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Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista

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Agenda 08/09/2007 às 00:00

3.NORMA JUSTRABALHISTA

3.1.Origem do direito do trabalho

O Direito do Trabalho é bastante recente se comparado aos demais ramos do Direito. Sua formação vai do final do século XIX ao início do século XX. Estudiosos do Direito costumam apontar como marco inicial de sua estruturação e organização o ano de 1848, quando houve a publicação do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels e as primeiras revoluções socialistas, ocorridas principalmente na França, mas também na Áustria e nos estados alemães, checos, húngaros e italianos.

Através do texto do Manifesto é possível compreender um pouco a forma como os trabalhadores da época percebiam sua condição na sociedade, o que explica em certa medida porque àquele tempo formou-se um ramo autônomo do Direito exclusivamente para a proteção do trabalhador. Já no preâmbulo do texto afirmam seus autores:

Toda sociedade até aqui existente repousou, como vimos, no antagonismo entre classes de opressores e classes de oprimidos. Mas, para que uma classe possa ser oprimida, é preciso que lhe sejam asseguradas condições nas quais possa ao menos dar continuidade à sua existência servil. O servo, durante a servidão, conseguiu tornar-se membro da comuna, assim como o burguês embrionário, sob o absolutismo feudal, conseguiu tornar-se burguês. O operário moderno, ao contrário, ao invés de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais, caindo inclusive abaixo das condições de existência de sua própria classe. O operário torna-se um pobre e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza. Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar por muito mais tempo sendo a classe dominante da sociedade e de impor à sociedade, como lei reguladora, as condições de existência de sua própria classe. É incapaz de dominar porque é incapaz de assegurar a existência de seu escravo em sua escravidão [...] (MARX; ENGELS, 2003, p. 56).

E sobre seus ideais de revolução diz:

No princípio lutam operários isolados, depois os operários de uma mesma fábrica, a seguir os operários de um mesmo ramo da indústria [...]. Essa organização do operário em classes e, com isso, em partido político [...] aproveita-se das divisões internas da burguesia para forçá-la a reconhecer, sob forma de lei, certos interesses particulares dos operários. Foi assim, por exemplo, com as leis das dez horas de trabalho na Inglaterra (MARX; ENGELS, 2003, p. 54).

Do texto, independente da concordância ou do desacordo com os ideais revolucionários comunistas, pode-se extrair alguns fatos históricos essenciais à formação e desenvolvimento do Direito do Trabalho.

Em primeiro lugar, há o fato econômico: os autores comparam o operário da indústria ao escravo antigo, ao servo da Idade Média e ao burguês do final daquele período. O fato histórico nítido nestas comparações é a modificação dos moldes de produção econômica da sociedade. O Direito do Trabalho é um fenômeno totalmente dependente do modo de produção capitalista, no qual há homens juridicamente livres, isto é, o trabalhador não é propriedade como o escravo antigo, nem está preso a terra como o servo medieval.

Sendo livre, o trabalhador negocia sua força de trabalho com o detentor dos meios de produção, o empresário, que Marx chama de burguês. Este negócio, a relação de trabalho juridicamente livre, é pressuposto do Direito Trabalhista. Tanto o é que no Brasil só se iniciou a fase embrionária deste ramo jurídico após a Lei Áurea, que aboliu a escravidão moderna e deu espaço para que a relação de trabalho capitalista viesse a ser a forma preponderante dentro da produção econômica.

O segundo fato que se revela é a decadência social em que se encontrava a classe trabalhadora. Nos primeiros séculos da produção capitalista, o trabalhador não possuía condições mínimas de dignidade. Não havia limites para as jornadas de trabalho, o labor infantil era amplamente empregado, não havia segurança nas indústrias, garantias de emprego não existiam e os salários pagos mal eram suficientes para a subsistência da família do trabalhador. À medida que a incipiente indústria moderna passou a enfrentar a concorrência nacional e estrangeira, que precisou reduzir seus preços para sobreviver e que encontrou cada vez mais mão-de-obra disponível, as condições de trabalho recrudesceram até atingir o nível mais baixo da miséria humana.

A pobreza, à época, chegou a níveis graves, com grandes massas de trabalhadores vendendo sua força produtiva e formando bolsões de miséria nas grandes cidades industriais européias. Cerca de cinqüenta anos depois do Manifesto, atestando o mesmo estado de miséria das populações, mas chamando-as à paciência e exigindo das classes dominantes um mínimo de amor cristão, a Igreja Católica editou a encíclica Rerum Novarum. Desde as esquerdas mais revolucionárias até o conservadorismo destro católico, a percepção da calamidade social que se formava era uniforme.

