisão cautelar se não mais estiverem presentes o fumus comissi delicti e/ou o periculum libertatis. Se algum desses elementos faltar em algum momento, deve o acusado ser imediatamente solto, posto que a presença de ambos é exigida para a manutenção da prisão cautelar.

Nesse sentido se posiciona Pacelli16 acerca da imprevisão e revogabilidade da prisão preventiva, características decorrentes da provisionalidade:

(...) a prisão preventiva submete-se à cláusula da imprevisão, podendo ser revogada (característica da revogabilidade das cautelares) quando não mais presentes os motivos que a ensejaram, bem como renovada quando sobrevierem razões que a justifiquem (art. 316, CPP). Que não fique dúvida: a prisão preventiva pode ser revogada quando não mais estejam presentes as razões que determinaram a sua decretação; no entanto, quando ainda for necessário manter-se um grau menos gravoso de proteção ao processo, nada impede que ela, a preventiva, seja substituída por outra cautelar (característica da modificabilidade das cautelares), desde que e somente se ainda estiverem presentes as hipóteses do art. 282, I, CPP.

Aury Lopes Jr.17 também chama atenção para os novos contornos que a provisionalidade adquire no contexto pós lei nº 12.403/11, com a variedade de medidas cautelares existentes, de forma que os juízes possam aplicar as medidas de formas mais fluidas, substituindo medidas graves por brandas ou vice-versa conforme o caso, assim como acumular medidas ou mesmo revoga-las em sua totalidade.

A provisionalidade está prevista no artigo 282, § 5º, do CPP, com a redação incluída pela lei nº 12.403/11:

Art. 282: [...] § 5o O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Sobre esse artigo, cabe comentar que a expressão “poderá revogar” não deve ser encarada como uma faculdade, mas sim um dever do magistrado de revogar a prisão preventiva na hipótese de não subsistirem algum dos fundamentos que a legitimam, caso contrário se configura verdadeira prisão ilegal, cabendo Habeas Corpus. Da mesma forma, se os motivos voltarem a estar presentes, pode o juiz voltar a decretar a preventiva.

No entanto, Lopes Jr. faz uma crítica importante, chamando atenção ao ativismo judicial a partir da interpretação do § 4º do art. 282:

A crítica fica por conta do equívoco de pensar estar legitimado o ativismo do juiz no curso do processo e na fase de investigação. O atuar de ofício por parte do juiz deve estar vedado em qualquer fase da persecução criminal. O problema está no ativismo e não na fase em que ele é adotado. Como já explicamos à exaustão, não é papel do juiz, à luz do sistema acusatório constitucional, do princípio da inércia da jurisdição e dos postulados de imparcialidade, sair decretando prisões ou medidas cautelares de ofício. Sim, porque o que o dispositivo em tela permite é, inclusive, que o juiz decrete uma prisão preventiva de ofício (seja pela conversão do flagrante em preventiva (art. 310), ou pela possibilidade de decretação de ofício no curso do processo (art. 311)), sem prévio pedido, e isso é absolutamente incompatível com os princípios anteriormente referidos.

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Portanto, como apontado por Lopes Jr., apesar do artigo se dirigir às ações que o juiz deve tomar, é preciso muito cuidado em relação a possibilidade de o juiz agir de ofício, posto que o ativismo judicial, sobretudo no processo penal, é extremamente perigoso para a democracia.

Provisoriedade

A provisoriedade, diferentemente da provisionalidade, está ligada ao tempo de duração da prisão cautelar. Esse princípio decorre da própria natureza cautelar da medida, que se presta a tutelar uma situação fática temporária, e não deve de forma alguma servir como uma espécie de antecipação da pena, apenas como instrumento do processo.

Aqui reside um grande problema das prisões cautelares, a indeterminação, como evidenciou Lopes Jr.:

Reina a absoluta indeterminação acerca da duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi disciplinada essa questão. Excetuando-se a prisão temporária, cujo prazo máximo de duração está previsto em lei, a prisão preventiva segue sendo absolutamente indeterminada, podendo durar enquanto o juiz ou tribunal entender existir o periculum libertatis.

Não existe, portanto, um parâmetro temporal legalmente definido para a duração das prisões preventivas. Ainda que os tribunais e algumas tentativas em termos de legislação tenham tentado estabelecer critérios para definir uma duração razoável das prisões cautelares, ainda não se chegou a um consenso. Nesse contexto, enquanto não houver uma norma legal expressa nesse sentido, continuarão a ocorrer abusos judiciários, e casos nos quais o acusado acaba ficando mais tempo na preventiva do que efetivamente seria necessário.

Excepcionalidade

O princípio da excepcionalidade determina que a prisão preventiva só pode ser decretada em última hipótese, por representar óbice à liberdade do indivíduo sem um juízo definitivo de culpabilidade. Os artigos 282, §6º, e 310, II, ambos do Código de Processo Penal, dispõe nesse sentido:

Art. 282: [...] § 6º A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão;

Como vimos, a Lei nº 12.403/2011 trouxe diversas mudanças importantes no campo das medidas cautelares. Ao ampliar o rol de medidas cautelares diversas da prisão e dispor que a prisão preventiva é a ultima ratio do sistema, essa lei concretizou a excepcionalidade no âmbito das cautelares. À luz da nova legislação, o juiz deve decretar prisão preventiva apenas quando não couber aplicação de quaisquer outras das medidas previstas no artigo 319, do CPP, que podem ser aplicadas de forma isolada ou cumulativamente.

Aury Lopes Jr. chama atenção para a terminologia usada no artigo 282, I, que remete ao princípio da proporcionalidade, e atenta para a utilização de um termo que não está presente no rol do artigo 312, o risco de reiteração:

O art. 282 menciona os princípios da “Necessidade” e da “Adequação” (no fundo, trata-se do Princípio da Proporcionalidade) das medidas cautelares (e não apenas da prisão cautelar), mas comete o primeiro tropeço ao remeter a um fundamento não consagrado na reforma, qual seja, o risco de reiteração (para evitar a prática de infrações penais).

Renato Brasileiro de Lima escreve sobre o assunto que:

[...] no sistema originalmente previsto no CPP, ou o acusado respondia ao processo com total privação de sua liberdade, permanecendo preso cautelarmente, ou então lhe era deferido o direito à liberdade provisória. Seguindo orientação do direito comparado, e com objetivo de pôr fim a essa bipolaridade cautelar do sistema do Código de Processo Penal, a Lei nº 12.403/2011 amplia de maneira significativa o rol de medidas cautelares pessoais diversas da prisão cautelar, proporcionando ao juiz a escolha da providência mais ajustada ao caso concreto, dentro dos critérios de legalidade e de proporcionalidade.18

Em nome da excepcionalidade, deve o magistrado observar o disposto no art. 319 do CPP e, quando observar uma medida cautelar mais ou igualmente eficiente ao objetivo pretendido, deve aplicar essa em substituição à prisão preventiva, dado sua gravidade. Dessa forma, caberá ao magistrado, fundamentadamente, indicar a razão pela qual não seria possível substituir a prisão preventiva por outra medida menos gravosa em cada caso específico.

Além de observada a possível substituição prisão preventiva, o princípio da excepcionalidade impõe que a privação da liberdade só seja determinada se imprescindível ao caso. Sobre a reforma nas medidas cautelares, Aury Lopes Jr. atenta para a possibilidade de que a ampliação da gama de medidas cautelares possa, na verdade ter efeito contrário ao esperado, e, ao invés de reduzir a ingerência do Estado na vida dos particulares, na verdade aumentar o controle estatal. Por essa razão há de se tomar cuidado com a banalização das medidas cautelares.19

Renato Brasileiro de Lima, por sua vez, crê que a simples adição de medidas diversas da prisão no ordenamento jurídico brasileiro, por si só, não terá o condão de alterar o status quo:

[...] de nada adianta a criação de medidas cautelares diversas da prisão se, concomitantemente, não for trabalhada uma estrutura adequada e eficiente para sua operacionalização e fiscalização. Se isso não ocorrer, haverá um certo temor quanto à adoção de tais medidas, com o surgimento de uma natural resistência por parte de juízes e membros do Ministério Público, que irão se voltar novamente à prisão cautelar como instrumento mais eficiente para tutelar a eficácia do processo, a despeito do sacrifício da liberdade de locomoção do agente.

Portanto, primeiramente deve o Estado providenciar meios de efetivação das medidas cautelares, para que, então, elas sejam aptas a substituir a prisão preventiva eficientemente. Ademais, caberá ao juiz ao aplicar as medidas cautelares diversas da prisão, levar em conta a necessidade e adequação da medida, para não promover sobre o indivíduo, uma ingerência ainda maior que o próprio cárcere.

