Em que pese a salutar ideia de que o Brasil de fato tivesse Escolas de Governo, a exemplo da École Nationale d’Administration francesa, não se organizou um sistema que dotasse os ministérios e os tribunais, por exemplo, de gestores altamente qualificados para as peculiaridades da gestão pública, reduzindo a demanda burocrática de ministros de Estados e de presidentes de órgãos do Poder Judiciário e de Tribunais de Contas. De um lado vê-se o seguinte: a falta de verbas para investir na qualidade e escolas com aulas basicamente ministradas por quadros internos, sem arejamento de métodos e sem a visão sistêmica do Estado; na outra face está a enraizada visão de que o exercício da autoridade se estabelece pela concentração de poder, o que desprestigiaria mesmo quem fosse formado no mais elevado nível. Essa conjuntura leva ao risco de constrangimento, quando não de severas responsabilidades, àqueles que preferem atrair para si o controle de absolutamente tudo.
Sabe-se que há experiências de Escolas de Governo e similares que se empenham; há a notável Fundação Getúlio Vargas, de grandes méritos; há nichos de excelência aqui e acolá. Entretanto, nem sempre os profissionais oriundos desses estabelecimentos são aproveitados nos postos-chaves; e quando o são, se defrontam com resoluções, instruções normativas, portarias, circulares, ordens de serviço que se misturam como fios que as pessoas guardam em gavetas e, ao retirarem, têm crise de pânico tal o emaranhado.
Os tribunais possuem, é verdade, os diretores-gerais que, em parte absorvem os ofícios de gerência da atividade-meio; mas é de se pressupor que estejam preparados para a análise e encaminhamento dos assuntos abaladiços e que disponham de regulamentação que atenda ao tripé: legalidade (segurança jurídica); proporcionalidade/razoabilidade (agir na medida certa), economicidade (sem desperdício de recursos com providências inócuos) e eficiência (com resultado positivo).
Este texto tem a pretensão de provocar a perplexidade e, por esse recurso, alertar os administradores de tribunais quanto à sensibilidade do encargo.
EXEMPLOS
Um presidente de Tribunal de Justiça, por exemplo, instaurou uma sindicância para que fosse apurada a responsabilidade de empresa que prestava serviço terceirizado, em relação à qual o fiscal do contrato não conseguia solucionar os impasses. Ao fim da apuração, os sindicantes concluíram que o fato era verdadeiro, que a contratada descumpria as obrigações e que o preposto não atendia aos requerimentos do agente encarregado de acompanhar e fiscalizar a execução. Todavia, ao fim do relatório, recomendou que o presidente da Corte rescindisse “imediatamente o contrato”, o que a autoridade, acolhendo as conclusões (e equivocados fundamentos) decidiu prontamente. Qual foi o problema? Houve indução ao erro pela comissão de sindicância, na medida em que deveria instruir ao gestor que instaurasse o devido processo administrativo de rescisão de contrato, previsto na lei de regência. A sindicância, por si, não tem o condão de autorizar o rompimento unilateral do contrato, mas serve, essencialmente, para justificar a abertura da ação administrativa própria. Por falta de esclarecimento adequado, o desembargador viu-se constrangido ao saber que fora impetrado contra si um mandado de segurança pela ilegalidade cometida.
Um presidente do Supremo Tribunal Federal certa vez ficou raivoso ao ter de responder à imprensa sobre a compra, em tese superfaturada, de uma cadeira de dentista para o serviço ambulatorial da Corte. Era a imprópria mistura entre administrador da pauta da instituição judiciária com a condição vigente de ordenador de despesa.
Na mesma linha, uma presidente de uma Corte trabalhista procurou advogado para, segundo ela, “entender o porquê de estar sendo processada”. Contou que ao assumir a presidência soube que havia um secretário, nomeado em comissão (por confiança) pelo seu antecessor, que havia se envolvido em danosas operações, atuando em conluio com fornecedores e prestadores de serviço. O que fez a nova gestora? Imediatamente providenciou que a autoridade que fizera a nomeação exonerasse o servidor acometido de debilidade de caráter; e, com isso, pensou ter eliminado o problema. Mas instaurou processo disciplinar? Não. Pois era necessário. Ainda que exonerado, o servidor devia satisfação por tudo o que fez (especialmente de grave) no exercício do cargo que ocupou. Ao fim, em sendo condenado, o ato de exoneração seria convertido em pena de destituição de função comissionada e ele ficaria impedido por cinco anos de ocupar novo espaço no serviço público; e se dos autos emergissem evidências de crime, haveria notícia documentada para as providências do órgão ministerial. A falta dessa iniciativa fez o Ministério Público acionar a desembargadora por improbidade decorrente da quebra de dever de ofício. E ainda sobreveio a questão do prejuízo causado pelo funcionário: a ordenadora de despesa (então presidente) deveria ter instaurado processo de tomada de contas especial; em não o tendo feito, assumiu solidariamente o débito e resultou acionada pelo Tribunal de Contas da União.
