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A proteção ineficiente dos princípios da moralidade administrativa em razão das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21.

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Agenda 04/04/2023 às 18:18

As alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21, no tocante à Lei de Improbidade Administrativa, alteraram sensivelmente o trato da improbidade administrativa. Condutas antes consideradas ímprobas deixaram de ser penalizadas pela lei. Foram instituídos fer

Introdução.

 

A moralidade administrativa se trata de um direito fundamental caro e absolutamente relevante para qualquer país que pretenda garantir a promoção dos direitos sociais de seus cidadãos. O custo social decorrente da corrupção administrativa é elevado porque impacta diretamente o implemento de políticas sociais que visam reduzir o abismo existente entre as classes sociais. Ou seja, é um instrumento para a concretude da própria igualdade.

No Brasil, a Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA) tinha por escopo a tutela do patrimônio público, inibindo e reprimindo os agentes que praticavam condutas ímprobas. Tamanha a relevância do instrumento que ele permanece vigente há quase vinte anos, prestando relevantes serviços à sociedade brasileira, sem que ele tivesse experimentado grandes alterações. Porém, o Poder Legislativo e o Poder Executivo, sob a bandeira do combate à corrupção, promoverem importantes e nefastas alterações na LIA, por meio da Lei n. 14.230/21, desfigurando quase que por completo o diploma. De norma com viés protetivo do patrimônio público, pretendeu-se criar um diploma de proteção do próprio agente ímprobo.

Importam ao presente artigo as alterações realizadas no art. 11, que tinha por desiderato a tutela dos princípios regentes da administração pública. Tal foi o grau de alteração que se reduziu o artigo antes responsável pelo maior número de condenações de agentes ímprobos, a meras dez hipóteses de difícil ocorrência na praxe forense.

 Todas essas alterações acabam por desnaturar a própria função da LIA e colocam em enorme risco a proteção eficiente da moralidade administrativa como direito fundamental, como tentará se comprovar nos capítulos que seguem.

 

 

1. A moralidade administrativa[1] como direito fundamental.

 

O conceito de moralidade encontra-se impregnada por uma carga ético-moral que antecede ao próprio direito positivo. Aqui interessa o conceito de moralidade qualificado pelo designo público, ou a moralidade administrativa.

O início da sistematização do instituto remonta ao começo do século XX, quando Maurice Hauriou concluiu que a ideia de moralidade administrativa estava umbilicalmente vinculada ao instituto do desvio de poder ou de finalidade. Daí porque a moralidade administrativa decorreria de um conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior do Administração[2]. E essas regras de conduta, antes de subjetivismos, permitiriam um controle objetivo da atuação do agente público, obrigando-lhe não apenas a atuar dentro das balizas da legalidade, mas com fiel atenção à finalidade do ato, que deveria, obrigatoriamente, atender ao interesse coletivo. Como esclarece o doutor Leonardo Simchen Trevisan, citando Hauriou e Giacomuzzi:

 

No pensamento de Hauriou, a moralidade administrativa permitiria o controle jurisdicional da finalidade do ato, ultrapassando-se, com isso, o mero controle da legalidade, que, à época, em face das suas limitações, não poderia adentrar a esfera da discricionariedade do administrador. (GIACOMUZZI, 2002, p. 49-50). Hauriou concebe, ainda, essa moralidade como uma “moralidade objetiva”, ou seja, a ideia de que a Administração Pública deve cumprir uma determinada função, podendo ver declarados, pelo Conselho de Estado, como ilícitos os seus atos cujos motivos não sejam compatíveis com a finalidade geral da função administrativa.  Essa moralidade objetiva constitui o ponto central da ideia de “boa administração”, que, segundo Hauriou, corresponderia à boa-fé do direito civil alemão. (GIACOMUZZI, 2002, p. 68). As noções de “boa administração” e “moralidade administrativa” surgem, assim, como elementos objetivos que permitiriam o controle dos elementos subjetivos da atuação do administrador. (GIACOMUZZI, 2002, p. 82). A moralidade administrativa, como concebida por Hauriou, é uma “moralidade objetiva”, ou seja, uma moralidade própria da Administração Pública, “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração”. (GIACOMUZZI, 2002, p. 84).[3]

 

São a partir dessas ideias de moralidade como conceito de norma de conduta visando a “boa administração” que surge a moralidade administrativa como instituto próprio e delimitado, entendida como uma moralidade objetiva destinada a sindicalizar os atos dos agentes públicos quando do trato com a res publica.

