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Negócios jurídicos processuais atípicos, sua abrangência e limitações

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Agenda 31/03/2023 às 17:40

RESUMO: O presente trabalho objetiva estudar os negócios jurídicos processuais atípicos, introduzidos pelo Código de Processo Civil de 2015 e os limites de sua aplicabilidade no processo civil. As convenções processuais típicas não são novidades em nosso ordenamento jurídico. O atual código ampliou significativamente a abrangência deste instituto, com a criação de novos negócios jurídicos processuais típicos e trouxe grande (e inédita) inovação ao sistema processual, ao prever, expressamente, a possibilidade da celebração de negócios processuais atípicos que versem sobre direitos que admitam autocomposição (art. 190). Este artigo se propõe a questionar qual o alcance e os limites das convenções processuais atípicas. Até que ponto a autonomia da vontade pode prevalecer ao publicismo processual?

Palavras chaves: Processo Civil. Negócio Jurídico Processual. Convenções Processuais Atípicas. Autonomia da Vontade no Processo Civil. Cláusula Geral de Negócios Jurídicos Processuais. Artigo 190 do Código de Processo Civil

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva estudar os negócios jurídicos processuais atípicos, introduzidos pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC) e os limites de sua aplicabilidade no processo civil.

As convenções processuais típicas preexistiam ao atual diploma processual, como por exemplo, a eleição de foro,1 suspensão convencional do processo2 e a renúncia ao recurso3. O atual código ampliou sobremaneira a abrangência deste instituto, com a criação de novos negócios jurídicos processuais típicos e trouxe grande (e inédita) inovação ao sistema processual, ao prever, expressamente, a possibilidade da celebração de negócios processuais atípicos que versem sobre direitos que admitam autocomposição (art. 190).

Não há dúvida que o Código de Processo Civil vigente fortaleceu a autonomia da vontade em detrimento ao publicismo, dando maior protagonismo às partes que, em cooperação com o juiz, têm maior liberdade para estabelecer convenções e até mesmo alterar certos ritos processuais. O grande desafio é estabelecer o alcance e os limites das convenções atípicas, para que tenhamos um equilíbrio entre a autonomia privada e a preservação das normas de ordem pública.

Sem a pretensão de exaurir o tema, o presente artigo se concentrará no estudo dos negócios processuais atípicos, trazendo a visão de doutrinadores que se dedicam a estudá-lo e compilando alguns precedentes jurisprudenciais que indicam a tendência de nossos tribunais sobre a questão.

  1. CONCEITO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS E SUAS ESPÉCIES

Doutrinadores de escol têm se dedicado a conceituar e a estudar o negócio jurídico processual. Tão incandescente é o tema que inúmeros Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) foram a ele dedicados, como mencionaremos no decorrer deste trabalho.

Para Didier4, o “negócio jurídico processual é o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais”.

Para o renomado Professor, o negócio jurídico é fonte de norma jurídica processual, pois vincula o julgador àquilo que foi validamente pactuado pelas partes.

Lima5, por sua vez, conceitua o negócio jurídico processual como sendo um “fato jurídico processual que tem por suporte fático uma manifestação de vontade negocial, consistente no autorregramento da vontade pelos convenentes, que disciplinam as situações jurídicas por eles titularizadas ou normas do procedimento”.

A autonomia da vontade é característica essencial do negócio jurídico, conforme lecionam Theodoro Júnior e Figueiredo6, para os quais “as partes podem não apenas declarar a intenção de praticar o ato, mas também regular os efeitos que dele pretendem extrair.”

Podemos inferir das definições colacionadas, que o negócio jurídico processual é um fato jurídico, que emana da vontade das partes, tendo por objetivo criar convenções acerca de procedimentos processuais e situações jurídicas, dentro dos limites da lei.

Antes do advento do atual Código de Processo Civil (2015) já havia previsão legal de inúmeros negócios processuais (adiamento da audiência por uma vez (CPC/73), art. 453, inciso I; redução ou aumento consensual dos prazos dilatórios (CPC/73, art. 181, entre outros). E justamente por estarem contemplados na lei processual, foram denominados negócios processuais típicos.

O diploma legal vigente ampliou significativamente o rol dos negócios processuais típicos e inovou ao criar, expressamente, os negócios processuais atípicos, que são o objeto do presente artigo, cuja previsão se encontra no artigo 190 do Código de Processo Civil, sobre o qual nos debruçaremos detalhadamente mais à frente.

Insta salientar, que a criação de uma cláusula geral de negócios jurídicos processuais, inserida na legislação processual, não tem precedentes no direito comparado, o que nos permite dizer que o atual diploma processual operou uma das maiores revoluções processuais da história.

Houve inegável fortalecimento da autonomia da vontade, tornando o processo mais colaborativo, dando maior protagonismo às partes, que agora podem estabelecer convenções processuais, desde que admitida a autocomposição.

Além de distinguir os negócios processuais típicos dos atípicos, Didier7 nos apresenta as seguintes espécies:

  1. Negócios jurídicos unilaterais, que se perfazem pela manifestação de apenas uma vontade, como a desistência e a renúncia;

  2. Negócios jurídicos bilaterais, que decorrem da manifestação de duas vontades, como ocorre no caso da suspensão convencional do processo;

  3. Negócios jurídicos plurilaterais, que emanam da vontade de mais de dois sujeitos, podendo ser avençados quando houver interesses contrapostos ou em acordos ou convenções, onde haja interesses comuns;

  4. Negócios jurídicos expressos, como é o caso da escolha do foro de eleição;

  5. Negócios jurídicos tácitos, que são implícitos, como no caso da aceitação da decisão, pela prática de ato incompatível com a vontade de recorrer (ato comissivo) ou da não alegação de convenção de arbitragem (ato omissivo).

O laureado processualista também diferencia os negócios jurídicos que precisam ser homologados judicialmente, citando como exemplo a desistência do processo, daqueles que prescindem de homologação, como é o caso da desistência de recurso.

  1. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ATÍPICOS

    1. Previsão da aplicabilidade de negócios jurídicos atípicos no atual Código de Processo Civil e regras gerais

Havia certa celeuma acerca da admissibilidade dos negócios jurídicos atípicos. Contudo, com a promulgação da Lei 13.105/20158 qualquer questionamento sobre a matéria tornou-se anacrônico, diante da expressa previsão legal, insculpida no art. 190, assim redigido:

“Art. 190 - Versando o processo sobre direito que admita autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único - De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.” (Grifos meus)

Dada a relevância do tema, o legislador poderia ter se aprofundado nas hipóteses de cabimento das convenções processuais atípicas. Preferiu ser sucinto, criando uma cláusula geral de negócios jurídicos e deixando para a doutrina o debate acerca da matéria e para a jurisprudência o controle e a limitação de sua aplicabilidade.