PRISÃO PREVENTIVA

As prisões cautelares são prisões processuais que podem ser decretadas antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Seu objetivo é assegurar o regular processamento da ação penal ou da investigação policial, posto que determinadas atitudes por parte do acusado, podem vir a comprometer provas ou a aplicação da pena ao fim do processo.20

As prisões cautelares, por representarem supressão da liberdade do acusado sem uma sentença em definitivo devem observar estritamente os critérios previstos em lei, bem como serem sempre acompanhadas de fundamentação por parte do magistrado. Nesse contexto, afirma Ferrajoli que na prisão cautelar primeiro se castiga, depois se processa, de forma que a prisão nesse caso atua como mecanismo de prevenção geral e especial e retribuição. Além disso, o autor chama atenção para o fato de que os presos antes do término do processo frequentam as mesmas cadeias que os presos com sentença definitiva. Se, de fato, as prisões cautelares não tivessem natureza punitiva, deveriam então ser cumpridas em instituições reservadas, com acomodações especiais. Na realidade, o que acontece é que hoje, o preso provisório fica em condições ainda piores que os presos definitivos, posto que não possui regime semi aberto nem saídas.

Também Carnelutti comenta sobre essa problemática da situação dos presos antes do trânsito em julgado do processo:

“as exigências do processo penal são de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais

para advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente em moeda justiça, quando o imputado, em lugar de culpado, é inocente, e já sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça de que, se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desonestas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais de uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de buscar e de proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verdade. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também pode ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!”21.

Existem três espécies de prisões cautelares, quais sejam: a prisão temporária, que consta na Lei 7.960/89, a prisão em flagrante prevista no Código de Processo Penal e a prisão preventiva, que será tratada especificamente no presente capítulo.

O Código de Processo Penal em vigor até os dias de hoje data do ano de 1941, um momento político totalmente diverso. Por essa razão, muitas leis desse código ainda estão bastante defasas, apesar de diversas reformas já terem sido feitas. A prisão preventiva, apesar de ter sofrido algumas mudanças ao longo tempo, ainda apresenta diversos problemas incompatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro pós 1988.

Na redação original do CPP, eram previstas duas espécies de prisão preventiva, sendo uma obrigatória sob certas condições e a outra facultativa. O primeiro tipo, previsto no art. 312, previa que, nos crimes que tivessem pena de reclusão máxima cominada por tempo igual ou superior a 10 anos. Isso significava que o juiz não precisaria analisar a necessidade e adequação da prisão. Se estivessem presentes os indícios de autoria e materialidade no caso e o crime tivesse pena máxima cominada igual ou superior a 10 anos.

Já a preventiva facultativa constava no art. 313, in verbis:

“A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal: I – nos crimes inafiançaveis, não compreendidos no artigo anterior; II – nos crimes afiançaveis, quando se apurar no processo que o indiciado é vadio ou quando, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou indicar elementos suficientes para esclarecê-la; III – nos crimes dolosos, embora afiançaveis, quando o réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado”.

Sobre esses artigos escreveu José Frederico Marques22:

O que distingue a prisão preventiva obrigatória da prisão preventiva facultativa é a circunstância de exigir-se nesta a prova do periculum in mora (isto é, dos pressupostos constantes do art. 313), enquanto que naquela não existe tal exigência. Nos casos de que trata o art. 312 do Cód. de Proc. Penal, o periculum in mora se presume, sendo que a presunção é juris et de jure.

A prisão preventiva em sua modalidade obrigatória não tinha qualquer aspecto cautelar, estando vinculada unicamente a gravidade abstrata do crime, dispensando a demonstração do periculum libertatis, de modo que, na realidade, representava uma pena antecipada.

Finalmente, em 1967 a prisão preventiva compulsória foi abolida com o advento da Lei nº 5.349/67. A partir disso, tornou-se necessário a demonstração de que o réu permanecendo em liberdade estaria prejudicando a aplicação da lei penal, ou colocando em risco a instrução criminal ou a ordem pública.

Em 1977, com a Lei nº 6.416, o artigo 313 do CPP sofreu alteração para deixar de adotar por critério a fiançabilidade do crime, passando a usar como parâmetro a pena ser de reclusão ou detenção, além do elemento subjetivo do dolo. A prisão preventiva passou a ser vedada me crimes culposos a partir de então.

Em seguida, a Lei nº 8.884/1994, que tratava de infrações contra a ordem econômica, acrescentou um novo fundamento para a prisão preventiva, a garantia da ordem econômica. Depois disso a única mudança legislativa realizada no âmbito das prisões preventivas foi com a Lei n. 12.403/2011, que, como já abordado aqui, trouxe inúmeras mudanças no campo das medidas cautelares.

Atualmente, a prisão preventiva pode ser imposta em três hipóteses distintas no ordenamento jurídico brasileiro: de modo autônomo, a qualquer momento durante a fase de investigação ou do processo, de acordo com os artigos 311 a 313 do CPP; como conversão da prisão em flagrante, conforme o artigo 310, II, do CPP, quando outras medidas cautelares forem insuficientes ou inadequadas; ou, ainda, em substituição a uma medida cautelar alternativa que venha a ser descumprida, nos termos do artigo 282, § 4º, CPP.

Nos dois primeiros casos, a decretação da preventiva irá depender da presença das circunstâncias listadas nos artigos 312 e 313 do CPP, enquanto no último caso, não há necessidade de observação das situações listadas no art. 313, especialmente em seu inciso I, pois caso contrário não haveria como efetivar as medidas cautelares diversas da prisão. Insta ressaltar, no entanto que, para a decretação da preventiva nessa hipótese há necessidade de que o descumprimento da outra medida cautelar tenha sido injustificado. Caso haja justificativa plausível não há necessidade nem proporcionalidade na prisão.

Em contrapartida, a prisão preventiva não é cabível em crimes culposos (a não ser no caso do descumprimento injustificado de cautelar diversa) e quando o tipo penal não estabelecer uma pena privativa de liberdade para o crime. A justificativa para a ausência de preventiva em crimes culposos é a proporcionalidade, posto que não faria sentido punir o indivíduo antes do término do processo com uma pena mais grave da que ele teria com a sentença transitada em julgado. Já em relação a segunda proibição, de casos onde o delito não prevê pena de liberdade, existe expressa imposição legal nesse sentido no art. 283, § 1º, CPP, que estabelece que as medidas cautelares não serão aplicadas nos tipos penais em que não há previsão de pena privativa de liberdade, e, portanto, se não pode nem mesmo haver medida cautelar alternativa, esta não poderia ser substituída pela prisão preventiva.

A prisão preventiva, diferentemente das outras prisões cautelares, pode ser decretada tanto na fase de investigação preliminar quanto durante o processo, inclusive após a sentença condenatória recorrível. Até mesmo na fase recursal, se de fato houver real necessidade, é possível a decretação da prisão preventiva sob o fundamento da garantia da aplicação da lei penal.23

Nesse contexto, exemplifica Pacelli:

Tomem-se os exemplos das prisões decretadas por ocasião da decisão de pronúncia (art. 413, § 3º, CPP) e da sentença condenatória (art. 387, parágrafo único, e art. 492, I, e, CPP), somente possíveis na exata medida em que, por meio de fundamentação judicial expressa, seja demonstrada a função cautelar de cada uma delas e que não se demonstrem adequadas e suficientes a imposição das medidas cautelares do art. 319, CPP. 24

Quanto às condições para a decretação, verifica-se que só será válida a prisão preventiva decretada por juiz ou tribunal competente, a partir de requerimento expresso do Ministério Público ou representação de autoridade policial. A fundamentação da decisão pelo magistrado é indispensável, e não pode ser genérica, é preciso demonstrar a necessidade de medida cautelar em cada caso especificadamente.

A leitura do artigo 311 pode induzir o leitor a erro pois permite ainda a prisão preventiva a partir de requerimento do querelante. No entanto, é preciso lembrar do disposto no atigo 313, I, que veda a prisão preventiva em delitos com a pena igual ou inferior a 4 anos. Dessa forma, não será possível preventiva em crimes de ação penal privada que possuem penas inferiores ao exigido pelo artigo 313, I.

A prisão preventiva, como toda medida cautelar, se submete ao princípio da provisionalidade, ou seja, só subsiste enquanto determinada situação fática estiver presente, devendo ser revogada caso a situação se altere. Se for o caso de revogação, deve ser imediatamente concedida ao aprisionado sua liberdade em sua integralidade. No entanto, pode acontecer de ser o caso não de revogação por completo, mas apenas de substituição da medida cautelar, e nesse caso, é possível que o aprisionado tenha sua liberdade de volta apenas parcialmente.

