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Legítima defesa da posse em invasões

Agenda 06/04/2023 às 06:43

Nos últimos dias houve considerável aumento da insegurança no campo e invasões de propriedade privada, motivadas por movimentos sociais ideológicos fazendo política com as próprias mãos, exercendo autotutela primitiva na tomada de territórios, motivo pelo qual são necessários esclarecimentos sobre a autotutela possessória, como forma complementar de proteção da posse.

São conhecidos os três níveis de ofensa à posse, ou seja: a ameaça, a turbação e o esbulho, protegidos, respectivamente, pelo interdito proibitório, a manutenção de posse e a reintegração de posse, sendo estas medidas judiciais de proteção da posse.

Entretanto, ainda é legítimo considerar como medida de proteção possessória, o exercício da autotutela possessória, exercido em âmbito extrajudicial, em outras palavras, a legítima defesa da posse, o contra-ataque do possuidor do imóvel em repúdio à agressão atual, fazendo prevalecer seu direito perturbado, doutrinariamente dividida entre legitima defesa e desforço necessário imediato, sendo a primeira com a posse ameaçada e a segunda com a posse perdida.

O §1º do artigo 1.210 do Código Civil permite a legítima defesa de posse com o seguinte texto: "O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse". Além disso, o §2º do mesmo artigo diz que "Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa".

Por isso são necessárias algumas considerações sobre este artigo de lei e o que entende a jurisprudência para que este direito não seja exercido com excesso ou mal interpretado, pois as expressões "própria força", "faça logo" e "indispensável", acabam sendo esclarecidas pelos livros de direito e pelos casos julgados nos tribunais, a jurisprudência.

Com relação à expressão "própria força", significa que a legítima defesa de posse deve ser realizada pelo próprio possuidor ou proprietário, o que se estende aos seus funcionários, familiares, amigos e outros que o ajudarão, sem auxílio do Estado.

Já a expressão "faça logo", significa que deve ser exercida a legítima defesa possessória imediatamente após a turbação ou esbulho possessórios, uma agressão atual não havendo um tempo determinado por lei.

Vejamos o exemplo do seguinte caso julgado onde o tribunal de justiça baiano entendeu como ilegal a autotutela possessória em situação em que já havia invasão comprovada há mais de dois anos, ajuizada ação possessória:

"EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO/MANUTENÇÃO DA POSSE. AUTOTUTELA DA POSSE. ABUSO CONFIGURADO. MANUTENÇÃO DA ORDEM PARA DESOCUPAR O IMÓVEL VOLUNTARIAMENTE NO PRAZO DE 30 DIAS. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O Agravante já havia ingressado com Ação de Reintegração de Posse em maio de 2015, na qual afirmou ter sido esbulhado em sua posse no início de 2013 pelos Agravados. Tendo sido o pleito indeferido em julho de 2016, presume-se que de fato utilizou das próprias forças para reaver o imóvel em setembro de 2016. Tal fato deu origem à presente Ação de Reintegração de Posse, proposta em novembro de 2016, na qual os Agravados buscam ser reintegrados na posse do imóvel. 2. O caso dos autos apresenta flagrante necessidade de desestímulo à autotutela contrária ao direito, tendo sido correta a decisão de reintegrar os Agravados na posse do bem até ser possível, no curso da instrução processual, decidir quem é o legítimo possuidor do imóvel. 3. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E IMPROVIDO." (TJ-BA - AI: 00067570520178050000, Relator: CARMEM LUCIA SANTOS PINHEIRO, 5ª CAMARA CÍVEL, Data de Publicação: 12/7/2017).

E finalmente a expressão "além do indispensável", significa dizer que os meios empregados devem ser proporcionais à agressão, caso contrário gera responsabilização civil [1] e penal, ou seja, deve ser indispensável para manter ou restituir o possuidor na sua posse, mas também não fica claro na legislação quais os meios necessários, ou uma forma determinada, o que se compreende pela proporcionalidade e gravidade dos meios empregados.