No Brasil, a incorporação do instituto se vê antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, conforme se observa da Lei n. 4.717/65 (Lei da Ação Popular), em seu art. 2º, alíneas “d” e “e”[4]. Todavia, é certo que o instituto ganhou destaque com a Constituição Cidadã.

A partir da Constituição de 1988 a moralidade administrativa foi incorporada como (i) princípio norteador da atuação da administração pública e como (ii) direito fundamental.

No aspecto principiológico, sustenta Hely Lopes Meirelles que

 

a moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art.  37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração”.  Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: “non omne quod licet honestum est”. A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.[5] 

 

Mariano Pazzaglini Filho agrega o seguinte ao conceito de moralidade pública:

 

A moralidade significa a ética da conduta administrativa; a pauta de valores morais a que a Administração Pública, segundo o corpo social, deve submeter-se para a consecução do interesse coletivo. Nesta pauta de valores insere-se o ideário vigente no grupo social sobre honestidade, boa conduta, bons costumes, equidade e justiça. Em outras palavras, a decisão do agente público deve atender àquilo que a sociedade, em determinado momento, considera eticamente adequado, moralmente aceito.[6]

 

Tal definição é compartilhada pelos doutrinadores Celso Antônio Bandeira de Mello[7] e José Afonso da Silva[8] entre outros tantos[9].

Já, no tocante à natureza de direito fundamental da moralidade administrativa, ainda que haja resistência de parte da doutrina em reconhecê-lo como tal, cuida-se de dificuldade aparente e de fácil superação.

Primeiro, porque a moralidade administrativa, já em 1789, foi incorporada como direito natural do homem pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Como assentaram, à época, os representantes do povo Francês

 

tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral (Preâmbulo).

 

Nos artigos 12º[10] e 15º[11] da Declaração, restou previsto o direito natural do homem de exigir dos agentes públicos a prestação de contas de suas atividades e que o exercício do munus publico se desse no interesse da coletividade, desprezando a atuação em proveito pessoal. Isto é, o direito à moralidade pública foi alçado a direito ancestral, emanado da própria natureza humana, independentemente da própria instituição do poder civil.

Segundo, a moralidade pública ascendeu à condição de direito fundamental com o próprio desenvolvimento daquilo que se denominou direitos de terceira dimensão. A partir de 1960, com a superação do olhar individualista do homem, valores humanistas como a fraternidade e solidariedade ganharam protagonismo, fazendo com que se reconhecesse a existência de direitos voltados à proteção ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano[12].

Terceiro, o direito fundamental à probidade administrativa decorre, na Constituição Federal de 1988, como bem destaca Roberto Lima Santos[13], (i) do princípio republicano (art. 1º, caput); (ii) do princípio democrático (art. 1º, par. único); (iii) de seus fundamentos (art. 1º, incisos I a V: soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político); (iv) dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, incisos I a IV: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); (v) da prevalência dos direitos humanos e da defesa da paz nas suas relações internacionais (art. 4º, I e VI); e (vi) dos demais princípios constitucionais administrativos, previstos no caput do art. 37 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).

Ora, a probidade administrativa visa, dentre outras questões, evitar aquilo que se denomina corrupção administrativa: o ato do administrador público praticado em desvio de finalidade ou de poder, em favor próprio ou de terceiro, com prejuízo à coisa pública, seja este material (perda patrimonial) ou imaterial (violação dos princípios e deveres morais). Como oportunamente ponderam Pazzaglini Filho, Rosa e Júnior:

 

a improbidade administrativa, designativo técnico para a denominada corrupção administrativa, promove o desvirtuamento da Administração Pública em vista de promover a afronta aos princípios vetores da ordem jurídica e revelar-se por meio da aquisição de vantagens patrimoniais obtidas com prejuízo do dinheiro público, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, também pelo tráfico de influência no âmbito da atividade administrativa e pelo favorecimento particular de poucos que agem na contramão dos interesses pretendidos pela sociedade, através de favorecimentos ilícitos[14].