Atualmente não se discute mais se as partes podem ou não convencionar sobre determinados procedimentos processuais. A grande questão que exsurge diz respeito aos limites da autonomia da vontade, frente aos ditames da ordem pública. Até que ponto é lídimo às partes convencionar sobre a marcha processual, em detrimento à forte carga publicista imposta pelo Estado-Juiz?

A própria lei responde, em parte, esta questão limitando a possibilidade da convenção a direitos que admitam a autocomposição. No entanto, o legislador não forneceu um rol taxativo ou exemplificativo das hipóteses de admissão da transação processual e nem poderia, pois são incontáveis as situações que permitem a autocomposição processual.

Comentando o art. 190 do atual Código de Processo Civil, Cais9 nos apresenta a seguinte análise:

A lei fala em processos versando sobre direitos que admitam a autocomposição, o que sugere uma remissão a demandas cujos objetos sejam direitos disponíveis, que são aqueles passíveis de serem transacionados. É certo, entretanto, que o próprio conceito de direitos disponíveis não encontra definição muito tranquila na doutrina, especialmente quando se trata de direitos da Administração Pública.

O autor sugere que “as soluções já apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência acerca do alcance do art. 1º da Lei nº 9.307/1996”, que trata da arbitragem, sejam utilizadas para a interpretação da primeira parte do art. 190, sendo possível, exemplificativamente, a realização de negócios jurídicos processuais envolvendo particulares e a Administração Pública, frisando, no entanto, que tal interpretação analógica não se estende ao restante do preceptivo legal, pois a figura do juiz e dos órgãos jurisdicionais não se equipara a do árbitro.

Didier10 elucida uma questão de suma importância ao esclarecer que:

[...] o direito em litígio pode ser indisponível, mas admitir solução por autocomposição. É o que acontece com os direitos coletivos 43 e o direito aos alimentos. Assim, "a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual" (Enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis). Por isso o texto legal fala em "direito que admita autocomposição" e não "direito indisponível.

O mesmo pensamento é compartilhado por Machado11, para o qual:

A literalidade do Código parece restringir a transação processual às demandas que tiverem como objeto bens da vida de natureza disponível (CC, art. 852). Esta, no entanto, não é a interpretação sistemática mais adequada. Há casos em que os bens da vida em disputa são absolutamente indisponíveis, como a saúde, o meio ambiente e o estado das pessoas, no entanto, nos quais a técnica processual relativamente rígida do procedimento comum ou mesmo de procedimento especial como da ação civil pública não permite que o processo atinja os melhores resultados.

O Enunciado 135 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis segue a mesma trilha ao dispor que: “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual.”

Portanto, admite-se a celebração do negócio jurídico processual, ainda que o direito material seja indisponível, isto porque a convenção processual não diz respeito ao objeto litigioso da lide e sim a alterações no rito processual ou a situações jurídicas processuais.

O art. 190 deve ser interpretado conjuntamente com o caput do art. 200 (ambos do CPC), que trata dos efeitos dos atos jurídicos, sejam eles unilaterais ou bilaterais e que tem a seguinte redação:

Art. 200 - Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

A doutrina distingue os atos jurídicos stricto sensu daqueles lato sensu. Enquanto os primeiros emanam de uma imposição legal, cabendo às partes praticá-los ou não, os segundos derivam da vontade dos demandantes. Sendo assim, nos parece que o artigo 200, acima reproduzido, tem por objetivo regrar a aplicação dos negócios jurídicos, pois faz menção expressa aos atos volitivos. O mesmo entendimento é esposado por Cais12 para o qual:

[...] Como a lei se remete aos atos consistentes em declarações de vontade, não faria sentido interpretar o dispositivo legal como relativo a todo ato jurídico, porque o legislador estaria sendo redundante. Se todo ato jurídico decorre de uma manifestação de vontade em sentido amplo, não haveria motivo para o legislador se referir aos atos jurídicos consistentes em declarações de vontade se não fosse para limitar sua aplicação aos casos em que a vontade das partes é determinante para o resultado pretendido. A melhor interpretação para o dispositivo, dessa maneira, é a que limita sua aplicação aos negócios jurídicos. [...]

Os efeitos dos negócios jurídicos, portanto, modificam ou extinguem direitos processuais imediatamente à sua constituição. E como dissemos em linhas pretéritas, alguns negócios jurídicos não dependem de homologação, enquanto a eficácia de outros dela dependerá, conforme lei a lei assim exigir. “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 não dependem de homologação judicial.” - “Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 não dependem de homologação judicial.”

Cais também nos alerta sobre a necessidade alguns cuidados para a correta interpretação do preceptivo em estudo:

[...] A eficácia imediata que o ato tem nos direitos das partes diz respeito a sua vinculação à vontade manifestada ao praticar o ato, e não aos efeitos típicos que esse ato se proponha a produzir. A parte fica impedida de agir em desconformidade com sua vontade validamente manifestada, mas isso não significa que os efeitos do ato jurídico sejam produzidos de imediato, especialmente quando se tratar de negócio jurídico processual. [...]

Deveras, a parte não pode agir no processo contraditoriamente à vontade por ela própria externada, pois nosso ordenamento jurídico veda o venire contra factum proprium.

Uma vez entabulado o negócio jurídico, bi ou plurilateral, não é dado a uma das partes dele desistir, uma vez que o princípio da boa-fé seria corrompido pela frustração da expectativa gerada na parte adversária. Nada impede, porém, que se ajuste o distrato consensual do negócio previamente entabulado. Entretanto, se o negócio processual demandar homologação judicial para produzir efeitos, o respectivo distrato também dependerá de homologação.13

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2.2 - Momento da celebração

O art. 190 do CPC prevê que os negócios jurídicos processuais podem ser ajustados antes da deflagração do processo (antecedentes) ou de forma incidental, no decorrer da lide.

No caso dos negócios jurídicos antecedentes a lei possibilita a criação de cláusulas contratuais preventivas, que disciplinem a forma de resolução de uma hipotética e futura demanda, como é o caso da cláusula de arbitragem.

O negócio jurídico incidental, como o próprio nome revela, se dá no decorrer do processo, possibilitando às partes estipular alterações procedimentais de forma pontual ou mais abrangente. “Enquanto houver litispendência, será possível negociar sobre o processo”, ensina Didier14.