O último fato histórico que pode ser percebido é político. A organização trabalhadora em torno de suas reivindicações comuns foi um fato político decisivo para a estruturação do Direito do Trabalho. Até então, a história tinha testemunhado pouca vezes a classe trabalhadora se organizar e afrontar a elite detentora dos meios de produção. O fato de que os trabalhadores eram livres, pelo menos juridicamente, foi decisivo para que eles se unissem em busca de seus objetivos.

A situação política de enfrentamento se tornou cada vez mais concreta, o que exigiu respostas do Estado. Em princípio, a mera repressão dos movimentos trabalhadores foi a solução encontrada. Todavia, repressão policial só é eficiente em conflitos pontuais e o caso se tratava de um problema estrutural da sociedade. Com o aprofundamento da miséria e a intensificação do conflito político, percebeu-se que a concessão de segurança mínima para os trabalhadores era um meio mais eficaz de arrefecer os ânimos políticos, além de ser mais adequado ao Estado que tem por fundamento a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Surgiram assim as primeiras leis de proteção do trabalhador. Primeiramente leis esparsas e desconectas. À medida que o volume legislativo sobre trabalho começou a crescer, buscou-se também sua sistematização. Desta forma, com uma legislação cada vez mais abundante e mais e mais distinta do Direito Civil, de onde se originou, o Direito do Trabalho formou-se como ramo jurídico independente.

Neste ponto, Marx e Engels se enganaram quanto a suas previsões históricas. Acreditavam eles que o capitalismo seria incapaz de sobreviver, porque seria "incapaz de assegurar a existência de seu escravo em sua escravidão" (MARX; ENGELS, 2003, p. 57). Todavia, o Estado burguês foi capaz de responder aos clamores da época, garantindo condição minimamente digna ao trabalhador sem quebrar a essência de sua estrutura produtiva. A assistência social em seu sentido mais amplo, dentro da qual se insere o Direito do Trabalho, permitiu que o sistema produtivo se mantivesse e que o trabalhador pudesse ter uma condição minimamente digna.

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Um fato histórico posterior, que também contribuiu bastante para a consolidação do Direito do Trabalho, foi outra conseqüência da luta política comunista. A Revolução Russa de 1917 e a posterior formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas lançaram ao mundo capitalista um desafio: a alternativa ao modo de produção capitalista era então uma realidade, não mais apenas um delírio de comunistas desordeiros. Este foi um dos principais motivos do crescimento do Estado de Bem Estar Social (e do Direito do Trabalho) após as duas Grandes Guerras. Negar ao trabalhador uma existência digna neste momento seria convidá-lo à revolução, que parecia tão bem sucedida na Europa Oriental e na Ásia.

Assim, em meio a um contexto econômico, político e social propício, o Direito do Trabalho surgiu como um dos resultados da necessidade de proteção do trabalhador. Esta veio a ser então sua principal marca: a proteção do trabalhador. Proteção contra o estado de miséria em que se encontrava, proteção contra a sua natural fragilidade dentro do sistema econômico capitalista, proteção contra os ideais revolucionários socialistas. Por isso, falar em Direito do Trabalho implica em falar em Direito para proteção do trabalhador contra o estado social, econômico e político que já o assolou na história e ao qual não se admite mais que ele volte.

3.2.Princípio protetor

Como ramo autônomo da Ciência Jurídica, o Direito do Trabalho possui princípios próprios que orientam seus operadores, desde a formação de suas normas até sua materialização em atos concretos. Pela origem deste ramo jurídico e por sua natureza, um de seus principais preceitos é o Princípio Protetor. Exatamente porque o Direito Laboral nasceu em defesa do trabalhador, buscando encaixá-lo dentro do sistema de produção capitalista, protegendo-o de sua condição econômica, social e política indesejada, foi que a proteção do trabalhador foi alçada a princípio essencial.

O Princípio Protetor traz ao Direito a situação fática desfavorável do trabalhador e busca corrigi-la: por ser o elo frágil do processo produtivo, o Direito deve garantir ao obreiro meios especiais de defesa, a fim de equipará-lo ao empresário burguês. É o fundamento da isonomia: os desiguais devem ser tratados desigualmente, para se igualarem idealmente. A história já demonstrou que o trabalhador, individualmente, não possui capacidade fática de negociar livremente com seu patrão, pois está em condições desfavoráveis. Cabe ao Direito protegê-lo, "procurando assim compensar as desigualdades econômicas e sua fraqueza diante do empregador" (RUPRECHT, 1995, p. 10 apud HOFFMANN, 2003. p. 61).