 

Ao praticar um ato corrupto, o agente público está contribuindo sensivelmente com a redução do capital ao alcance do Estado, o qual é necessário para a promoção de direitos essenciais do cidadão como a proteção à saúde, o meio ambiente saudável e todos os demais direitos sociais de terceira dimensão previstos na Constituição Federal de 1988. O economista Mauro Paolo, aliás, fez extenso estudo sobre os efeitos nefastos da corrupção na órbita econômica do Estado, concluindo o seguinte:

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[...] Como forma de afetação econômica, a corrupção pode: a) reduzir a efetividade dos fluxos de ajuda por meio da diversificação dos fundos, o que é relevante para o desenvolvimento dos países, b) diminuir a arrecadação de impostos quando isso leva à forma de evasão ou de aplicação indevida da discricionariedade na concessão de isenções e pode mesmo afetar a distribuição orçamentária, c) influir nos contratos de aquisição pública de bens e serviços, gerando uma baixa qualidade da infraestrutura pública e de serviços e, por fim, d) a corrupção pode afetar a composição dos gastos governamentais por meio da escolha de tipos de empreendimentos pelos oficiais do governo que permitam coletar propinas com maior facilidade e manter a situação em segredo.[15]

 

No mesmo sentido, pondera Rogério Pacheco Alves que a corrupção e a improbidade administrativa são fatores impeditivos à implementação plena dos direitos sociais fundamentais, sobretudo nos países subdesenvolvidos, colocando em risco o próprio Estado Democrático de Direito[16].

Ou seja, uma das principais facetas da moralidade administrativa, como já advertiam os revolucionários franceses em 1789, é garantir que o Estado mantenha em seu poder os meios e os recursos necessários para a satisfação de direitos fundamentais e, sobretudo, sociais do cidadão, evitando que agentes em desvio de poder e finalidade se apropriem desses ativos para benefício próprio. Nesse mesmo sentido se manifesta André de Carvalho Ramos, ao referir que

 

esse agir em prol dos direitos humanos é erodido pelas práticas de corrupção, ou seja, para que o homem possa viver uma vida digna com a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais básicas, devem atuar os agentes públicos com probidade, devendo o ordenamento jurídico possuir instrumento para zelar por tal conduta e reprimir, sancionando, os faltosos.[17]

 

A violação à moralidade por parte dos administradores públicos constitui impeditivo à aquisição dos direitos da cidadania e não deve ser analisada sob uma acepção restrita, mas deve ser compreendida como consectário fundamental de observância obrigatória para à aquisição dos direitos constitucionais previstos, a fim de se verificar a ampliação do conceito de cidadania de modo que esta acepção seja retratada na vida prática de todos como “direito a ter direitos”, como precisamente lembra a professora Renata Cristina Macedônio de Souza[18].

Não é por menos que há anos a doutrina faz referência à existência de um verdadeiro direito fundamental à boa administração pública. Juarez Freitas, exímio doutrinador gaúcho, assevera o seguinte sobre o tema:

 

Trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.[19]

 

Em sentido semelhante, Figueiredo Moreira Neto aduz que do princípio da boa administração emana um direito implícito de cidadania, irradiando daí sua feição de direito fundamental:

 

A boa administração, portanto, não é uma finalidade disponível, que possa ser eventualmente atingida pelo Poder Público: é um dever constitucional de quem quer que se proponha a gerir, de livre e espontânea vontade, interesses públicos. Por isso mesmo, em contrapartida, a boa administração corresponde a um direito cívico do administrado – implícito na cidadania.[20]

 

Ainda, apresenta-se oportuno trazer à lume as ponderações realizadas por Ingo Wolfgang Sarlet, renomado jurista na área de direitos fundamentais. Segundo o autor, a Constituição Federal de 1988 consagrou um direito fundamental à boa administração, o qual está amparado principalmente, mas não exclusivamente, no art. 1º, inciso III, que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Para o ilustre doutrinador,

 

uma boa administração só pode ser uma administração que promova a dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, devendo, para tanto, ser uma administração pautada pela probidade e moralidade, impessoalidade, eficiência e proporcionalidade. A nossa Constituição, como se percebe, foi mais adiante. Além de implicitamente consagrar o direito fundamental à boa administração, ela já previu expressamente os critérios, diretrizes, princípios que norteiam e permitem a concretização dessa ideia de boa administração. [21]

 