Um caso interessante que acontece com alguma frequência é aquele no qual o indivíduo que se encontra preso preventivamente vem a ser condenado, em sentença recorrível, ao regime semiaberto. Nessa hipótese, a manutenção do réu em regime fechado é notavelmente desproporcional, pois este estaria recebendo punição mais gravosa do que a própria condenação, o que contraria o princípio da proporcionalidade.

Entretanto, o STJ não tem posição pacificada nesse sentido, há decisões para os dois lados. O ministro Jorge Mussi, no RHC no 53.828/ES, por exemplo, entendeu que é possível a manutenção da preventiva mesmo após condenação recorrível em regime diverso do fechado, sob a condição de que subsistam os motivos que ensejaram a medida cautelar e que suas características se adequem ao regime semiaberto.

Por outro lado, no RHC no 52.407/RJ25, de relatoria do Ministro Felix Fischer, ficou entendido que a prisão preventiva é medida inadequada se o réu tiver sido condenado a regime diverso do fechado. O ideal nesses casos seria buscar uma substituição da preventiva por medidas mais proporcionais. Se a probabilidade maior é de uma condenação em regime semiaberto, então se apliquem cautelares diversas da preventiva para manter a proporcionalidade no caso.

Fumus Comissi Delicti e Periculum Libertatis

Pelo fato de se tratar de medida decretada previamente ao trânsito em julgado do processo, a prisão preventiva depende de um conjunto de pressupostos e requisitos que precisam estar presentes no caso concreto ao tempo da decretação da medida.

Ao tratarem sobre quais seriam esses pressupostos necessários, alguns autores, como CALAMANDREI26, defendem um paralelismo em relação ao direito processual civil, que traz as figuras do fumus boni iuris e do periculum in mora. No processo civil, para ser decretada uma medida cautelar é necessário provar a “fumaça do bom direito”, ou seja, que a parte demonstre no curso processual ter fortes indícios de possuir o direito alegado. Ademais, é preciso que, concomitantemente, haja riscos para o objeto da ação na demora do processo, de modo que esperar o trânsito em julgado vá causar prejuízos àquele que alega ter o bom direito, o que configura o periculum in mora. No entanto, esses pressupostos não podem ser transportados para o processo penal, pois os fundamentos para a decretação de cautelares são distintos daqueles necessários ao processo civil.

Há uma impropriedade em se falar em fumus boni iuris, no âmbito do processo penal, posto que o cometimento de um delito é exatamente o oposto de um “bom direito”, é sua negação, conforme leciona Aury Lopes Jr27. A medida cautelar não é decretada por conta de um bom direito do réu, mas sim porque este foi justamente contra o direito ao cometer um delito. Dessa forma, o termo mais adequado é o fumus comissi delicti, ou seja, a existência de indícios suficientes do cometimento de um delito e de sua autoria.

O pressuposto do fumus commissi delicti, está consagrado no artigo 312, do Código de Processo Penal, abaixo transcrito:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

A parte do final do artigo consagra o pressuposto do fumus comissi delicti ao exigir prova da materialidade e indícios suficientes de autoria do cometimento do delito para a decretação da prisão preventiva. Nesse sentido, cabe apontar que não é necessário um juízo de certeza quanto a esses elementos, mas sim, uma probabilidade razoável. Nas palavras de Aury Lopes Jr.: “um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e consequências apresentam como responsável um sujeito concreto” 28.

Apesar de não haver ainda certeza do cometimento do crime, é preciso que, no juízo de probabilidade realizado, estejam presentes mais indícios positivos do que negativos. Não basta, para a decretação de uma medida tão gravosa como a prisão preventiva, que haja uma mera possibilidade. Nessa linha leciona Lopes Jr.:

Para a decretação da prisão preventiva (ou qualquer outra prisão cautelar), diante do altíssimo custo que significa, é necessário um juízo de probabilidade, um predomínio das razões positivas. Se a possibilidade basta para a imputação, não pode bastar para a prisão preventiva, pois o peso do processo agrava-se notavelmente sobre as costas do imputado.

Portanto, é imprescindível que haja um robusto conjunto probatório indicando a prática do delito, para que seja aplicada a prisão preventiva, não apenas uma mera suspeita do acusado.

Em relação ao periculum in mora, utilizado no direito civil como requisito para as medidas cautelares em situações onde esperar o término do processo pode comprometer o direito pleiteado, também merece o termo ser reformulado. No âmbito do processo penal, o perigo não reside especificamente no tempo decorrido até o término do processo, mas sim, na conduta do imputado, de modo que sua liberdade representa um perigo para o regular processamento da ação penal. Nesse caso se fala em risco de fuga, acarretando uma frustação da pretensão punitiva, além do risco de prejuízos ao andamento do processo como o comprometimento de alguma prova. Portanto, no processo penal o termo mais adequado é o periculum libertatis, ou seja, o perigo decorrente da liberdade do réu, que pode comprometer o processo.

O periculum libertatis se concretiza através de um dos quatro fundamentos previstos no artigo 312 do CPP. No entanto, ainda que verificada a presença de algum desses fundamentos, a prisão preventiva deve ser decretada apenas se o estado de perigo não puder ser afastado através de alguma outra medida cautelar do rol do artigo 319 do CPP, conforme estabelece o artigo 282, parágrafo 6º, do mesmo diploma.

Hipóteses de cabimento da prisão preventiva

Serão analisados agora um a um os fundamentos presentes no artigo 312 no Código de Processo Penal para a decretação da prisão preventiva, cabendo um capítulo à parte para a garantia da ordem pública, dado sua relevância, que merece uma análise pormenorizada.

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.          (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Garantia da ordem econômica

A garantia da ordem econômica, assim como a garantia da ordem pública, é um fundamento muito vago e de difícil conceituação. Foi uma hipótese incluída no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Lei n. 8.884/94, a lei antitruste

Nas palavras de Aury Lopes Jr.29, a prisão preventiva para a garantia da ordem econômica tem por objetivo:

(...) tutelar o risco decorrente daquelas condutas que, levadas a cabo pelo agente, afetam a tranquilidade e harmonia da ordem econômica, seja pelo risco de reiteração de práticas que gerem perdas financeiras vultosas, seja por colocar em perigo a credibilidade e o funcionamento do sistema financeiro ou mesmo o mercado de ações e valores.

A hipótese da prisão preventiva para garantia da ordem econômica, no entanto, assim como a prisão para garantia da ordem pública, merece críticas, porquanto não ser um fundamento puramente cautelar. A partir do momento que o objetivo da inclusão dessa hipótese era o de combater especulações financeiras e negócios fraudulentos, verifica-se que não há uma natureza cautelar, instrumental.

Em primeiro lugar, o direito penal não deveria nem mesmo ser o meio apto a tutelar fraudes econômicas e análogos, pelo fato de ser a esfera penal a ultima ratio. Desse modo, deveria se buscar antes resolver o problema através do direito administrativos, de sanções à pessoa jurídica e restrições econômicas. Sendo o direito penal legitimado a agir, no entanto, a prisão preventiva decerto não deveria poder ser decretada sob essa hipótese, que, reitera-se não tem natureza cautelar.

Ademais, é desnecessária a inclusão da hipótese da garantia da ordem econômica no artigo 312 do CPP, pois a Lei 7.492 já previa, em seu artigo 30, a possibilidade de prisão preventiva por conta da “magnitude da lesão causada”.

O fato é que a prisão preventiva em nada ajuda a diminuir qualquer lesão econômica causada. Seria muito mais interessante nesses casos aplicar outras medidas cautelares como o sequestro e a indisponibilidade dos bens que poderiam efetivamente ser de alguma utilidade no caso, atenuando as perdas econômicas e evitando a reiteração da conduta com o engessamento patrimonial do acusado. Nessa linha disserta Pacelli30:

Parece-nos, contudo, que a magnitude da lesão não seria amenizada e nem diminuídos os seus efeitos com a simples prisão preventiva de seu suposto autor. Se o risco é contra a ordem econômica, a medida cautelar mais adequada seria o sequestro e a indisponibilidade dos bens dos possíveis responsáveis pela infração. Parece-nos que é dessa maneira que se poderia melhor tutelar a ordem financeira, em que há sempre o risco de perdas econômicas generalizadas. Se, no entanto, o fato de o acusado encontrar-se em liberdade puder significar risco à ordem econômica, pela possibilidade de repetição das condutas e, assim, de ampliação dos danos, a questão poderia facilmente se deslocar para a proteção da ordem pública. Mesmo aqui, o sequestro e a indisponibilidade de bens e valores dos responsáveis ainda nos pareceriam medidas mais eficientes, ao menos sob tal perspectiva (da proteção da ordem econômica).