A instauração do litígio muitas vezes dificulta a composição entre as partes, inviabilizando a transação, daí porque, ao nosso ver, o melhor momento para o ajuste do negócio jurídico processual é aquele que precede a contenda, pois ausentes a beligerância e a animosidade.

Os negócios jurídicos processuais antecedentes podem ter grande impacto na seara contratual, pois nitidamente “favorecem o comportamento colaborativo das partes durante a execução do contrato, diminuindo o apelo à litigância e educando as partes sobre o modo de eventual processo entre elas vir a se desenrolar no futuro.”15 Ademais, como bem salienta Bandeira:

[...] as cláusulas contratuais podem ajudar as partes contratantes a identificar, de plano, quais agentes econômicos dão sinais de que executarão o contrato com maior confiabilidade (por aceitarem estabelecer cláusula de garantia contra defeitos por reduzido custo adicional, por exemplo) e quais indicam que evitarão judicializar eventuais conflitos (por aceitarem com mais facilidade celebrar negócios que atribuem situação processual de vantagem à outra parte.

2.3 - Requisitos de validade e regras de interpretação

As convenções processuais nada mais são do que negócios jurídicos, que devem se submeter aos requisitos legais de validade e eficácia do Direito Material. O Código Civil, em seu art. 10416, condiciona a validade dos negócios jurídicos à capacidade do agente, à licitude do objeto, que deve ser determinado ou determinável e à forma prevista em lei ou não proibida por ela. “A validade do negócio jurídico processual, requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.” – Enunciado 403 do do Fórum Permanente de Processualistas Civis.

É importante anotar que a capacidade das partes deve ser a capacidade civil de contrair direitos e obrigações, nos termos dos artigos 3º e 4º do Código Civil, além da capacidade processual, no caso dos negócios jurídicos processuais incidentais. Para Machado17:

A presença de advogado somente será requisito de validade para os negócios jurídicos pós-processuais, isto é, aqueles firmados no curso do processo, no qual a realização de atos postulatórios depende sempre da presença de advogado, ou do Ministério Público ou de outro indivíduo que na ocasião tenha condições de exercer a chamada capacidade postulatória (CPC, art. 76).

A manifestação da vontade na formação do negócio jurídico não pode ser viciada. Os vícios de consentimento, como a coação, o erro o dolo, o estado de perigo a e lesão podem acarretar a nulidade da avença. “Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190” – Enunciado 132 do Fórum Permanente de Processualistas Civis - “Negócio jurídico processual pode ser invalidado parcialmente.” - Enunciado 134 do Fórum Permanente de Processualistas Civis.

A interpretação dos negócios jurídicos deve seguir os ditames dos art. 113 do Código Civil. Releva anotar que, a redação do referido preceptivo foi alterado pela Lei 13.874/2019, conhecida como a “Lei da liberdade econômica”, a qual forneceu novas diretrizes de interpretação, com o objetivo de diminuir o intervencionismo estatal nos pactos firmados sob os princípios da paridade e da autonomia da vontade.

Os negócios jurídicos processuais, sejam eles antecedentes ou incidentais, devem ser interpretados, portanto, com observância ao princípio geral da boa-fé, bem como aos usos, costumes e práticas do local em que foi entabulado. A interpretação também deverá considerar o comportamento das partes posteriormente à convenção, a fim de averiguar se não há contradição com a manifestação de vontade, externada no momento da celebração da convenção.

Ainda conforme preconiza o art. 113, o negócio jurídico deve ser interpretado de forma mais benéfica para a parte que não redigiu as cláusulas contratuais, cuja interpretação seja controvertida e levando-se em consideração o conteúdo mais provável que as partes teriam chegado, caso tivessem negociado sobre a questão, sempre em cotejo ao restante das cláusulas contratuais e levando-se em conta as especificidades do negócio.

Outra questão que nos parece de suma importância na interpretação dos negócios jurídicos processuais e certamente demandará uma análise minudente do julgador, ao realizar o controle de validade das convenções, diz respeito à paridade das partes no momento da celebração da avença. Quanto mais paritárias as partes, menor deverá ser o grau de intervenção naquilo que foi pactuado.

Inclusive, o parágrafo único do art. 190 do CPC é categórico ao determinar que o juiz deverá recusar a aplicação do negócio jurídico processual quando aferir que uma das partes se encontra em manifesta situação de vulnerabilidade, como geralmente se verifica nos contratos de adesão.

Caberá à jurisprudência estabelecer o justo equilíbrio entre a autonomia da vontade e o publicismo, de tal modo que as inovações contidas no art. 190 não se tornem letra morta. Mais adiante traremos o entendimento pretoriano que vem se formando em torno de tais questões.

  1. OS LIMITES DAS CONVENÇÕES PROCESSUAIS FRENTE À ORDEM PÚBLICA E AO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Afinal, o que vem a ser a “ordem pública”? O tema é controverso e suscita infindáveis discussões doutrinárias.

O significado de ordem pública tem conotação com valores e princípios fundamentais do ordenamento jurídico, como anota Menezes de Cordeiro, citado por Lima18, para o qual “a ordem pública apela a valores fundamentais do ordenamento e aos princípios cogentes da ordem jurídica não positivados, enquanto os bons costumes são externos ao ordenamento.”19

Para Cabral,20

[...] à ordem pública são atribuídos os valores extraídos de um consenso social e jurídico de um determinado ordenamento, flexíveis às eventuais mutações históricas e relacionados aos sentimentos de juridicidade, justiça e moralidade, motivados especialmente pelos direitos e garantias fundamentais, cuja inobservância gera um vício capaz de tornar ilegítimo o ato jurídico ou jurisdicional.”

[...] Não obstante, não se pode falar da ordem pública sem tecer considerações sobre o interesse público, eis que está intimamente ligado à própria noção de ordem pública, podendo, ainda, configurar uma de suas facetas.

[...]

Conclui a magistrada capixaba: que “as questões de ordem pública são aquelas cujo interesse público envolvido é elevado a ponto de justificar uma intervenção corretiva do juiz, em nome da boa administração da justiça”.

Em que pese a concepção de ordem pública tenha caráter universal, cada ramo do direito trata e analisa o tema sob uma ótica peculiar. O enfoque que nos importa no presente trabalho é aplicação da ordem pública no processo civil, pois nele se encontra a previsão legal dos negócios jurídicos atípicos, como já dissemos alhures. Será no decorrer das lides que se reconhecerá ou não a aplicabilidade das convenções processuais.