Outra amostra se vê em Tribunais de Contas que, ao regulamentarem internamente a fiscalização dos seus contratos administrativos criam regras à margem do objetivo da lei e com incrível confusão entre as figuras da gestão, da fiscalização e do recebimento do objeto. Isso, por conseguinte, implica até mesmo na atividade-fim, ou seja, nos critérios de aferição dos contratos dos seus jurisdicionados.
MEDIDAS PREVENTIVAS
Presidentes de Tribunais, no momento em que assumem a direção da Corte, passam a ter responsabilidades inerentes ao resultado da gestão. Entram aqui matérias sensíveis que, se não forem tratadas ao tempo certo e da maneira correta, podem induzir à responsabilidade solidária da autoridade, como se vê frequentemente em ações de improbidade administrativa e em processos junto aos Tribunais de Contas, com profundo abalo à imagem e à paz interior do dirigente público (exemplos acima citados). Episódios com repercussão pública, por conta da pressão midiática, ocasionalmente resultam tratados às pressas e ao improviso, o que acontece pela ausência de fluxograma de reação para enfrentamento desses casos.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, ao conceituar a figura do gestor responsável, assim considera aquele que previne riscos e corrige desvios (art. 1º, §1º, da Lei Complementar nº 101/2000). Por isso, a melhor forma de resguardo e, sobretudo, de garantir uma administração com economicidade, eficiência e segurança jurídica é regulamentar os pontos sensíveis, dentre os quais:
A metodologia do serviço de fiscalização de contrato, como determina a Lei nº 14.133/21;
As peculiaridades dos serviços terceirizados e ocorrências em potencial;
A rapidez de reação e a racionalidade na reparação de dano ao erário, a partir do enunciado do Decreto-Lei nº 200/67 (art. 14);
Funcionamento jurídico e estrutural da sua corregedoria, a começar pela fixação de uma Política de Controle da Disciplina, com meios alternativos de resolução de incidentes: ajustamento de conduta disciplinar, câmara de conciliação, suspensão condicional do processo e Regimento Interno das comissões de sindicância e de processo disciplinar;
O moderno Código da Boa Conduta Administrativa, nos moldes da União Europeia, substancialmente diferente do subjetivo Código de Ética;
Qualificar as chefias como sendo a ponta do controle, de forma que cada chefe cumpra o poder-dever de ordenar, controlar e corrigir;
-
Orientar servidores em geral sobre questões relacionadas à ordem administrativa em geral e aos incidentes de repercussão como assédio/importunação sexual, assédio moral, discriminação e intolerância, e a forma jurídico/administrativa de encaminhar quadros de alcoolismo, narcisismo destrutivo, querelomania, psicopatia institucional, transtorno obsessivo compulsivo e as mais diversas síndromes que compõem doenças de diagnóstico moderno.
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:
Essas são as preocupações que devem nortear toda administração em qualquer tribunal. Ao assumir a presidência, por exemplo, Sua Excelência o desembargador ou conselheiro, que tem o domínio da área-fim, deixa em parte de ser um prestador de serviço jurisdicional e se torna um gestor público, com responsabilidade direta ou indireta sobre ocorrências que envolvem; i) disciplina; ii) ética; iii) dano ao erário; iv) indução a erro pelas chefias; v) fiscalização de contratos; vi) ocorrências com serviços terceirizados; iv) escândalos de todo formato no âmbito da instituição. Portanto, a organização desses sistemas é a garantia do gestor; e, ao fazê-lo, deve preferencialmente levar em conta a colaboração de um serviço especializado, com visão holística do sistema, que possa entregar um produto com segurança jurídica e resultado útil. Ao pretexto de economia, alguns se aventuram a constituir grupos internos de trabalho que, ao cabo, consomem meses de pesquisas (com prejuízo das atividades de rotina), copiam de um e de outro e montam algo com criatividade, sem conhecerem o porquê de cada enunciado – o que é natural, porque não se pode cobrar desses agentes que sejam detentores de todos os saberes; e o regulamento finalizado é algo que não passa ao crivo de qualquer especialista na matéria.
CONCLUSÃO
Quem assumir a presidência de um tribunal deve se cercar de uma assessoria com competência funcional, a se entender que competente não é aquele funcionário que identifica problema em tudo para se mostrar indispensável, mas o que tem a solução ou o caminho certo para recomendar, com serenidade, a resolução pretendida. E, por elementar, os temas elencados neste texto como sendo sensíveis, devem ser objeto de regulamentação segura, pois isso permite cobrar de subordinados as respectivas impropriedades, mas, principalmente, serve para padronizar procedimentos e dar segurança a todos os atores nos diversos departamentos das estruturas com visibilidade como o são o Poder Judiciário e as Cortes de Contas.