A legítima defesa da posse, portanto, é remédio jurídico que deve ser utilizado na hipótese de o possuidor ainda não haver sido privado de sua posse, não sendo admitido pelos tribunais, o seu exercício contra esbulho já consumado, onde se considera a prática de uma conduta ilícita.

É uma linha tênue entre vários preceitos constitucionais como a dignidade humana, a função social e o direito de propriedade, para que seja exercida a legítima defesa de posse.

Partimos da premissa de que o Estado está obrigado a garantir a todos os brasileiros a inviolabilidade do direito à segurança pessoal e à propriedade particular, sendo que a propriedade é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela pode entrar sem consentimento (artigo 5º caput e incisos XI e XXII da Constituição), além de que a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos (artigo 144 da CF), exercida pelos órgãos competentes.

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Por isso, comprovada utilização de todos os meios necessários, justifica-se a autotutela, onde o indivíduo substitui o Estado por um lapso temporal transitório.

Importante comentar que em algumas situações a omissão estatal no cumprimento dos mandados de reintegração ou manutenção de posse podem levar o Estado a indenizar o particular:

"PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO DO PARANÁ. INVASÃO DE IMÓVEL RURAL POR INTEGRANTES DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). DEMORA NO CUMPRIMENTO DE MANDADO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. RESSARCIMENTO DEVIDO. PRECEDENTES. 1 - O Estado tem por obrigação e incumbência manter a ordem jurídica e assegurar a paz social, através do desenvolvimento de suas atividades administrativa, legislativa e jurisdicional. 2 - Sendo a demora no cumprimento do mandado de reintegração de posse a causa direta e imediata dos prejuízos, devidamente comprovados, sofridos pelos autores/apelantes, evidencia-se a responsabilidade civil objetiva do Estado (artigo 37, §6º, CF e artigo  43, CC/02). 3 - É devida a indenização por danos morais e materiais (lucros cessantes e danos emergentes) no caso dos autos, ante a demora do Estado no cumprimento de mandado de reintegração de posse, em decorrência da invasão de imóvel rural por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 4 - O 'quantum' da indenização por danos materiais deverá ser apurado em processo de liquidação de sentença por artigos (arts. 603 e 608, CPC). 5 - Apelação provida". (TJ-PR - AC: 1439227 PR Apelação Cível - 0143922-7, relator: Hirosê Zeni, Data de Julgamento: 12/11/2003, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 1/12/2003 DJ: 6509).

Enfim, as invasões chamadas de ocupação ou retomada, sob falsa premissa de agilizar processos de demarcação ou desapropriação são atos ilegais, de forma que cabe somente ao Estado, através de procedimentos próprios, cumprir respectivos ritos, mas nunca por vontade de grupos ou movimentos, sendo a invasão considerada crime tipificado pelos artigos 161, §1º, inciso II e 202 do Código Penal.


[1] APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS — INVASÃO DE MOVIMENTO AGRÁRIO — LEGÍTIMA DEFESA DA POSSE — INEXISTÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. (TJ-MS — AC: 3711 MS 2005.003711-2, relator: desembargador Joenildo de Sousa Chaves, Data de Julgamento: 13/05/2008, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: 20/06/2008).

RESPONSABILIDADE CIVIL. Autotutela da posse Abuso configurado Reação que não foi imediata Posse exercida pelo autor já consolidada Réu que, de forma desproporcional, demoliu o imóvel, colocando os pertences do autor na calçada Presunção Hominis para a fixação dos danos materiais adequada à espécie Danos morais configurados, cujo valor fixado na sentença, correspondente a R$ 5.000,00, mostra-se razoável - Apelo desprovido. (TJ-SP — APL: 00521629420088260000 SP 0052162-94.2008.8.26.0000, relator: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 05/02/2014, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/02/2014).

Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

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