Como bem observado por Sarlet, o só fato de inexistir na legislação uma previsão textual e expressa acerca do direito à boa administração não engendra a conclusão de que ele não possui acento constitucional. São remansosas a doutrina e a jurisprudência no sentido de se admitir a existência de direitos fundamentais implícitos. O fato de se tratar de um direito implícito apenas faz com que se exija do intérprete a exegese de um ou mais dispositivos para que, desse processo cognitivo, se extraia a efetiva essência da norma. E norma não é, nem nunca foi sinônimo de enunciado normativo, senão decorre dos sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Norma resulta do esforço hermenêutico empregado pelo intérprete.[22] Vale a lembrança das sempre preciosas lições de Canotilho:

 

O programa normativo-constitucional não se pode reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o ‘bloco da constitucionalidade’ a princípios não escritos desde que reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas.[23]

 

Por fim, calha o registro que a União Europeia, em dezembro de 2000, quando da publicação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, acabou por internalizar e positivar o direito fundamental à boa administração, no seu artigo 41º[24].

Nessa ordem de ideias, resulta tranquila a conclusão de que a moralidade administrativa, antes de se tratar de mero princípio orientador-interpretativo, cuida-se de um direito fundamental de todo o cidadão, imanente do direito à dignidade da pessoa humana.

 

 

2. Do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot[25]) como parâmetro de controle de constitucionalidade.

 

Superada a fase histórica centrada no “eu” e a presunção de que as relações individuais são equilibradas, a sociedade e a própria noção de Estado evoluíram. O desiquilíbrio das relações individuais se agravou. Novos direitos foram apreendidos da realidade. Noções de coletividade e de fraternidade trouxeram novos coloridos para a definição de bens jurídicos. O plural era tão senão mais importante do que o singular no contexto contemporâneo de sociedade. Aos direitos fundamentais individuais, portanto, agregaram-se os direitos fundamentais transindividuais, cujo traço característico é justamente a compreensão de que o ser humano é um ser social e de que há bens e valores que se sobrepõe ao interesse individual, devendo por todos ser preservados. 

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Contudo, enquanto ao Estado bastava inicialmente a adoção de uma postura negativa (garantismo negativo) para a tutela de direitos e liberdades individuais, a complexidade da dinâmica social, agravada pela disparidade econômico-social e pela existência de poderes sociais que atuam no plano da realidade de forma desequilibrada, fez despertar a necessidade de que o Estado passasse para uma atuação proativa, seja para garantir o próprio exercício dos direitos e liberdades individuais, seja para albergar os “novos direitos” reconhecidos (de terceira dimensão). Assim, ao papel clássico do Estado (de respeito às garantias individuais por abstenção) agregou-se uma atuação destinada a proteger e concretizar esses direitos, tendo por objetivo a promoção da igualdade social e a dignidade da pessoa humana em sentido amplo.

É aqui que reside o núcleo do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot), outra faceta do princípio da proporcionalidade: prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de parte dos particulares ou do próprio Estado.

Logo, a proibição de proteção deficiente pode ser definida, segundo Carlos Bernal Pulido, como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, a partir do qual poderá ser constatado se um ato estatal viola ou não um direito fundamental de proteção. Trata-se de compreender, assim, o duplo viés do princípio da proporcionalidade: de proteção positiva ou de proteção de omissões estatais. Em outras palavras, tem-se que a inconstitucionalidade pode advir de um ato excessivo do Estado, ou pode advir de uma proteção insuficiente de um direito fundamental por parte deste (e. g., quando o Estado abre mão de determinadas sanções cujo objetivo é a proteção de direitos fundamentais). Esta dupla face do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos do poder público à Constituição, e tem como consequência a redução do espaço de conformação do legislador[26].