O conceito de ordem pública não se confunde com “questões de ordem pública”, como assinala Aprigliano, citando Fazzalari21, para o qual “a noção de ordem pública se afasta do conceito mais estrito da “questão” em direito processual, para se aproximar do conceito amplo, defendido por Fazzalari, no sentido de que não se exige controvérsia, mas mera dúvida, para identificar uma questão.”

No mesmo sentido, Cabral22 entende que “(...) o poder de cognição de ofício de certas matérias pelo juiz não se confunde com as questões de ordem pública processual e não transforma estas últimas naquelas.”

O princípio constitucional do devido processo legal, por sua vez, é aquele que assegura às partes o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Lança-se, então, a seguinte indagação: Qual o limite da autonomia privada na formação dos negócios processuais atípicos frente à ordem pública e ao devido processo legal? Parece haver um evidente antagonismo entre o publicismo processual, pelo qual é dado ao Estado Juiz dizer o direito e conduzir o processo e à possibilidade das partes em estipular ritos procedimentais que modifiquem ou alterem a marcha processual.

A partir do momento em que a União, exercendo sua competência legislativa, criou uma cláusula geral de negócios jurídicos, possibilitando às partes estipular convenções processuais, houve inegável flexibilização das formas procedimentais.

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Isso não significa, porém, que os convenentes têm liberdade irrestrita para transigir em matéria processual, pois os princípios insculpidos em nossa constituição, tais como do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural e da publicidade jamais poderão ser preteridos, cabendo ao juiz controlar a validade das avenças.

O controle da validade das convenções, como a própria norma prevê, será exercida pelo juiz, ao qual cabe “simplesmente observar as regras convencionais, em vez das legais, salvo constatada nulidade”23. Em outras palavras, não é dado ao magistrado fazer juízo de valor sobre a conveniência dos ajustes procedimentais alinhavados pelas partes, somente podendo refutá-los em caso de nulidade ou se uma das partes se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade ou, ainda, se inseridas em contrato de adesão, onde se constate a hipossuficiência do aderente.

Deverá, então, prevalecer a autonomia da vontade, pois “onde as partes são iguais, o Poder Público deve homenagear a vontade com vigor onde a desigualdade é mais forte, a intervenção se legitima para corrigir uma distorção inicial”, como bem assinala Bandeira.24

Para Lima “é legítima a convenção sobre situações titularizadas pelas próprias partes, mas que indiretamente impactem posições de terceiros, como é o caso da afetação dos poderes instrutórios do juiz pela convenção probatória”. Como exemplo, a autora menciona o negócio processual em que os convenentes estipulam somente a realização de prova pericial. Neste caso, não poderá o magistrado pretender a realização de outro meio probatório25.

Caberá à jurisprudência traçar os limites das convenções processuais, equalizando a “liberdade das formas procedimentais” com o “sistema de legalidade dos procedimentos”. Neste sentido, desde a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, emergem decisões colegiadas que indicam a tendência de nossas Cortes com relação ao tema e que passaremos a tratar na sequência.

  1. A VISÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL SOBRE AS CONVENÇÕES PROCESSUAIS ATÍPICAS

A cláusula geral de negociação sobre o processo, assentada no art. 190 do CPC, permite às partes a criação de incontáveis ajustes no procedimento processual. A doutrina nos apresenta uma série de convenções admitidas pela lei.

Como avaliar se uma convenção processual será considerada válida? Didier defende a aplicação da seguinte regra: “não possuindo defeito, o juiz não pode recusar aplicação ao negócio processual.”26. De tal modo, se o ajuste entabulado entre as partes não estiver eivado de nulidade, não contiver cláusula abusiva inserida em contrato de adesão ou se as partes não se encontrarem em estado de vulnerabilidade, não haverá razão para que o magistrado recuse o pacto.

Para Machado27:

As partes podem transacionar a respeito da técnica, mas não têm competência para renunciar ao devido processo legal. Estão autorizadas a dispor a respeito dos prazos processuais, da realização ou não de audiência, da admissibilidade ou não de recursos, da possibilidade de relativização da estabilização do objeto litigioso, da possibilidade de questões prejudiciais serem encampadas pela coisa julgada material. No entanto, não têm poderes para renunciar ao acesso à justiça, autorizar o desenvolvimento do processo sem contraditório, renunciar à exigência de boa-fé ou moralidade processual, admitir a utilização de provas ilícitas ou mesmo decisões carentes de fundamentação. (Grifos meus)

Didier28 elenca alguns exemplos de negócios processuais atípicos legalmente permitidos:

[...] acordo de impenhorabilidade, acordo de instância única, acordo de ampliação ou redução de prazos, acordo para superação de preclusão, acordo de substituição de bem penhorado, acordo de rateio de despesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo da apelação, acordo para não promover execução provisória, acordo para dispensa de caução em execução provisória, acordo para limitar número de testemunhas, acordo para autorizar intervenção de terceiro fora das hipóteses legais, acordo para decisão por equidade ou baseada em direito estrangeiro ou consuetudinário, acordo para tornar ilícita uma prova etc.

Para o aclamado doutrinador, que foi um dos idealizadores da norma em comento, também é possível o acordo sobre pressupostos processuais, a depender do exame do direito positivo. Como exemplo, cita o consentimento do cônjuge para a propositura de ação real imobiliária e o pedido de apreciação judicial sobre a coisa julgada, assinalando que:

Nada impede, também, que as partes acordem no sentido de ignorar a coisa julgada (pressuposto processual negativo) anterior e pedir nova decisão sobre o tema: se as partes são capazes e a questão admite autocomposição, não há razão para impedir - note que a parte vencedora poderia renunciar ao direito reconhecido por sentença transitada em julgado.

Antonio Passos Cabral, citado por Lima29, entende cabíveis convenções processuais atípicas para:

[...] ampliar, modificar e extinguir: (i) direitos subjetivos de que disponham as partes; (ii) poderes, pelos quais a parte pode influir na vontade da parte adversa; e (iii) faculdades que possibilitem a atuação livre da vontade da parte; (iv) ônus processuais, uma vez que eles geram efeitos na esfera jurídica do próprio interessado. No que tange aos deveres legais (obrigações que restringem a vontade da parte), não se admite sua modificação ou extinção, mas, sim, a criação de outros deveres.