Dessa forma, conclui-se que tal forma de prisão atua como meio de prevenção, e não como medida cautelar. Isso configura verdadeira modalidade de pena antecipada frente a ausência de caráter cautelar, já que uma medida cautelar nunca poderia ter por objetivo desestimular a prática de determinado ato ou a punição do indivíduo a quem o fato foi imputado.

No mesmo sentido escreve Igor Nery Figueiredo31: “a única finalidade possível para esta medida é a de evitar a prática de novos crimes com repercussão econômica”, de forma que só podemos concluir pela inconstitucionalidade da garantia da ordem econômica como fundamento para a decretação da prisão preventiva, ante a ausência de caráter cautelar nessa hipótese.

Conveniência da instrução criminal

Essa hipótese é utilizada em casos onde a liberdade do indivíduo oferece um risco efetivo para a instrução criminal. A prisão preventiva com esse fundamento, portanto, será decretada quando o acusado, permanecendo em liberdade coloca em risco a coleta da prova ou o normal desenvolvimento do processo, o que pode ocorrer, por exemplo, se ele estiver destruindo documentos, alterando o local do crime, ameaçando, constrangendo ou subornando testemunhas.

Todavia, não se deve interpretar a expressão “conveniência da instrução criminal” de maneira literal, pois, sendo a prisão preventiva medida que restringe a liberdade antes do trânsito em julgado, só pode ser aplicada em situações de extrema necessidade. Nessa linha escreve Renato Brasileiro de Lima32: “A medida cautelar não pode ser decretada com base em mera conveniência. Sua decretação está condicionada, sim, à necessidade ou indispensabilidade da medida a fim de possibilitar o bom andamento da instrução criminal. ”.

Tourinho Filho33, por sua vez, exemplifica “Não pode o Juiz, porque o réu reside um pouco distante, mandar prendê-lo por conveniência da instrução, alegando que, quando dever apresentar-se para uma audiência, por exemplo, não será preciso a expedição de precatória ou quejandos”.

A prisão preventiva quando decretada como mecanismo de tutela da prova, é uma medida tipicamente cautelar, posto que é verdadeiramente um instrumento do processo. Se o acusado está obstando o regular andamento do procedimento, há uma justificativa plausível para uma prisão preventiva, respeitados sempre os princípios constitucionais já estudados.

Guilherme de Souza Nucci34 ensina que:

A conveniência da instrução criminal é restrita. Liga-se, basicamente, à atuação do réu em face da captação das provas. Se a sua atitude for imparcial, inerte e contemplativa, permitindo toda a sorte de acontecimentos, não há inconveniência para que permaneça solto. Todavia, caso resolva agir, impedindo a escorreita atuação estatal na colheita das provas e no regular trâmite do processo, passa a se tornar inconveniente que permaneça solto.

No entanto, apesar de por vezes o judiciário empregar tal medida, não se justifica a prisão preventiva para conveniência da instrução criminal se o objetivo da prisão preventiva é interrogar o acusado. Isso porque o interrogatório é um momento de defesa pessoal, no atual momento do constitucional o acusado não é mais um mero objeto do processo, de modo que é incabível prender alguém para obriga-lo a exercer seu próprio direito de defesa35.

Da mesma forma não se justifica prender o acusado preventivamente para obrigá-lo a participar de algum ato probatório como acareação ou reconhecimento. Isso porque a prisão embasada nessa justificativa estaria violando o direito de silêncio do acusado, além do direito de não produzir provas contra si mesmo.

Portanto, só caberá prisão preventiva para conveniência da instrução criminal se no momento da decretação for provado que o acusado estava agindo para frustrar o regular andamento processual. E, como aponta Martins: “Encerrada a instrução, estando pendente o processo apenas de manifestação das partes e prolação da decisão judicial, não mais há de se cogitar da continuidade da prisão sobre esse fundamento”.36

Assegurar a aplicação da lei penal

A prisão preventiva que tem por escopo garantir a aplicação da lei penal visa evitar que o acusado fuja, frustrando assim o processo penal, e impossibilitando a execução da pena eventualmente imposta. Tal fundamento é tipicamente cautelar, pois é um instrumento para garantir a eficácia da sentença penal e, consequentemente, do processo como um todo.

Assim como nas outras hipóteses de prisão preventiva, é necessário ressaltar a necessidade de a decretação ser muito bem fundamentada e fundada em provas concretas. O risco de fuga não pode ser presumido.

Importante comentar aqui que, ao contrário do que acontece com certa frequência no judiciário, a decretação da prisão preventiva nos casos onde o acusado não comprova endereço fixo não merece prosperar. É um argumento inviável se levarmos em conta o cenário brasileiro, onde um grande número de pessoas vive em comunidades que não tem identificação de ruas, sendo que várias delas nem ao menos um emprego formal, e, portanto, nem endereço de trabalho. Nucci37 defende que para que a preventiva seja decretada é necessária a cominação de um desses argumentos com algum outro fator concreto.

Lopes Jr38. chama a atenção para a necessidade de motivação concreta para decretação da prisão preventiva por esse motivo:

Recordemos que é absolutamente inconcebível qualquer hipótese de presunção de fuga, até porque substancialmente inconstitucional diante da Presunção de Inocência. Toda decisão determinando a prisão do sujeito passivo deve estar calcada em um fundado temor, jamais fruto de ilações. Deve-se apresentar um fato claro, determinado, que justifique o receio de evasão do réu.

Portanto, a presunção de fuga do acusado deve fundar-se em dados concretos para que seja viável uma medida cautelar tão gravosa quanto a prisão preventiva. O juiz não pode valer-se de suposições e especulações ou, ainda, pelo simples fato do réu possuir condições financeiras para se evadir. Em tal situação, de fato pode haver um maior risco de evasão, mas isso ainda não configura fundamento suficiente para a decretação de uma prisão preventiva. Nessa linha, inclusive, já decidiu o STF39.

É indispensável, portanto, que hajam evidências no sentido de que o acusado está, por exemplo, se desfazendo de seus bens, ou é flagrado no aeroporto com passagem comprada para o exterior. Sobre o assunto, Pacelli e Costa40 escrevem:

Se a imposição da cautela pudesse se fundar nessa motivação (possibilidade de fuga), em abstrato, todo investigado ou processado deveria ser considerado como um foragido em potencial, eis que as desumanas condições de encarceramento que envergonham nosso país são incentivos suficientes para a evasão.

Conclui-se então que a possibilidade de fuga, por si só, não é motivo apto a ensejar uma prisão preventiva. Caso assim fosse a prisão preventiva seria a regra no processo penal, e não exceção, posto que abstratamente todo indivíduo pode evadir-se para evitar a aplicação da pena.

Tourinho Filho também chama a atenção para a necessidade de elementos concretos que apontem para uma possível fuga:

Se a Magna Carta presume a inocência daquele ainda não condenado, não pode o Juiz presumir que ele vá perturbar a ordem pública, que vá escapar à ação da Justiça. Nenhuma presunção supera aquela. Nesse caso, impende haja prova mais ou menos sensata no sentido de que o rei está prejudicando a instrução ou querendo, na expectativa de uma condenação, dela safar-se. Mera suspeita, não. Presunção, também não. É preciso de um mínimo de prova sensata no sentido de que ele está se desfazendo de seus bens, de que deu demonstração de que vai mudar-se para lugar ignorado, de que está prejudicando a instrução etc. 41

GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA

Partimos agora para uma análise mais detalhada da garantia da ordem pública como fundamento para a decretação da prisão preventiva, que é o tema central do presente estudo. Mais especificamente, será demonstrado o porquê da discussão acerca da inconstitucionalidade do referido fundamento, que, em sentido contrário as reformas promovidas pela Constituição e pela Lei n. 12.403/2011, foi mantido no ordenamento jurídico brasileiro e é ainda corriqueiramente aplicado nos tribunais pátrios.

Analisando o histórico desse fundamento, percebe-se que o PL 4.208/2001, em sua redação original, havia modificado profundamente o art. 312 do Código de Processo Penal, inclusive no tocante a garantia da ordem pública. No parecer do Relator do Projeto, constava que as hipóteses da garantia da ordem pública e da ordem econômica seriam causas indeterminadas, que deveriam ser substituídas por definições mais específicas de suas circunstâncias42. No entanto, lamentavelmente foi aprovada uma emenda que manteve o texto original do artigo do Código de 1941, que até os dias de hoje vigora no Brasil, ensejando um considerável número de encarceramentos.

Ao contrário das prisões preventivas para conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal, a prisão para garantia de ordem pública não tem por escopo proteger o processo penal, enquanto instrumento de aplicação da lei penal. Pelo contrário, é um argumento destinado à proteção da sociedade na sua coletividade, partindo do pressuposto de que a manutenção da liberdade do réu causaria graves danos a comunidade. Aury Lopes Jr43. seguindo essa linha defende:

Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois se trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.