É imperioso reforçar que há direitos que exigem uma postura ativa por parte do Estado para fins de suas salvaguardas e para sua própria promoção. Prestigiar os direitos fundamentais é dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é defeso ao Estado omitir-se desse mister. Daí porque o princípio da proibição da proteção deficiente também alcança as condutas omissivas ou insuficientes do Estado à tutela desses direitos. Nas palavras de Ingo W. Sarlet:

 

O Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção.[27]

 

 

Em sentido muito semelhante, Alexandre Moreira Van Der Broocke conclui que

 

 

o dever de proteção, já consagrado pela jurisprudência e pela doutrina em relação aos direitos fundamentais, deve ser levado em consideração, também, em relação aos demais direitos constitucionais, posto que não há espaço de discricionariedade para a atuação do legislador em relação à efetivação do direito previsto na Lei Maior. Ou seja, se existe previsão constitucional que respalde um direito qualquer, fundamental ou não, é imperativo que o Estado-Legislador desempenhe seu mister, conferindo-lhe o regramento normativo infraconstitucional que possibilite sua plena efetivação. Agindo de forma diversa, seja pela sua postura omissiva (untermassverbot) ou comissiva (übermassverbot), o legislador incide em antinomia inconstitucional. Ao que parece, a corrente garantista se mostra mais condizente com os desafios que se colocam diante do Estado Democrático de Direito, uma vez que nela a Constituição da República se reveste de maior coercibilidade em relação não só ao Estado-Legislador, como também em face dos demais poderes. Sendo assim, partindo-se da premissa de que o dever de proteção (schutzpflicht) é condição de possibilidade da incidência da proibição da proteção deficiente (untermassverbot), e que, segundo o viés garantista, pode-se afirmar que o dever de proteção se estende para além dos direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente abrange os direitos constitucionais em geral.[28]

 

Dos conceitos e definições fixadas, pode-se concluir pela existência de uma relação simbiótica entre o princípio da proibição da proteção deficiente e o ato de legislar. Ainda que caiba ao legislador, por excelência, o dever constitucional de estabelecer a forma como a proteção e promoção dos direitos fundamentais irá ocorrer (o que se dá, via de regra, por meio de leis), esse exercício terá que ser realizado dentro das balizas constitucionais, funcionando o princípio da proibição de proteção deficiente como um limite mínimo a ser atentado por aquele. Juarez Freitas equaciona bem a questão:

 

Guardando parcial simetria com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbotes), a medida implementada pelo Poder Público precisa se evidenciar não apenas conforme os fins almejados (Ziekonformität), mas, também, apta a realizá-los (Zwecktauglichkeit). Igualmente se mostra inadequada a insuficiência ou a omissão antijurídica causadora de danos.[29]

 

Aduza-se que sequer há cogitar de interferência indevida na atividade legislativa. O legislador, embora investido pelo povo, não goza de liberdade absoluta para o exercício do seu mister. Deve irrestrita atenção aos preceitos constitucionais no desenvolvimento de sua atividade, a qual, como já exaustivamente exarado, consiste na busca pela promoção e proteção dos direitos fundamentais. Como bem pondera Juliana Venturella Nahas Gavião:

 

Desse modo, em não havendo uma proteção normativa ao direito fundamental, no que tange à sua dimensão objetiva (ou seja, como imperativo de tutela), verifica-se ato de omissão estatal flagrantemente inconstitucional, porquanto impedirá a realização e o desfrute do direito fundamental por seu titular.  Em outras palavras, não existe liberdade absoluta de conformação legislativa, ainda que deva ser reconhecido o espaço que é conferido ao legislador para adaptar os mandamentos constitucionais. E isso exsurge da própria interpretação sistemática do direito, que ensina que os atos estatais devem ser permanentemente pautados pelas diretrizes constitucionais, notadamente na quadra da história e da evolução dos direitos fundamentais que se encontra a humanidade.[30]

 

Em assim não agindo, incorre em inconstitucionalidade por não tutelar, de forma eficaz, os direitos postos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais[31]

Outrossim, é assente que a democracia não se expressa somente por meio do princípio majoritário, esse considerado a maioria necessária no Congresso Nacional para a aprovação de atos legislativos. A mesma Constituição Federal que garante o direito das maiorias põe a salvo e em igualdade de relevância e importância os direitos das minorais. E, havendo sobreposição indevida e/ou ilegítima de um sobre outro, é inerente à função do Poder Judiciário reequilibrar a balança dando voz àqueles que a tiveram subtraída de forma irregular. Nesse sentido, é a ponderação realizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso ao assentar que é da competência do Poder Judiciário promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Nas suas palavras:

 

 

o déficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa nas campanhas, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação.  O papel do Judiciário, e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais deve ser resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso; sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, exercendo preferências políticas de modo voluntarista em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional.[32]

 

Nessa ordem de ideias, não transparece dificuldade alguma em se valer do princípio da proibição da proteção deficiente para fins de realizar controle de constitucionalidade sobre normas editadas pelo legislador que não observam os fins almejados (Ziekonformität), como também não se apresentam aptas a realizá-los (Zwecktauglichkeit).