É este o principal ponto que divorciou do Direito Civil o Direito do Trabalho. Naquele, as partes, porque iguais, negociam livremente, tentando conciliar suas vontades dentro de contratos equilibrados. Neste, porque há desigualdade, todo acordo livre tende ao favorecimento do detentor dos meios de produção. Ao que possui apenas a mão-de-obra, resta submeter-se às condições impostas. Para que estas condições respeitem o mínimo da dignidade humana, O Direito do Trabalho protege o obreiro, tentando reconduzir o pacto ao equilíbrio.

O Princípio Protetor está na essência do Direito do Trabalho. Tamanha é sua importância que o conceito protetivo está contido em todos os demais princípios trabalhistas, infiltra-se dentro de cada norma positiva, determina a existência de presunções em favor do trabalhador, orienta sentenças no processo trabalhista etc. O Direito do trabalho está profundamente impregnado de regras protetoras, tutelando a vontade do trabalhador, que de outra forma não seria livre para se expressar.

Importante destacar que o Princípio Protetor sofre abrandamento quando está em pauta o Direito Coletivo do Trabalho. Ora, o princípio visa a nivelar partes desiguais de uma relação jurídica; contudo, quando organizados como classe, quando defendem seus direitos coletivamente, os trabalhadores não estão mais em condições tão desfavoráveis, pois sua força de negociação é muito maior. Por isso, a tutela do trabalhador coletivo, isto é, dos sindicatos e associações de trabalhadores é menor do que a do trabalhador individual. Menor, mas não inexistente: mesmo abrandado, o Princípio Protetor tem relevância, mesmo em relações coletivas de trabalho.

Tradicionalmente, os doutrinadores jurídicos desdobram o Princípio Protetor em três regras: regra in dubio pro operario, regra da norma mais favorável e regra da condição mais benéfica. Todavia, o Princípio Protetor não se resume simplesmente nestas regras. Seu alcance é muito maior, influindo em todo o Direito Trabalhista.

Na verdade, a noção de tutela obreira e de retificação jurídica da reconhecida desigualdade socioeconômica e de poder entre os sujeitos da relação de emprego (idéia inerente ao princípio protetor) não se desdobra apenas nas três citadas dimensões. Ela abrange, essencialmente, quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho (DELGADO, 2005, p. 198).

E não só os princípios especiais do Direito Individual, mas também os princípios do Direito Coletivo, as normas positivas, as presunções, as sentenças, os contratos de trabalho. O Princípio Protetor está presente verdadeiramente em todo dispositivo do Direito do Trabalho. O Princípio que garante a liberdade sindical não visa à proteção do trabalhador? E a norma que lhe garante um Fundo de Garantia em caso de desemprego involuntário? A presunção da continuidade da relação de trabalho, a sentença que reconhece ao trabalhador direito ao aviso prévio ou contrato que fixa seu salário em patamar pelo menos igual ao mínimo legal e com caráter de irredutibilidade não têm influência do Princípio Protetor?

Em conseqüência, todos os princípios justrabalhistas trazem em seu conteúdo influência tutelar. Logo, o que se toma por regras específicas do Princípio Protetor são de fato outros princípios, originados naquele primeiro, mas com conteúdo próprio. Assim, há o Princípio in Dubio pro Operario, o Princípio da Condição mais Benéfica e o Princípio da Norma mais Favorável. E cada princípio destes, ao seu modo, objetiva uma garantia diferente ao trabalhador.

3.3.Princípio da norma mais favorável

O princípio da norma mais favorável nasce da profusão de normas do Direito Trabalhista. Além das normas tradicionais de todo o Direito, este ramo jurídico conta com outras sem paralelo. Assim, são normas justrabalhistas a Constituição, a lei, os atos normativos do Poder Executivo, as sentenças e os contratos individuais. Mas também o são o acordo coletivo de trabalho, a convenção coletiva de trabalho, a sentença normativa e o regulamento da empresa.

Além do grande volume de normas possíveis, são distintas as pessoas que as promulgam. As normas tradicionais, como leis, decretos etc., vêm do Estado. O contrato individual é firmado pelas partes da relação jurídica, trabalhador e empregador. Até então, nenhuma novidade quanto ao Direito comum. Entretanto, a sentença normativa, que diferentemente da sentença comum é abstrata e abrange um número indeterminado de pessoas, vem do Poder Judiciário. Já o regulamento da empresa é ato unilateral desta. Os acordos coletivos são firmados entre empresas e sindicatos laborais e as convenções entre sindicatos patronais e laborais.

Desta forma, por nascerem de origens diversas, as normas trabalhistas terminam por sobreporem-se umas às outras, regulando a mesma matéria de formas diferentes. Para ordenar a diversidade de normas, há o Princípio da Norma mais Favorável. Evidentemente, mais favorável ao trabalhador, vez que é a este que o Direito Laboral pretende proteger.