De fato, a generalidade do termo “garantia da ordem pública” é flagrantemente incompatível com o tema da prisão preventiva que sempre demanda uma fundamentação elaborada para ser decretada.

O princípio da legalidade é contrário à utilização de expressões vagas e indeterminadas nas leis processuais. Tais expressões levam a interpretações discricionárias que podem ensejar atos de autoritarismo, de quem as interpreta. Isso acaba deturpando a essência do processo penal, que é servir de instrumento de proteção e valorização do sujeito passivo da relação processual frente ao ente Estado. A lei, tanto em direito material, como em matéria processual, precisa ser simples, clara e taxativa. Todo cidadão tem o direito de saber o que consta na lei, bem como o que ele pretende acautelar e seu raio de ação.

Nesse sentido, escreve Gomes Filho:

No caso especial da prisão cautelar, o apelo à ‘ordem pública’ representa, em última análise, a superação dos limites impostos pelo princípio da legalidade estrita, que se postula fundamental à matéria, para propiciar a atribuição de um amplo poder discricionário ao juiz, que nesse particular não fica sujeito a limitações senão da própria sensibilidade.44

Dito isso, há uma grande discussão em torno do termo “ordem pública”, que não possui uma definição na legislação brasileira. Além disso, não é um termo utilizado apenas no direito penal. Diversos doutrinadores dos diferentes campos do direito formularam definições para ordem pública, e entender o termo é primordial para estudar essa hipótese de prisão preventiva.

Norberto Bobbio45 define a ordem pública a partir da divisão em dois aspectos: a ordem pública material e a ordem pública constitucional. A ordem pública material é entendida como “sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento”. Nesse contexto, determinado ordenamento jurídico que seja baseado na ordem pública material poderá ser modificado a partir da

(...) variação da inspiração ideológica e dos princípios orientadores (democráticos ou autocráticos, por exemplo), cada ordenamento dará uma disciplina própria (ampla ou restrita) das hipóteses de intervenção normativa e de administração direta tendentes a salvaguardar a Ordem pública. é importante sob o perfil das possíveis repercussões consequentes sobre a esfera jurídica dos vários sujeitos de um ordenamento.

A ordem pública constitucional por sua vez é definida por Bobbio como:

limite ao exercício de direitos e assume particular importância quando referida aos direitos de liberdade assegurados pela constituição: neste caso se indica que não é possível questionar um limite de caráter geral ligado à chamada Ordem pública constitucional − que parece fazerem coincidir com o conjunto dos princípios fundamentais de um ordenamento − porquanto dos princípios gerais não se poderiam originar limites situados além dos já previstos no âmbito da disciplina constitucional de cada um aos direitos.

Assim, esse conceito, tanto no que tange à ordem pública material quanto à constitucional, é um conceito flexível e que pode ser a fundamentação base tanto de um regime autoritário quanto de um regime democrático, ou seja, é um conceito adaptável que, dependendo do interesse dos grupos de poder, pode ser usado com o fim de ampliar ou restringir garantias fundamentais.

Dado a amplitude conceitual do termo “garantia da ordem pública”, os mais diversos argumentos são alegados nos tribunais para justificar uma necessidade de decretação da prisão preventiva. No cotidiano do judiciário vê-se comumente prisões cautelares decretadas por argumentos como o risco de reiteração criminosa, gravidade da infração penal, periculosidade do agente, a necessidade de acautelação social, a credibilidade nas instituições.46

Quanto ao argumento da gravidade da infração, é preciso chamar atenção para o fato de que é um argumento utilizado apenas para determinados tipos de delitos, os que geram comoção social, que são explorados midiaticamente, conforme escreve Nicollit:

A idéia da gravidade abstrata do delito, sempre associada a certos crimes que causam clamor público, é muito bem lembrada nas decisões. Neste particular, o papel da mídia é importantíssimo. Cabe registrar que, recentemente, foram libertados trabalhadores escravos no Brasil, vendo notícias de que milhares ainda são mantidos em tal regime. Não obstante, não há qualquer divulgação ampla nos jornais sobre o tema; o assunto não ganha as capas dos jornais. O clamor público não é grande, pois as vítimas não têm voz, não são das classes média e alta.47

Dessa maneira, há uma clara seletividade no sistema penal uma vez que a prisão preventiva é aplicada de maneira diversa dependendo do tipo penal. As maiores vítimas desse fenômeno são as pessoas de renda mais baixa, que estatisticamente são os que mais sofrem com a prisão preventiva. Isso porque o clamor público pela punição de acusados por crimes patrimoniais e crimes ligados ao tráfico é particularmente grande.

Em relação ao argumento da periculosidade do agente, ele é usualmente decretado quando se verifica anotações de antecedentes na ficha do acusado, bem como quando o crime é especialmente gravoso. O grande problema desse argumento é que os magistrados acabam se valendo de fundamentações voltadas para o futuro, para a possiblidade do acusado voltar a praticar o fato. No entanto, não há como afirmar com uma margem considerável de certeza que determinado indivíduo voltará a praticar um crime.

Nesse contexto, escreve Lopes Jr:

“inadmissível, portanto, a prisão preventiva sob o argumento de perigo de reiteração” de condutas criminosas. Trata-se de (absurdo) exercício de vidência por parte de julgadores, que até onde temos conhecimento ainda não possuem um periculosômetro (diria ZAFFARONI) à disposição”

Ademais, um juiz não tem qualquer expertise para determinada o nível de periculosidade de uma pessoa. Para tal exame seria necessário, no mínimo, ajuda de psicólogos e/ou psiquiatras, e, ainda assim, poderia se dizer que o exame foi inconclusivo.

Conclui-se que os principais argumentos utilizados pelos magistrados como fundamentação para prisões preventivas são incompatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro, que se pretende uma democracia. O mecanismo da prisão cautelar está sendo deturpado pelos juízes e usado em grande número não com caráter cautelar, mais como mecanismo de prevenção social.

O argumento da ordem pública, dessa forma, quando utilizado para fundamentar a decretação da prisão preventiva, atua verdadeiramente como uma espécie de pena antecipada, posto a ausência de caráter cautelar. Nesse contexto, a mídia contribui enormemente para criar um clamor público pela punição de acusados, sobretudo em crimes contra a vida e crimes recorrentes nas grandes cidades como roubo.

O judiciário, por sua vez, que tem o dever de ser imparcial, acaba sendo diretamente influenciado pela mídia e as pautas sociais e atuando além de seus poderes. Cada vez mais vemos o judiciário verdadeiramente legislando por conta própria, com decisões que contrariam, inclusive, a própria Constituição Federal, como no caso em que o STF admitiu execução da pena em 2ª instância.48

A prisão preventiva, é preciso ressaltar, não deve servir como mecanismo de prevenção social, de combate a violência. Se ela não está sendo usada como medida cautelar, é inconstitucional. Sanguiné, seguindo essa linha, leciona:

“quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva político-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza”.49

Quando usada sob o fundamento da garantia da ordem pública, a prisão preventiva viola, portanto, os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Essa modalidade de prisão, ainda segundo Sanguiné, é utilizada como uma forma de “prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe funções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”.

Sobre o assunto, Eugenio Raúl Zaffaroni entende que a ausência de cautelaridade na prisão preventiva configura verdadeiramente uma espécie de pena antecipada:

A prisão preventiva, salvo os poucos casos em que a coerção administrativa direta a legitima, é uma pena antecipada, que às razões que deslegitimam o poder punitivo em geral soma a flagrante e incontestável violação do princípio da presunção de inocência. A posição coerente é a do substantivismo autoritário; para aqueles que não compartilham seus fundamentos, não resta outro caminho senão concluir por sua ilegitimidade.". 50

Também se posiciona sobre o assunto Delmanto Júnior:

É de se esclarecer, porém, ser indisfarçável que, nesses termos, a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental - de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado - ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de inaceitável instrumento de justiça sumária51

Na mesma linha, escreve Pacelli sobre a garantia da ordem pública, defendendo a ausência de caráter cautelar da prisão preventiva nessas hipóteses, que, por outro lado, serve como mecanismo de prevenção social:

Percebe-se, de imediato, que a prisão para garantia de ordem pública não se destina a proteger o processo penal, enquanto instrumento de aplicação da lei penal. Dirige-se, ao contrário, à proteção da própria comunidade, coletivamente considerada, no pressuposto de que ela seria duramente atingida pelo não aprisionamento de autores de crimes que causassem intranquilidade social. 52

Zaffaroni, chama ainda atenção para o fato de que o fenômeno do aprisionamento cautelar implica em que “todos passam a ser tratados como inimigos, através de puros confinamentos de contenção, prolongados ou indefinidos”. Dessa maneira, o processo penal passa a legitimar o exercício do poder punitivo do Estado de forma descontrolada, ao invés de, como era seu objetivo, servir como garantidor dos direitos do acusado e limitando os possíveis arbítrios estatais.