 

3. Da inconstitucionalidade do art. 11 da Lei n. 8.429/92 com redação dada pela Lei n. 14.230/21. Da vedação do retrocesso social. Da proteção ineficiente da moralidade administrativa enquanto direito fundamental. Do descumprimento da ordem de penalização emanada da Constituição Federal.

 

As alterações promovidas pelo Poder Legislativo no art. 11 da Lei n. 8.429/92 foram sensíveis, refletindo diretamente na proteção inadequada da moralidade administrativa e seus princípios norteadores.

Primeiro, é de se observar que o art. 11 da Lei n. 8.429/92 visa tutelar a observância aos princípios regentes da Administração Pública, princípios esses fundados na moralidade administrativa. A Constituição Federal, no caput do art. 37, estabelece que a Administração Pública será guiada pelos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ou seja, cuida-se de norma programática que impôs ao legislador derivado a criação de comandos e normas destinadas à proteção desses valores constitucionais. Aliás, o constituinte originário impôs, no âmbito interno, verdadeiro mandado de penalização do agente ímprobo em seara não-penal (§ 4º do art. 37 da Constituição Federal - CF).

Logo, a alteração legislativa realizada na redação do art. 11, que limita drasticamente as hipóteses de proteção desses princípios – uma vez que o Poder Legislativo teve a “cautela” de tornar as hipóteses do art. 11 numerus clausulus ao inserir a oração “caracterizada por uma das seguintes condutas” -, dificultando sobremaneira a inserção de condutas usualmente praticadas por agentes ímprobos e que, antes, eram sistematicamente apuradas pelos órgãos competentes e reprimidas pelo Poder Judiciário.

Aduza-se que o princípio que impede o retrocesso social tem por particular característica ser dirigido especialmente aos Poderes Executivo e Legislativo[33], visando barrar adoção de políticas públicas e leis que coloquem os cidadãos em desvantagem social ao atual estágio de evolução comunitária. Como sustenta Luís Roberto Barroso, embora se trate de princípio implícito, ele encontra-se incorporado no texto constitucional, fazendo nascer para o cidadão um direito subjetivo negativo, não podendo ser suprimido. Em síntese: Por este princípio [proibição do retrocesso social], que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.[34]

 

Ingo Wolfgang Sarlet, em lúcida ponderação acerca do princípio da vedação do retrocesso social, assenta que

 

não é possível, portanto, admitir-se uma ausência de vinculação do legislador (assim como dos órgãos estatais em geral) às normas de direitos sociais, assim como, ainda que em medida diferenciada, às normas constitucionais impositivas de fins e tarefas em matéria de justiça social, pois, se assim fosse, estar-se-ia chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição.[35]

 

Não bastasse a inconstitucionalidade pelo retrocesso social, as alterações realizadas na lei não superam o juízo de proporcionalidade que é necessário para a avaliação da compatibilidade das alterações com a ordem constitucional porque:

(i) carecem de motivação idônea, uma vez que formuladas no desiderato de salvaguardar agentes públicos que atuam em descompasso com regras, normas, princípios e direitos fundamentais vinculados à moralidade administrativa. Ou seja, se tutelou o infrator ao invés de se proteger o bem jurídico guarnecido pela Constituição Federal;

(ii) o Poder Legislativo não demonstrou ou justificou adequadamente a necessidade da redução do alcance da norma penalizadora modo a otimizar a proteção suficiente da moralidade administrativa. Aduza-se que a invocação genérica de que haveria abusos por parte dos membros do Ministério Público no ajuizamento de ações fundadas no art. 11 não se apresenta como fundamento idôneo a legitimar democraticamente a mudança legislativa. A uma, porque se cuida de argumento revanchista, sem embasamento legal ou moral; a duas, cabe ao Poder Judiciário realizar o controle do uso temerário do direito de ação; a três, além do Judiciário, o próprio ordenamento já possui instrumentos para inibir essa prática, seja por meio da aplicação de multa por litigância de má-fé, seja por meio da Lei de Abuso de Autoridade (13.869/19); a quatro, é antidemocrático obstaculizar o próprio manejo da ação judicial visando a tutela do coletivo sob um pseudoargumento de abuso;