Lima30 também entende que há amplo espaço para a celebração de convenções processuais:

As partes podem ampliar, alterar ou restringir os atos a serem praticados nas fases postulatória, saneatória e instrutória, bem como na etapa executiva. Podem convencionar formas (inclusive dos atos de comunicação), prazos, extensão das matérias a serem deduzidas, bem como podem modificar a ordem de produção de provas (produzindo, por exemplo, a prova pericial em momento anterior até mesmo à conciliação/mediação) ou desjudicializar etapas (como a mediação e a conciliação).

Questão que suscita inflamado debate, diz respeito à possibilidade dos negócios processuais atípicos versarem sobre acordos probatórios. A inversão do ônus da prova ou a limitação da produção de determinadas provas, interferem na atividade jurisdicional? O juiz deve ficar adstrito à vontade manifestada pelas partes no modo de produção ou de delimitação das provas? Os pactos probatórios têm validade?

Enfrentando o tema, Godinho31 entende que “a atividade probatória é, portanto, essencialmente limitada, de modo que o estabelecimento de limitações consensuais é apenas mais uma possibilidade autorizada pelo ordenamento. O rechaço aos acordos probatórios enseja na realidade uma recusa a admitir o autorregramento da vontade no processo e revela a exacerbação do protagonismo judicial.”

Compartilhamos do mesmo entendimento, porém não há como ignorar a prevalência do espírito publicista, que permeia processo civil, onde a máxima de que “o juiz é o destinatário final da prova” tornou-se um verdadeiro axioma. Criticando esta visão, Godinho32 anota:

Ainda sobre a equivocada ideia de o juiz ser o destinatário da prova e integrar o elemento funcional do conceito de prova, Leonardo Greco corretamente identifica que a convicção do julgador como função ou finalidade da prova corresponde a uma concepção subjetivista de uma realidade objetiva – os fatos – e contribui para tornar o julgador “um soberano absoluto e incontrolável, por mais que a lei lhe imponha exclusões probatórias, critérios predeterminados de avaliação ou a exigência de motivação. Há sempre uma enorme margem ineliminável de arbítrio, especialmente na avaliação das provas casuais ou inartificiais, como a prova testemunhal.

A possibilidade acerca dos pactos probatórios dependerá de uma quebra de paradigma. Aqueles que têm uma visão mais publicista e paternalista do processo, certamente terão dificuldades em aceitar que as partes podem, conforme melhor lhes convêm, criar acordos probatórios que interferem na atividade jurisdicional. Por outro lado, é inegável que legislador pretendeu democratizar o processo, outorgando às partes maior liberalidade na condução da marcha processual, mitigando o intervencionismo estatal.

Refutar os acordos probatórios significa rechaçar o espírito da lei e, sobretudo, negar a possibilidade que as partes têm em delimitar questões que decorrem da autonomia de suas vontades.

Parafraseando Godinho, escudado por Didier, Braga, Oliviera e Yarshell:

A parte pode expressamente dispor do seu direito de produzir determinada prova, seja unilateralmente, seja mediante acordo firmado com a parte adversária (pode ser que as partes resolvam firmar um acordo de, por exemplo, não realização de perícia; elas podem imaginar que não vale a pena aguardar pela produção dessa modalidade de prova para que o litígio alcance um desfecho). Pode ser, ainda, que uma das partes, sozinha, resolva expressamente abrir mão da perícia, ou de qualquer outro meio de prova. Não há inércia, mas vontade manifestada: não se quer a produção de determinado meio de prova” 20. Exemplificando: “a) se as partes acordarem no sentido de não ser produzida prova pericial, o juiz não pode determinar a produção desse meio de prova; b) se a parte renunciar a certo testemunho, o juiz não pode determinar a sua produção; c) se houver convenção sobre o ônus da prova, o juiz não pode decidir contra o que foi convencionado. O poder instrutório do juiz tem essa limitação, enfim.

Trazendo um olhar prático ao tema, podemos elencar alguns negócios jurídicos bilaterais citados por Lima33, que podem ser ajustados pelas, dentre eles:

(a) apresentação de laudo substitutivo de perícia, elaborado por experts escolhidos pelas partes, dentro ou fora do processo, sem prejuízo do contraditório e ampla defesa, ainda que extrajudiciais, e da livre valoração judicial da manifestação do perito;556 (b) dispensa de assistentes técnicos; (c) estabelecimento do hot-tubbing pericial, com acareação dos técnicos, para imediata resolução de dúvidas das partes e juízes; (d) possibilidade de custeio de despesas processuais por terceiros (third party litigation funding), condicionado o auxílio ao aproveitamento pelo terceiro dos resultados financeiros da demanda, particularmente os custos da perícia; (e) utilização de prova estatística ou por amostragem, para estabelecer a relação entre um fenômeno e suas causas (como avaliar a impressão dos consumidores quanto à gestão de determinado shopping center), pois nem sempre a reconstrução dos fatos se revela possível; (f) manifestação do perito em audiência e não por escrito; (g) como na conzulenza tecnica italiana, o recurso a consultores para participação em alguns atos processuais; (h) o uso de documentos produzidos por comitês técnicos (como os dispute boards), na gestão administrativa de conflitos, para fins probatórios; (i) vedação do depoimento pessoal de uma das partes ou de ambas, bem como o depoimento de certa testemunha, por qualquer meio (escrito, oral, etc.); (j) permissão para que uma parte assista ao depoimento da outra; (k) admissão de declarações testemunhais por escrito (os written statements ou witness statements);557 (l) desjudicialização da oitiva da prova testemunhal e mesmo dos depoimentos das partes, que pode ser escrita ou gravada, ocorrer perante tabelião ou notário e até mesmo extravasar as necessidades da demanda judicial em questão (ante a autonomia da prova); (m) acareação entre testemunhas ou testemunha e parte; (n) limitação ou ampliação do número de testemunhas, inclusive, por fato; (o) realização de audiência ou outros atos processuais (como a oitiva de testemunha), por videoconferência ou outro recurso tecnológico, desde que com validação judicial, nos atos em que o juiz participa; (p) definição das regras a respeito da interação com as oral, etc.); (j) permissão para que uma parte assista ao depoimento da outra; (k) admissão de declarações testemunhais por escrito (os written statements ou witness statements);557 (l) desjudicialização da oitiva da prova testemunhal e mesmo dos depoimentos das partes, que pode ser escrita ou gravada, ocorrer perante tabelião ou notário e até mesmo extravasar as necessidades da demanda judicial em questão (ante a autonomia da prova); (m) acareação entre testemunhas ou testemunha e parte; (n) limitação ou ampliação do número de testemunhas, inclusive, por fato; (o) realização de audiência ou outros atos processuais (como a oitiva de testemunha), por videoconferência ou outro recurso tecnológico, desde que com validação judicial, nos atos em que o juiz participa; (p) definição das regras a respeito da interação com as processual, à documentação (favorável ou desfavorável) da parte adversa, sob pena de presunção de veracidade; (v) exibição de documento para prova de fato, sob pena de presunção de veracidade dos fatos que se pretendia provar; (w) responsabilização de um dos convenentes pela guarda e gestão, por certo intervalo de tempo, de documentos comprobatórios de um contrato, sob pena de presunção de veracidade em seu desfavor para a hipótese em que deixar de apresentar a documentação solicitada; (x) exigência de lastro em blockchain para documentos eletrônicos, já que se trata de registro em livro-razão seguro, público, autêntico e imutável; (y) admissão de prova emprestada, independentemente de participação das partes no feito em que produzida; (z) determinação da inspeção judicial a locais para apurar fatos, desde que com homologação judicial; (aa) redistribuição de despesas com provas, inclusive para promover a igualdade no processo; (bb) ampliação das hipóteses legais de tutela de evidência, para outros casos de provas;558 (cc) garantia da participação de notário nas deliberações assembleares de sociedades anônimas, com intuito de produzir ata notarial; (dd) documentação de prova oral para fins de ajuizamento de ação monitória, indicando os requisitos e especificidades de sua produção; (ee) definição das provas a serem produzidas para embasar renegociação de contrato em razão da ocorrência de fatos que alterem o equilíbrio contratual (cláusula hardships) etc.559-560