O acusado de um delito, não deve ser tratado como inimigo do Estado, e, sim, como detentor de direitos e garantias. Desse modo, para que ele sofra qualquer restrição legal de sua liberdade é preciso uma decisão condenatória pautada pelo devido processo legal. Casos excepcionais pressupõe uma fundamentação extensa e baseada em dados concretos, nunca em meras suposições.

No entanto, o procedimento hoje tem sido o inverso, com a liberdade restringida antes mesmo do início do processo sob uma fundamentação muito escassa e distante do objetivo do processo penal, que é justamente proteger o acusado. O processo penal acaba tendo por objetivo apenas confirmar uma prisão já decretada.

Ademais, o encarceramento antes da sentença condenatória traz pouca efetividade ao direito à defesa, sobretudo no caso dos acusados de classes mais baixas, já que a defensoria pública não tem estrutura para atender os réus dentro dos presídios, o que prejudica muito a tese defensiva, pois os defensores se encontram pela primeira vez com os réus já em sala de audiência.

Portanto, qualquer que seja o argumento, seja em razão da gravidade do delito, seja pela periculosidade do agente, pelo clamor social ou para assegurar a credibilidade da justiça, a garantia da ordem pública é inconstitucional, ante a ausência de caráter cautelar. Sua função na forma como vem sendo aplicada, é utilitária, de prevenção social e promoção de segurança pública, sendo usada de forma abusiva e discricionária pelo poder judiciário, que busca também manter a credibilidade da justiça através de um número maior de encarceramentos.

ANÁLISE DA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

Conforme demonstrado no capítulo anterior, a generalidade do termo “ordem pública” abre espaço para diversas motivações e apela para a orientação ideológica do julgador. Uma análise das decisões judiciárias nos tribunais brasileiros evidencia uma banalização da prisão preventiva. Usualmente se encontram decisões onde a preventiva é decretada para garantia da ordem pública sob o argumento da periculosidade do agente ou a gravidade do delito.

Muitas decisões judiciais são fundadas basicamente no tipo penal, desconsiderando as peculiaridades de cada caso, sem analisar concretamente a situação. Um grande exemplo é o crime de roubo, que em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, se tornou um problema de segurança pública. Diante disso, os juízes acabam buscando fazer justiça social decretando prisões preventivas para os acusados de tal crime. O papel do judiciário, evidentemente, não é esse, e é muito grave suprimir a liberdade de um indivíduo considerado pela Constituição Federal como inocente, sob a argumentação de proteção da sociedade.

Um amplo estudo realizado em 2013 por Patrick Mariano Gomes53 analisou 460 julgamentos do STF desde a entrada em vigor do CPP até 2012 para verificar como o Supremo se posicionava ao longo dos anos sobre a questão da garantia da ordem pública. Os resultados foram publicados em tabelas descriminando as decisões por motivação:

Verifica-se que a periculosidade do agente é o fundamento mais comum para a decretação da preventiva. Fundamento esse totalmente subjetivo e tendencioso, ficando a critério do julgador o que ele considera como uma conduta perigosa por parte do acusado.

Outro dado importante presente no estudo é o número de ordens de Habeas Corpus concedidas em relação ao número de ordens denegadas, sendo o último flagrantemente maior conforme se observa da tabela organizada por justificativas das decisões:

Pode se depreender da análise dos dados que o STF historicamente se posiciona a favor da utilização do critério da garantia da ordem pública para manter as prisões preventivas que chegam a seu conhecimento. O número de ordens de Habeas Corpus concedidas é muito inferior quando comparado às denegadas. A disparidade é alarmante sobretudo em relação ao argumento da periculosidade do agente e o de evitar a prática de novos crimes, o que demonstra serem esses os critérios mais aceitos pelo Supremo.

Chama atenção ainda a presença de argumentos em nada relacionados a qualquer conceito presente nas medidas cautelares como a “presença de drogas”. Daí, mais uma vez, ressalta-se o problema criado pela generalidade do termo “garantia da ordem pública” que acaba servindo como justificativa para praticamente qualquer prisão que se encaixe nos requisitos necessários, sem qualquer preocupação com a verificação de caráter cautelar em cada caso.

A seguir, apresenta-se um breve compilado comentado de decisões recentes dos tribunais superiores brasileiros sobre o tema.

Garantia da ordem pública no STF

O STF, como a suprema corte brasileira, tem grande relevância no ordenamento jurídico. Não só é a última instância judicial, como também suas decisões servem como jurisprudência nas instâncias inferiores. Além disso, atualmente por conta da grande exposição da mídia, o STF tem também tem tido enorme influência nos debates sobre temas polêmicos, e a sociedade brasileira vem assistindo um verdadeiro espetáculo midiático em torno do tribunal, o que torna suas decisões muito mais visíveis e influenciáveis.

De outro lado, parece que também o STF tem cada vez mais se deixado influenciar pela opinião pública proferindo decisões totalmente contrárias a legislação em vigor, e, inclusive, contra a Constituição Federal. Nessa linha, cabe citar novamente a decisão na qual o STF recentemente admitiu a execução da sentença em 2ª instância54, e chamar atenção para o fato de que hoje ¼ da população carcerária já é formado por presos nessa situação.55

Em relação à prisão preventiva para garantia da ordem pública, o Supremo Tribunal vem negando ordens de Habeas Corpus que argumentam a ausência de caráter cautelar do referido argumento. Os ministros têm se posicionado no sentido de que a garantia da ordem pública seria argumento idôneo para decretação da prisão preventiva, baseados nos argumentos da periculosidade do agente, gravidade do delito e risco de reiteração. Nessa linha, decisão recente de relatoria do Min. Dias Toffoli:

Esta Corte também tem posicionado no sentido de que a periculosidade do agente e o risco de reiteração delitiva demonstram a necessidade de se acautelar o meio social para resguardar a ordem pública e constitui fundamento idôneo para a prisão preventiva (RHC nº 112.703/DF, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 4/9/12). Ademais, é de bom alvitre registrar a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, segundo a qual é inadequado, na via do habeas corpus, reexaminar fatos e provas no tocante à participação do paciente em organização criminosa. (HC nº 133.982/MS, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 13/2/17). Ante o exposto, nos termos do art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento ao presente habeas corpus, ficando, por consequência, prejudicado o pedido de liminar. Publique-se. Brasília, 1º de agosto de 2018. Ministro Dias Toffoli Relator Documento assinado digitalmente

(STF - HC: 159263 DF - DISTRITO FEDERAL 0074157-25.2018.1.00.0000, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 01/08/2018, Data de Publicação: DJe-156 03/08/2018)

Essa outra decisão, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes, compila diversas julgados no sentido da justificação da preventiva sob o argumento da periculosidade do agente:

Conforme já decidiu esta SUPREMA CORTE, a periculosidade do agente, evidenciada pelo modus operandi na prática delito, justifica a prisão preventiva para garantia da ordem pública (HC 95.414, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, DJe de 19/12/2008). Nessa mesma linha de entendimento: HC 154.906-AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 28/6/2018; HC 149.742-AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 19/12/2017; HC 142.435- AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 26/6/2017; HC 141.547-AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 16/6/2017; HC 137.027, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 8/5/2017; HC 133.712, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 13/12/2016; HC 130.458, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 7/12/2015; HC 110.446, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJe de 14/3/2012; HC 104575, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 17/5/2011. (STF - HC: 159638 SP - SÃO PAULO 0074709-87.2018.1.00.0000, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 01/08/2018, Data de Publicação: DJe-156 03/08/2018)

A gravidade do delito também tem sido argumento favorável à manutenção da preventiva nos Habeas Corpus julgados pela Suprema Corte:

Os pronunciamentos das instâncias precedentes estão alinhados com a orientação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a gravidade concreta dos fatos justifica a prisão preventiva para a garantia da ordem pública. (RHC 121.750, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 10.06.2014) Registro que as premissas decisórias, quais sejam, a garantia da ordem pública, a gravidade concreta do delito e o risco de reiteração delitiva, não se submetem a juízo revisório a ser empreendido por esta Corte na estreita via do habeas corpus, que, como sabido, não se compatibiliza com o reexame de fatos e provas. Logo, conforme acima demonstrado, restou devidamente justificada a indispensabilidade da segregação preventiva, e, por consequência, a insuficiência da imposição de medidas cautelares alternativas. 3. Posto isso, com fulcro no art. 21, § 1º, do RISTF, nego seguimento ao habeas corpus. Publique-se. Intime-se. Brasília, 10 de outubro de 2017. Ministro Edson Fachin Relator Documento assinado digitalmente

(STF - HC: 144915 SP - SÃO PAULO 0006126-84.2017.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 10/10/2017, Data de Publicação: DJe-235 16/10/2017)

Verifica-se em todas essas decisões, a flagrante ausência de caráter cautelar das decisões que mantém a prisão antes do trânsito em julgado. A garantia da ordem pública, conforme argumentação supra, é um argumento tão genérico e aberto que dá ensejo às mais diversas interpretações. Os tribunais têm usado esse argumento para manter em cárcere um número expressivo de presos provisórios, sob pretexto de estarem garantindo a ordem pública.