(iii) a drástica redução do alcance da norma viola o princípio da proporcionalidade em sentido estrito e engendra retrocesso social na proteção da moralidade administrativa enquanto direito fundamental. O legislador partiu de uma premissa equivocada quando da elaboração do texto da lei, concluindo que haveria condutas anteriormente previstas no tipo que seriam muito vagas e imprecisas, afora, supostamente, albergar meras irregularidades administrativas que não justificariam a aplicação da Lei de Improbidade. Contudo, o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça há anos é no sentido de que a exegese das normas previstas no art. 11, considerada a gravidade das penas previstas na lei, deve ser realizada cum granu salis, máxime porque uma interpretação ampliativa poderá acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público, preservada a moralidade administrativa e, a fortiori, ir além do que o legislador pretendeu . Logo, ao que se percebe, nunca se verificou excessos por parte na interpretação adequada e constitucionalmente legítima do contido no antigo art. 11 pelo Poder Judiciário.

Ademais, também não atentou o legislador para o fato de que o art. 11 visa proteger os princípios sensíveis da administração pública, os quais possuem elevada carga normativa, valorativa e amplo espectro de incidência.

Por óbvio, é inviável que o legislador discrimine absolutamente todas as formas de condutas que importem em violação aos princípios da administração pública. A capacidade inventiva do ser humano não é resumível em palavras. O Direito é mera sombra da realidade, sempre a acompanhando com atraso. No mesmo sentido, são as lições Jürgen Habermas, ao afirmar que

 

uma norma “abrange” seletivamente uma situação complexa do mundo da vida, sob o aspecto da relevância, ao passo que o estado de coisas por ela constituído jamais esgota o vago conteúdo significativo de uma norma geral, uma vez que também o faz valer de modo seletivo. Essa descrição circular caracteriza um problema metodológico, a ser esclarecido por toda teoria do direito.[36]

 

Daí porque se apresenta relevante para tais situações que elas sejam albergadas por normas abertas, viabilizando que o intérprete atue na proteção da moralidade administrativa, sempre a partir de uma leitura constitucional do alcance da norma. A utilização de um tipo aberto para a tutela de princípios (normas de elevada carga valorativa) viabiliza o constante e permanente controle das mutações sociais pelos tribunais, maximizando a proteção ao direito fundamental à moralidade administrativa. Segundo muito bem pondera Fábio Medina Osório, a previsão de um tipo aberto na proteção dos princípios da Administração Pública (i) permite-se ao intérprete grande mobilidade, atualizando os textos legais diante dos fatos e dos velozes acontecimentos e mutações sociais, dentro das exigências técnicas de fundamentação e aplicação das normas aos casos concretos; (ii) outorga-se flexibilidade normativa aos mecanismos punitivos, de tal modo a coibir manobras formalistas conducentes à impunidade, com o que se reduz o campo da impunidade e das decisões absolutórios injustas, um dos grandes obstáculos ao combate à corrupção; (iii) acompanha-se a dinâmica da corrupção e dos fenômenos de má gestão pública.[37]

Rafael Munhoz de Mello, igualmente, considera perfeitamente conciliável com o Direito Administrativo Sancionador a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, mediante a adoção da técnica de tipificação indireta e das normas em branco. Sustenta o festejado autor que


 

O princípio da tipicidade não veda a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, mas, por outro lado, seu uso não afasta a exigência de tipicidade. Permanece sendo necessário, quando utilizando conceito indeterminado, que o comportamento proibido seja descrito com clareza e objetividade, de modo a que os particulares possam evitar a aplicação da sanção administrativa. É admitida no direito administrativo sancionador a tipificação indireta.