Passaram-se mais sete anos desde a entrada em vigor do atual diploma processual e ainda nos deparamos com decisões que parecem ser refratárias à aceitação de alguns pactos. Tal resistência pode ser compreendida em face de uma cultura publicista, que prevaleceu durante décadas em nosso sistema processual. O entendimento de que as partes podem regrar consensualmente o processo ainda não é recebida com naturalidade.

Caso não haja uma mudança paradigmática nas decisões judiciais, que arrefeça o publicismo em prol da autonomia privada, a aplicação da cláusula geral que autoriza a formação de negócios jurídicos processuais será diminuta, enfraquecendo, sobremaneira, a democratização processual e inibindo um maior protagonismo privado.

Há inúmeras decisões oriundas de nossos tribunais estaduais e algumas já proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), indicando algumas importantes tendências. Pela exiguidade do espaço e pela complexidade da matéria, selecionamos alguns interessantes precedentes, os quais passaremos a examinar.

Uns dos primeiros, senão o primeiro pronunciamento do STJ sobre a validade de celebração de um negócio processual atípico, ocorreu no julgamento do Recurso Especial nº 1.738.656 - RJ (2017/0264354-5), relatado pela Ministra Nancy Andrigui, que em seu voto condutor fez importantes considerações sobre a cláusula geral erigida no art. 190 do CPC.

Por ser demasiadamente extensa, reproduzo fragmentos da ementa, na parte que aqui nos interessa, com meus destaques e grifos:

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO. CLÁUSULA GERAL DO ART. 190 DO NOVO CPC. AUMENTO DO PROTAGONISMO DAS PARTES, EQUILIBRANDO-SE AS VERTENTES DO CONTRATUALISMO E DO PUBLICISMO PROCESSUAL, SEM DESPIR O JUIZ DE PODERES ESSENCIAIS À OBTENÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA, CÉLERE E JUSTA. CONTROLE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS QUANTO AO OBJETO E ABRANGÊNCIA. POSSIBILIDADE. DEVER DE EXTIRPAR AS QUESTÕES NÃO CONVENCIONADAS E QUE NÃO PODEM SER SUBTRAÍDAS DO PODER JUDICIÁRIO. NEGÓCIO JURÍDICO ENTRE HERDEIROS QUE PACTUARAM SOBRE RETIRADA MENSAL PARA CUSTEIO DE DESPESAS, A SER ANTECIPADA COM OS FRUTOS E RENDIMENTOS DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO SOBRE O VALOR EXATO A SER RECEBIDO POR UM HERDEIRO. ARBITRAMENTO JUDICIAL. SUPERVENIÊNCIA DE PEDIDO DE MAJORAÇÃO DO VALOR PELO HERDEIRO. POSSIBILIDADE DE EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO. QUESTÃO NÃO ABRANGIDA PELA CONVENÇÃO QUE VERSA TAMBÉM SOBRE O DIREITO MATERIAL CONTROVERTIDO. INEXISTÊNCIA DE VINCULAÇÃO DO JUIZ AO DECIDIDO, ESPECIALMENTE QUANDO HOUVER ALEGAÇÃO DE SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO DO SUBSTRATO FÁTICO. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO QUE APENAS PODE SER BILATERAL, LIMITADOS AOS SUJEITOS PROCESSUAIS PARCIAIS. JUIZ QUE NÃO PODE SER SUJEITO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. INTERPRETAÇÃO ESTRITIVA DO OBJETO E DA ABRANGÊNCIA DO NEGÓCIO. NÃO SUBSTRAÇÃO DO EXAME DO PODER JUDICIÁRIO DE QUESTÕES QUE DESBORDEM O OBJETO CONVENCIONADO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA. (...)

(...) 2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se a fixação de determinado valor a ser recebido mensalmente pelo herdeiro a título de adiantamento de herança configura negócio jurídico processual atípico na forma do art. 190, caput, do novo CPC;

(...) 3- Embora existissem negócios jurídicos processuais típicos no CPC/73, é correto afirmar que inova o CPC/15 ao prever uma cláusula geral de negociação por meio da qual se concedem às partes mais poderes para convencionar sobre matéria processual, modificando substancialmente a disciplina legal sobre o tema, especialmente porque se passa a admitir a celebração de negócios processuais não especificados na legislação, isto é, atípicos.

4- O novo CPC, pois, pretende melhor equilibrar a constante e histórica tensão entre os antagônicos fenômenos do contratualismo e do publicismo processual, de modo a permitir uma maior participação e contribuição das partes para a obtenção da tutela jurisdicional efetiva, célere e justa, sem despir o juiz, todavia, de uma gama suficientemente ampla de poderes essenciais para que se atinja esse resultado, o que inclui, evidentemente, a possibilidade do controle de validade dos referidos acordos pelo Poder Judiciário, que poderá negar a sua aplicação, por exemplo, se houver nulidade.

5- Dentre os poderes atribuídos ao juiz para o controle dos negócios jurídicos processuais celebrados entre as partes está o de delimitar precisamente o seu objeto e abrangência, cabendo-lhe decotar, quando necessário, as questões que não foram expressamente pactuadas pelas partes e que, por isso mesmo, não podem ser subtraídas do exame do Poder Judiciário.