Dados divulgados no dia 6 de agosto de 2018 pelo BNMP (Banco Nacional de Monitoramento de Prisões) mostram que a quantidade de presos provisórios no Brasil é de 40% em relação a população carcerária total56. Sendo uma medida de exceção, por contrariar a presunção de inocência, além de, em tese, ter caráter instrumental, o número é bastante expressivo. Os dados só confirmam que, na realidade, a prisão preventiva não está servindo para tutelar o regular andamento do processo, e sim, como política de segurança pública.

É possível observar das decisões do STF que até mesmo em casos que não envolvem violência, a prisão preventiva é mantida sob o argumento da gravidade em concreto do delito. O caráter de pena antecipada é muito claro, posto que a gravidade do delito deveria ser computada apenas na sentença para fins de cálculo da pena.

Nessa decisão, o Ministro Barroso entende que a prisão preventiva deve ser mantida pelo fato de que o acusado foi flagrado com grande quantidade de droga. Não há nenhuma outra justificativa no caso que aponte para a necessidade de uma medida cautelar.

Decisão: Ementa: Processual Penal. Habeas Corpus. Prisão preventiva. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 1. Trata-se de habeas corpus, com pedido de concessão de liminar, impetrado contra acórdão unânime da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, da Relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, assim ementado: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO. PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA DELITUOSA. NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Havendo prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, a prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, poderá ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. 2. No caso, o Juízo de origem, ao converter a prisão em flagrante em preventiva, fundamentou a medida extrema na gravidade do crime. Assim, verifica-se que as circunstâncias concretas da conduta delituosa realmente denotam periculosidade do recorrente, pois foi preso em flagrante transportando 24,8kg (vinte e quatro quilos e oitocentos gramas) de cocaína, o que justifica seu encarceramento cautelar, para garantia da ordem pública, consoante pacífico entendimento desta Corte. 3. Recurso ordinário em habeas corpus desprovido.2. Extrai-se dos autos que o paciente foi preso em flagrante delito em 01.03.2016, surpreendido com 24,8 kg de cocaína e 50 g de maconha. O Juízo de origem, nos termos do art. 310, II, do Código de Processo Penal, converteu a prisão em flagrante em preventiva. 3. Dessa decisão, foi impetrado habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Denegada a ordem, foi interposto recurso ordinário no Superior Tribunal de Justiça, não provido. 4. Neste habeas corpus, a parte impetrante sustenta a ausência de fundamentação idônea para a manutenção da custódia cautelar e requer a concessão da ordem a fim de revogar a prisão processual do paciente. Subsidiariamente, pleiteia a substituição da custódia por outra medida cautelar. Decido. 5. O habeas corpus não deve ser concedido. 6. Observo que as instâncias de origem fizeram expressa referência a dado objetivo da causa quantidade e variedade da droga apreendida (24,8 kg de cocaína e 50 g de maconha) para justificar a prisão preventiva do paciente para a garantia da ordem pública, não sendo o caso, portanto, de imediata revogação da prisão cautelar. Notadamente se se considerar que o Supremo Tribunal Federal tem precedentes no sentido de que a natureza e a quantidade da droga apreendida evidenciam a gravidade concreta da conduta capaz de justificar a ordem prisional (Cf. HC 115.125, Rel. Min. Gilmar Mendes; HC 113.793, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia; HC 110.900, Rel. Min. Luiz Fux). 7. Diante do exposto, com base no art. 21, § 1º, do RI/STF, nego seguimento ao habeas corpus. Publique-se. Brasília, 6 de fevereiro de 2018. Ministro Luís Roberto Barroso Relator Documento assinado digitalmente

(STF - HC: 152629 SP - SÃO PAULO 0065172-67.2018.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 06/02/2018, Data de Publicação: DJe-025 14/02/2018)

Observa-se na decisão acima que processo não ficaria prejudicado com o acusado em liberdade. Além disso, nem ao menos se cogitou uma cautelar menos gravosa. Disso, se conclui que o objetivo dos tribunais é literalmente prender o quanto antes acusados em crimes considerados graves, sobretudo o roubo, homicídio e tráfico, que são os crimes mais praticados no Brasil conforme o relatório do BNMP.

No trecho da decisão abaixo, o Ministro Gilmar Mendes chancela decisão de instância inferior na qual a preventiva é decretada com base nas anotações da Folha de Antecedentes Criminais do réu, além do argumento de que a concessão da liberdade provisória logo após uma prisão em flagrante traria descrédito a justiça:

Repita-se, não obstante a Lei 12.403/11 trouxessem novas medidas cautelares penais ao ordenamento jurídico, diferentes da prisão, todas elas demandam a soltura do flagrado do cárcere. Porém, no caso em testilha, pelo visto, os investigados não fazem jus às medidas cautelares, que tem como pressuposto lógico necessário, e na hipótese vertente demanda o sumário de culpa, não podendo falar-se em ofensa ao princípio da presunção de inocência, quando a hipótese acena, de forma efetiva, a circunstância concreta ensejadora da custódia cautelar. De outro lado, constato pelas certidões fornecidas pelo Cartório do Distribuidor da Comarca e de folhas de antecedentes acostadas nos autos, que os investigados possuem antecedentes criminais, de modo que a prisão preventiva deve ser decretada como garantia da ordem pública, evitando-se, assim, a reprodução dos fatos criminosos, o que dá suporte para autorizar a prisão preventiva, com base na garantia da ordem pública. Como se não bastasse, a instrução processual, em casos como o presente, reclama a custódia, para fins de reconhecimento pessoal do agente e para evitar que vítima e testemunhas, receosas, deixem de comparecer em juízo. Dentro do conceito de conveniência da instrução criminal está a preocupação de assegurar que as testemunhas se mantenham isentas de qualquer coação ou pressão, preservando-se a prova a ser colhida em âmbito judicial, sob o crivo do contraditório. Além disso, a colocação em liberdade, imediatamente após exitosa ação policial, de agentes apreendidos em flagrante, os quais ostentam antecedentes criminais, acabaria por gerar odiosa sensação de impunidade, em total descrédito da justiça. Nesse sentido, vale destacar, conforme decidido pelo STF, 'no conceito de ordem pública, não se visa apenas prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça, em face da gravidade do crime e sua repercussão' (RT 124/1033). Nesse contexto, em que a gravidade em abstrato do crime alinha-se às circunstâncias concretas da infração que revelam maior grau de periculosidade social, a custódia cautelar dos investigados é medida que se impõe para se manter a ordem na sociedade que se acha abalada pela prática de repetitivos eventos delituosos dessa natureza. Ante o exposto, CONVERTO a prisão em flagrante do (s) investigado (s) RODRIGO DE SOUZA MACEDO, MARCOS SILVA DE OLIVEIRA e DIOGO SOARES SILVA, com fundamento nos arts. 310, II e 312 do CPP, em preventiva. Como se vê, integra a decisão de prisão fundamento idôneo, consistente na reiteração delitiva, tendo sido constatado que os investigados possuem antecedentes criminais. Quanto à alegativa de excesso de prazo para a sentença e falta de entrega de mídia digital com os depoimentos na audiência de instrução, a pretensão do writ é inviável ser concedida, haja vista já ter sido proferida a sentença, o que torna este argumento da defesa prejudicado. Assim, não vejo manifesta ilegalidade apta a autorizar a mitigação da Súmula 691/STF, sendo necessária a análise apurada do caso, o que será melhor realizado pelo Tribunal a quo, quando da análise do mérito do writ originário. (eDOC 2, p. 351-353) Ante o exposto, nego seguimento ao pedido formulado neste recurso ordinário em habeas corpus, por ser manifestamente incabível (art. 21, § 1º, do RI/STF). Publique-se. Brasília, 2 de março de 2018. Ministro Gilmar Mendes Relator Documento assinado digitalmente

(STF - RHC: 149776 SP - SÃO PAULO 9034642-58.2017.1.00.0000, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 02/03/2018, Data de Publicação: DJe-042 06/03/2018) sem grifo no original

Grifa-se aqui o entendimento do STF transcrito nessa decisão de que, “no conceito de ordem pública, não se visa apenas prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça, em face da gravidade do crime e sua repercussão”.57 O entendimento citado, literalmente fala que um fundamento possível para a decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública é a credibilidade da justiça.