Na tipificação indireta o dispositivo legal que prevê a infração administrativa faz referência a outro dispositivo, no qual foi estipulada uma obrigação ou proibição, cuja inobservância caracteriza ilícito administrativo. Desde que seja possível identificar a conduta proibida, a tipificação indireta não viola o princípio da tipicidade. A tipificação global ou residual, através da qual se pretende tipificar como conduta sujeita à aplicação de sanção administrativa todo e qualquer descumprimento de norma jurídica, sem qualquer especificação, vai de encontro ao princípio da tipicidade. Na tipificação global utiliza-se uma cláusula onicompreensiva, que abrange todos os comportamentos que violem dispositivo normativo – qualquer dispositivo. Não há óbice no direito administrativo sancionador à edição das chamadas normas em branco.[38]

 

 

Em sentido muito próximo, Alexandre Santos de Aragão, tratando do princípio da legalidade a partir de uma concepção mais contemporânea, denomina o fenômeno de legalidade principiológica ou legalidade formal axiológica no sentido de que as atribuições de poderes pela lei devem, por sucintas que sejam, ser pelo menos conexas com princípios que possibilitem o seu controle; princípios aqui considerados em seu sentido amplo, abrangendo finalidades, políticas públicas, standards etc.[39]

Sob uma outra ótica, ainda se pode identificar a inconstitucionalidade da alteração legislativa por violação ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito por não se ter atentado aos princípios interpretativos da Constituição, os quais são de observância obrigatória para adequada conformação da legislação infraconstitucional com a ordem jurídica.

Com efeito, a intepretação das normas jurídicas constitucionais reclama do exegeta (e aqui se encontra incluído o legislador ao exercer seu mister) aquilo que se denomina de máxima efetividade. Ou seja, normas que tutelam direitos fundamentais – como a moralidade administrativa – merecem uma interpretação que lhes garanta máxima eficácia social possível. Não há como concluir como razoável e proporcional uma norma legislativa que deixa de tutelar integral e adequadamente a moralidade administrativa, quanto mais diante dos reflexos sociais nefastos que a corrupção administrativa enseja.

Da mesma forma, o princípio da força normativa da Constituição impõe ao legislador e a sociedade (considerando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais) que atentem para a realidade social na qual estão inseridos e façam guarnecer aqueles valores que são caros para o povo em dado momento histórico. A sociedade clama pelo combate à corrupção administrativa. As manifestações sociais dos últimos anos são provas mais do que fidedigna disso. Assim, a sobrevinda de uma alteração legislativa que desprotege esse valor social tão caro viola o princípio da força normativa da Constituição.

Logo, se vê que o artigo 11 da LIA que antes tinha o condão de viabilizar que condutas graves e claramente violadoras dos princípios da moralidade administrativa sofressem a tutela jurisdicional na seara da improbidade administrativa foi quase que completamente esvaziado, encerrando, atualmente, apenas dez hipóteses de condutas ímprobas que são de difícil ocorrência na praxe forense. Ou seja, a alteração legislativa, no lugar de garantir a máxima efetividade do direito fundamental e dar concretude à força normativa da Constituição Federal, teve por escopo reduzir o alcance da norma a uma fração de situações que sequer são de corrente frequência, incidindo também por esse enfoque em inconstitucionalidade.

 

Conclusão

 

A moralidade administrativa cuida-se de um direito fundamental com assento constitucional, demandando, portanto, máxima proteção e promoção.

A Lei n. 14.230/21, ao alterar a redação do art. 11 da Lei n. 8.429/92, ao invés de enaltecer a tutela da moralidade, reduziu drasticamente seu campo de incidência deixando desguarnecidas situações corriqueiras e de graves reflexos para a Administração Pública.

A alteração ora em análise enfraquece o combate à corrupção administrativa, prestigia o agente infrator, o que acaba por violar os princípios da proibição do retrocesso social e da proibição da proteção deficiente, afora incentivar a prática de atos de improbidade.

Por todo o exposto, não restam dúvidas acerca da inconstitucionalidade da alteração legislativa que transformou o tipo previsto no art. 11 de uma cláusula aberta em numerus clausulus. Veja-se que, por exemplo, a prosperar a redação atual do artigo, condutas graves como advocacia administrativa, assédio sexual e moral, no âmbito da administração pública, que não gerem dano ao erário ou enriquecimento ilícito do agente, ficarão excluídas do alcance da Lei n. 8.429/92. Cuidam-se de apenas três exemplos de condutas corriqueiras na prática forense (dentre tantos outros) que bem demonstram a gravidade e o impacto que a alteração legislativa engendrará na tutela da moralidade.

Desse modo, propõe-se a declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 11, repristinando a redação primitiva, com a única ressalva que não mais persiste a modalidade culposa, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei n. 8.429/92.

 

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