6- Na hipótese, convencionaram os herdeiros que todos eles fariam jus a uma retirada mensal para custear as suas despesas ordinárias, a ser antecipada com os frutos e os rendimentos dos bens pertencentes ao espólio, até que fosse ultimada a partilha, não tendo havido consenso, contudo, quanto ao exato valor da retirada mensal de um dos herdeiros, de modo que coube ao magistrado arbitrá-lo.

7- A superveniente pretensão do herdeiro, que busca a majoração do valor que havia sido arbitrado judicialmente em momento anterior, fundada na possibilidade de aumento sem prejuízo ao espólio e na necessidade de fixação de um novo valor em razão de modificação de suas condições, evidentemente não está abrangida pela convenção anteriormente firmada.

8- Admitir que o referido acordo, que sequer se pode conceituar como um negócio processual puro, pois o seu objeto é o próprio direito material que se discute e que se pretende obter na ação de inventário, impediria novo exame do valor a ser destinado ao herdeiro pelo Poder Judiciário, resultaria na conclusão de que o juiz teria se tornado igualmente sujeito do negócio avençado entre as partes e, como é cediço, o juiz nunca foi, não é e nem tampouco poderá ser sujeito de negócio jurídico material ou processual que lhe seja dado conhecer no exercício da judicatura, especialmente porque os negócios jurídicos processuais atípicos autorizados pelo novo CPC são apenas os bilaterais, isto é, àqueles celebrados entre os sujeitos processuais parciais.

9- A interpretação acerca do objeto e da abrangência do negócio deve ser restritiva, de modo a não subtrair do Poder Judiciário o exame de questões relacionadas ao direito material ou processual que obviamente desbordem do objeto convencionado entre os litigantes, sob pena de ferir de morte o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e do art. 3º, caput, do novo CPC. (...)”. 34

Importantes lições podem ser extraídas do precedente acima colacionado. Em apertada síntese: a) o julgado reconhece o aumento do protagonismo das partes, decorrente da inovação legislativa que criou a cláusula geral dos negócios jurídicos processuais atípicos, prestigiando a autonomia da vontade e mitigando o processualismo processual; b) entende que não há vinculação do juiz ao pacto, quando houver modificação do substrato fático; c) considera que o juiz não é parte no negócio jurídico processual bilateral; d) o negócio jurídico deve ser interpretado de forma restritiva, a fim de que não sejam subtraídas da apreciação do judiciário questões que transbordem do negócio entabulado entre as partes.

Releva anotar, que o entendimento de o juiz não pode ser parte no negócio jurídico não é compartilhado por Didier35, para o qual “embora o caput do art. 190 do CPC/2015 mencione apenas os negócios processuais atípicos celebrados pelas partes, não há razão alguma para não se permitir negociação processual atípica que inclua o órgão jurisdicional.”

Como exemplo de negócio jurídico plurilateral atípico, celebrado pelas partes e pelo juiz o autor menciona “a execução negociada de sentença que determina a implantação de política pública.”

Em outro precedente, também originário do Superior Tribunal de Justiça,36 foi dado realce ao dever do magistrado de controlar a validade do negócio jurídico processual, seja de ofício ou mediante requerimento da parte.

Naquele caso, as partes, de comum acordo, haviam protocolizado requerimento pedindo o adiamento de uma audiência. Entretanto, no dia seguinte ao protocolo conjunto, uma das partes ingressou com nova petição, comunicando a revogação de mandato do patrono e pleiteando a manutenção da audiência. A magistrada de piso houve por bem indeferir o primeiro pedido, mantendo a audiência anteriormente agendada.

Ao proferir seu voto, o relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, fundamentou sua decisão consignando que:

[...] Assim, a Juíza a quo, ao indeferir o pedido de adiamento da audiência de instrução e julgamento por conveniência das partes, limitou-se a exercer o controle da validade do negócio jurídico processual e, ao assim proceder, constatou a inexistência de um dos pressupostos de validade, qual seja, a manifestação de vontade não viciada das partes.

Portanto, como bem salientado pelo Tribunal estadual, a convenção das partes para a suspensão da audiência depende de um acordo bilateral, o que não se verificou na espécie, já que a parte contrária se opôs veementemente ao pedido manifestado pela ora recorrente, inclusive revogando o mandato do advogado que havia participado do ato sem a sua autorização e contra a sua vontade. (Grifos meus).

O julgado destaca, ainda, que embora o artigo 200 do CPC, em seu caput, considere que os negócios jurídicos unilaterais ou bilaterais produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais, cabe ao juiz controlar a validade do pacto. No caso, o Tribunal entendeu que houve vício na manifestação da vontade, evidenciado pela posterior petição de uma das partes, em dissonância com anterior pedido juntado pelo seu então patrono.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foi instado a se manifestar sobre a validade do de uma cláusula contida em uma confissão de dívida, que previa a possiblidade de arresto cautelar de ativos financeiros dos executados, em caso de inadimplemento. O julgamento produziu a seguinte ementa, com destaques nossos:

Agravo de instrumento - execução de título extrajudicial - pedido de arresto cautelar de ativos financeiros dos executados - cabimento - instrumento particular de confissão de dívida celebrado entre os contratantes que previa expressamente a possibilidade da providência em caso de inadimplemento - em uma análise perfunctória, reconhece-se a validade do que restou avençado, nos termos do previsto no art. 190 do estatuto processual - a partir do advento do novo CPC, é possível às partes celebrarem negócio jurídico processual, amoldando as normas processuais de acordo com os seus interesses - arresto liminar das contas bancárias de titularidade dos executados autorizado - decisão reformada - recurso provido.” (TJSP;  Agravo de Instrumento 2110723-57.2020.8.26.0000; Relator: Sergio Gomes; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 25ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/11/2020; Data de Registro: 10/11/2020).