Tal entendimento não encontra respaldo em nenhum princípio constitucional, pelo contrário, vai contra vários deles. Entender que é cabível suprimir a liberdade de um indivíduo constitucionalmente considerado inocente em prol da “credibilidade da justiça” só demonstra o quanto o nosso judiciário está se afastando da realidade legislativa e verdadeiramente legislando por conta própria.

Apesar disso, verifica-se que tais pensamentos não são exclusividade do STF, conforme se verifica da análise jurisprudencial do tema da garantia da ordem pública no STJ no item a seguir.

Garantia da ordem pública no STJ

Também o STJ tem se posicionado a favor da manutenção da prisão preventiva decretada para garantia da ordem pública com base nos argumentos da periculosidade do acusado e o risco de reiteração delitiva, conforme decisão abaixo:

PENAL E PROCESSUAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E TENTATIVA DE OCULTAÇÃO DE CADÁVER. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. 1. Exige-se concreta motivação do decreto de prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida. 2. Circunstâncias descritas nos autos que corroboram a necessidade de manutenção da segregação acautelatória do recorrente para garantia da ordem pública, considerando a sua periculosidade e a real possibilidade de reiteração delitiva. 3. Recurso desprovido.

(STJ - RHC: 54356 MG 2014/0326961-3, Relator: Ministro GURGEL DE FARIA, Data de Julgamento: 10/03/2015, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/03/2015)

Ainda, trecho extraído do inteiro teor dessa decisão do Ministro Gurgel de Faria, reconhece a excepcionalidade da prisão provisória e necessidade de observação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e não culpabilidade e, no entanto, fundamenta a prisão cautelar na periculosidade do agente.

Como é cediço, a prisão cautelar é medida excepcional e deve ser decretada apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, sob pena de antecipar a reprimenda a ser cumprida quando da condenação.

Sendo assim, cabe ao julgador interpretar restritivamente os pressupostos do art. 312 da Lei Processual Penal, fazendo-se mister a configuração empírica dos referidos requisitos.

No presente caso, a segregação provisória do recorrente restou fundamentada, entre outros motivos, na sua periculosidade.

A periculosidade do agente, como se pode observar, é amplamente adotada pelos mais diversos motivos. Pode-se dizer que o agente é perigoso para a ordem pública pelas circunstâncias do crime. Outra razão que enseja a argumentação de periculosidade é a reincidência, e, mais amplamente, as anotações na Folha de Antecedentes Criminais, que, muitas vezes, nem ao menos configura reincidência. Na ementa da decisão abaixo, a periculosidade do agente é arguida pelo fato de ser o acusado integrante de organização criminosa, o que por si configuraria o periculum libertatis.

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. 1. A validade da segregação cautelar está condicionada à observância, em decisão devidamente fundamentada, aos requisitos insertos no art. 312 do Código de Processo Penal, revelando-se indispensável a demonstração do que consiste o periculum libertatis. 2. No caso, a prisão preventiva está justificada, haja vista as informações contidas no decreto de que o paciente seria integrante de organização criminosa voltada para a prática do crime de tráfico de drogas em grande escala, o que denota sua periculosidade e a necessidade da segregação como forma de acautelar a ordem pública, evitando-se o cometimento de novos delitos. 3. Ordem denegada.

(STJ - HC: 380769 SP 2016/0316182-2, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 21/02/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2017)

Mais uma vez vislumbramos a discricionariedade do magistrado na argumentação em favor da manutenção da prisão preventiva. Nesse caso, o fato de integrar uma organização criminosa voltada para o tráfico foi argumento o bastante para encerrar a liberdade do acusado antes da condenação. Não há nenhuma fundamentação específica com bases concretas que justifique a privação da liberdade. O objetivo principal da prisão nesse caso não é garantir o andamento do processo, que em nada está sendo obstado pelo acusado e sim funcionar como mecanismo de prevenção social, além de providenciar uma pena antecipada.

CONCLUSÃO

A partir da análise de dados, obras doutrinárias e decisões jurisprudenciais no presente estudo, chegou-se à conclusão da inconstitucionalidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública e total incompatibilidade com o ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito.

Numa democracia, tal qual a brasileira pós-1988, o poder punitivo do Estado deve interferir o mínimo possível nos direitos individuais. A restrição da liberdade, por sua gravidade e as consequências para a vida do preso, sobretudo no cenário carcerário brasileiro, superlotado e com enormes problemas de infraestrutura, só deveria ser decretada em situações absolutamente excepcionais e necessárias. O direito penal, afinal, é a ultima ratio, e dentro dele a prisão cautelar é ainda mais excepcional, pois significa uma verdadeira punição antecipada e supressão de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, como a liberdade, em primeiro lugar, além da presunção de inocência e princípios como a proporcionalidade, que na maioria dos julgados não vem sendo observada.

A liberdade é a regra num Estado Democrático de Direito, bem como a presunção e inocência até o trânsito em julgado do processo. A atuação do judiciário deveria se pautar pela fundamentação das decisões. Apenas apontar que determinado caso vai contra a ordem pública ou que existe chance de reiteração por parte do acusado não é concretizar a fundamentação, que vai muito além, carecendo de comprovação da necessidade da medida.

Infelizmente, em que pese a Constituição Federal em vigor atualmente prever direitos e garantias fundamentais e estabelecer uma democracia, no cotidiano do sistema prisional parte significante da constituição é deixada de lado para atender aos interesses daqueles que estão no poder.

O estudo evidenciou a necessidade de uma reforma no sistema processual penal brasileiro, que foi formulado numa realidade muito distinta da atual, já tendo sobrevivido a três constituições distintas (1946, 1967, 1969) até chegar no texto de 1988. Evidentemente, a ideologia mudou, a situação do país mudou, e os institutos de outrora não mais se justificam na atual ordem do direito.

Hoje, a pluralidade de medidas cautelares possíveis, graças ao advento da Lei 12.403/2011, permite que sejam aplicadas medidas menos gravosas e mais específicas e eficazes. Nada justifica o alarmante número de presos preventivos num país que possui a 3ª maior população carcerária do mundo58.

Importante também chamar a atenção para a seletividade penal, que encontra na prisão preventiva, sobretudo baseada na garantia da ordem pública seu respaldo. Alguns tipos penais específicos já são quase que automaticamente razão para uma prisão cautelar, como é o caso dos crimes de tráfico, crimes contra o patrimônio, e crimes contra a vida. Observa-se que a maioria dos sujeitos que praticam esses crimes tem o mesmo perfil. São em geral, pobres, favelados, e caracterizam o estereótipo do “bandido”. Esses sujeitos são tratados como inimigos do Estado e para parte expressiva do judiciário, sua liberdade pões em risco a paz e ordem da sociedade.

O encarceramento, evidentemente, não é a solução para o problema, vide a quantidade de reincidentes e a alarmante população carcerária, muito maior inclusive do que a capacidade do país. Os juízes tentam trazer credibilidade a justiça convertendo os flagrantes em preventiva e mantendo os réus em cárcere, às vezes por anos antes da sentença condenatória definitiva. Tal medida, não só contraria a democracia, a liberdade, a presunção de inocência, como na prática não resolve nada.

Dessa forma, é imprescindível a reavaliação do fundamento da garantia da ordem pública no ordenamento jurídico brasileiro, dado sua generalidade, que acaba servindo como ferramenta para o exercício arbitrário do direito sob a ideologia do intérprete da norma. O uso de argumentos como a periculosidade do agente afasta a prisão preventiva da sua função original, de medida cautelar, instrumental ao processo, e a aproxima de uma função punitiva.

O uso do conceito da ordem pública como pressuposto do periculum libertatis configura uma forma dissimulada de controle social. A prisão preventiva tem sido usada, erroneamente, como o instituto responsável por conter anseios sociais e manter a paz. Desse modo, a prisão preventiva ao invés de cumprir seu papel cautelar, acaba atuando como política de combate à criminalidade

Em síntese, conclui-se pela necessidade de alteração do Art. 312 do CPP para modificar a hipótese da garantia da ordem pública, bem como a garantia da ordem econômica que segue a mesma lógica. O ideal seria excluir essas hipóteses do ordenamento, se não, ao menos limitar substancialmente seu campo de atuação, pois, da forma como hoje é aplicada pelos tribunais viola o texto da Constituição Federal. Só com uma reforma do sistema processual penal que será possível almejar um modelo verdadeiramente democrático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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