O julgado acima é um exemplo claro de um negócio jurídico processual “puro”, pois ajustou alteração no procedimento processual; antecedente, pois elaborado antes da deflagração do processo e pelo qual as partes ajustaram a possibilidade de arresto cautelar em ativos financeiros do devedor, em caso de inadimplência do devedor. Merece reprodução o seguinte excerto do voto condutor, proferido pelo Desembargador Sérgio Gomes, com os nossos destaques:

[...] Nessa quadratura, o que se tem da avença celebrada é que os executados, no caso de inadimplência, concordaram expressamente com as disposições trazidas na cláusula 2.3. do instrumento de confissão de dívida (fls. 12/16) no sentido de autorizar a prática, pelos credores, de atos processuais de constrição antecipados. Referida convenção revela-se compatível com os princípios e garantias constitucionais. Registre-se, por oportuno, que a execução é feita no interesse do credor (art. 797 do CPC), sendo inquestionável que já vem sofrendo prejuízos em razão do inequívoco inadimplemento dos devedores. Ademais, a providência pretendida contribuirá de maneira mais célere para a efetividade do processo executivo, cuja finalidade principal é justamente a expropriação de bens do devedor para a satisfação integral do crédito perseguido.[...]”

Outra questão que desaguou no Tribunal de Justiça de São Paulo37, diz respeito à possibilidade das partes ajustarem sobre a forma de distribuição das custas processuais. Na decisão de piso, o magistrado registrou que “as partes não podem transigir acerca de direito que não lhes pertence, sendo óbvio, porém não fastidioso repetir que as custas (espécie do gênero tributo) pertence ao Estado-membro e não às partes”.

O Tribunal Paulista reformou a decisão monocrática. Ao fundamentar o seu voto, o Relator, Desembargador Airton Pinheiro de Castro, assinalou que “não se vislumbra qualquer impedimento quanto à disposição das partes em relação aos encargos judiciais em aberto, no caso, a serem suportados pelo réu, até porque em plena sintonia com a diretriz da causalidade, tendo em vista ter sido o confesso inadimplemento, a razão de ser da invocação da tutela jurisdicional do Estado.”

Ademais, ao transigirem sobre a quem caberia o ônus do pagamento das custas, as partes não subtraíram do Estado o direito a recebê-las. No mesmo sentido: TJSP;  Apelação Cível 1014255-76.2019.8.26.0196; Relator: Airton Pinheiro de Castro; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/04/2020; Data de Registro: 03/04/2020).

A construção jurisprudencial sobre os negócios processuais atípicos certamente contribuirá para o equilíbrio entre o publicismo processual e o contratualismo, delimitando a abrangência das avenças e delineando a forma do controle de validade dos acordos perante o Judiciário.

Podemos mencionar, an passant, alguns precedentes38 que merecem ser visitados e dos quais podemos extrair relevantes ensinamentos:

  1. entendendo que “as partes podem estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”, reformando a sentença de primeira instância (TJSP -  Agravo de Instrumento 2096470-98.2019.8.26.0000 - Relator Hélio Nogueira - Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado - Data do Julgamento: 01/07/2019); b) Considerando válido “acordo celebrado entre as partes para pagamento da dívida, com oferecimento de imóvel do executado à penhora, anuindo com tanto a sua cônjuge” -  (TJSP -  Agravo de Instrumento 2154319-91.2020.8.26.0000 - Relator Marco Fábio Morsello - Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado - Data do Julgamento); c) Considerando que a inaplicabilidade do artigo 190, do CPC, em cumprimento de sentença, não veda convenção das partes acerca do parcelamento da dívida, nos termos do art. 922, do CPC - (TJSP -  Agravo de Instrumento 2087232-21.2020.8.26.0000 - Relator: Alexandre Coelho - Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado - Data do Julgamento: 20/06/2020); d) Decidindo que “a partir do advento do NCPC, é possível às partes celebrarem negócio jurídico processual, amoldando as normas processuais de acordo com os seus interesses, incluindo redução de prazos processuais. Inteligência do art. 190 do NCPC. Negócio jurídico celebrado entre partes plenamente capazes. Atendimento aos princípios da autonomia privada e do pacta sunt servanda” - (TJSP -  Agravo de Instrumento 2269263-77.2018.8.26.0000 - Relator: Rodolfo Pellizari - Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado -Data do Julgamento: 07/01/2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação de uma cláusula geral de negócios jurídicos processuais, permitindo às partes ampla liberdade na celebração de convenções, que regulem ou modifiquem o procedimento processual, é, sem dúvida, uma das mais importantes inovações no campo do direito processual.

O atual Código de Processo Civil deu maior protagonismo às partes, que agora podem interferir no rito processual, desde que respeitadas as normas de ordem pública e o devido processo legal. Tais mudanças implicam que o Judiciário lance um novo olhar sobre o processo, desapegando-se do rigor publicista, até então dominante. Há que se equilibrar a autonomia da vontade das partes com o dirigismo Estatal, a fim que a tutela jurisdicional se torne mais equânime, célere e efetiva.

Nas palavras de Lima39, “as convenções processuais são meios de pacificação e superação de conflitos e que, justamente por isso, é imperioso que o magistrado tenha postura de deferência também com relação à opção consensual das partes (...)”.

Ao contrário do que possa parecer, com a nova roupagem processual o papel do magistrado não perdeu relevância. Longe disso, cabe ao juiz exercer severo controle de validade dos negócios jurídicos e fim de extirpar nulidades e corrigir distorções, principalmente se as partes estiverem em disparidade no momento da celebração ou se sobrevier considerável alteração fática, em relação ao momento em que se celebrou o acordo.

Repetindo Godinho,40 “(...) é o momento de se compreender que há maturidade cultural suficiente para que o processo passe a ser uma coisa com partes, ou seja, as conquistas do publicismo não excluem o respeito ao autorregramento da vontade das partes.”

O Direito Processual moderno nos mostra que é possível a coexistência de uma maior liberdade procedimental, sem renunciar ao contraditório e ao devido processo legal. Afinal, o processo deve ser o meio pelo qual a tutela jurisdicional possa ser alcançada, de forma mais efetiva e célere e menos beligerante.

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DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. O negócio jurídico processual: um novo capítulo no direito das garantias – o exemplo da propriedade fiduciária. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 67, p. 129-186, 2016.

FERRARI NETO, Luiz Antonio. Limites objetivos e subjetivos à celebração de negócios jurídicos processuais bilaterais no Novo Código de Processo Civil brasileiro e seu controle judicial: tentativa de sistematização. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

GODINHO, Robson Renault. A Possibilidade de Negócios Jurídicos Processuais Atípicos em Matéria Probatória. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 56, abr./jun. 2015

LIMA, Renata Rodrigues Silva. Limites dos Negócios Jurídicos Processuais. Editora Dialética. Edição do Kindle.

YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era?. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios processuais. v. 1. Salvador: JusPodium, 2015.

Sobre o autor
Rodrigo Otávio Coelho de Souza

Advogado - Especialista em Direito Imobiliário e Contratual Pós Graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCC Pós Graduado em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV

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