Godinho Delgado afirma que o Princípio se apresenta sob três dimensões, quais sejam: "no instante da elaboração da norma [...] ou no contexto de confronto entre regras concorrentes [...] ou, por fim, no contexto de interpretação de regras jurídicas [...]" (2005, p. 199). Assim, o princípio teria sua dimensão informadora do legislador, hierarquizante de normas e interpretativa dos preceitos jurídicos.

A última dimensão, interpretativa dos preceitos jurídicos, determina que, havendo mais de uma interpretação possível para a norma trabalhista, deverá ser adotada a mais favorável ao trabalhador. Neste caso, seguimos a lição do mestre uruguaio Plá Rodriguez, segundo quem o Princípio aqui se confundiria com um outro: in Dubio pro Operario. Seria um sentido impróprio para o Princípio da Norma mais Favorável, pois esta acepção "nasce não da existência de várias normas aplicáveis a uma única relação, mas da existência de uma só norma aplicável, embora suscetível de vários significados" (RODRIGUEZ, 1978, p. 53).

A denominação do princípio por si só sugere a existência de mais de uma norma: se há uma norma mais favorável, haverá outra menos. Logo, é tecnicamente mais simples e cientificamente mais recomendável que se separem os dois princípios, que possuem conteúdos diferentes e se dirigem a casos diferentes. Havendo apenas uma norma e mais de uma interpretação: Princípio in Dubio pro Operario; havendo mais de uma norma, Princípio da Norma mais Favorável.

Quanto à primeira dimensão, informadora do legislador, como o próprio mestre Delgado prevê, ela se encontra em fase pré-jurídica. Dirige-se ao legislador estatal, com o objetivo de que este, na elaboração de novas normas jurídicas, busque sempre a melhoria das condições do trabalhador, para que ele sempre produza normas mais favoráveis. Exatamente por ser pré-jurídica, predominantemente política, ela não é objeto de interesse neste momento. Até mesmo porque, se o legislador afrontar o princípio, criando nova lei desfavorável ao trabalhador, ela não deixará de ser válida somente por isso.

Enfim, a dimensão hierarquizante, que se aplica no confronto de normas concorrentes é o aspecto autêntico do Princípio da Norma mais Favorável. Esta face do preceito determina que, no caso concreto, havendo mais de uma norma regulando a mesma matéria, deve prevalecer aquela que for mais favorável ao trabalhador, independente de suas posições dentro da estrutura hierárquica tradicional. Assim, se uma convenção coletiva prevê horas-extras com acréscimo de 60%, mas o regulamento da empresa prevê 75%, prevalece este, porque mais benéfico ao trabalhador.

A dimensão é hierarquizante, pois, na aplicação do Direito Trabalhista, prevalecerá hierarquicamente a norma que mais favoreça o trabalhador. Logo, como no caso concreto se aplica a norma de hierarquia superior, será aplicada a norma mais favorável ao trabalhador. Por isso, no exemplo acima, mesmo com um comando constitucional determinando que as horas-extras têm acréscimo de apenas 50%, prevalece a aplicação do regulamento da empresa, porque mais favorável.

Embora a Carta Magna tenha status superior na estrutura tradicional de hierarquia, porque originária de órgão público (a constituinte), porque exige procedimento específico para sua modificação e porque guarda o fundamento da soberania do Estado sobre os particulares, prevalece uma norma originária de pessoas privadas por ser mais favorável aos trabalhadores. No Direito do Trabalho, a hierarquia é determinada pelo objetivo essencial deste ramo jurídico: a proteção ao trabalhador.

3.4.Hierarquia normativa no direito laboral e a proteção ao trabalhador

A teoria geral da norma estabelece que, quando há mais de uma norma regulando a mesma matéria, deverá prevalecer na aplicação concreta a norma de hierarquia superior. Por isso, tradicionalmente os dispositivos legais são preteridos em face dos constitucionais, os atos normativos do Poder Executivo não devem ser aplicados em afronta à lei, os contratos devem estar de acordo com as normas legislativas. A hierarquia normativa, afigurada na Pirâmide de Kelsen, resolve as antinomias derrogando normas de hierarquia inferior.

Todavia, pelo Princípio da Norma mais Favorável, no Direito do Trabalho, prevalece no momento da aplicação concreta da norma aquela que trouxer mais benefícios ao trabalhador. Independente de sua posição dentro da hierarquia tradicional, se a norma trouxer mais benefícios ao trabalhador, ela se sobressai dentre as demais. Assim, o contrato de trabalho firmado entre empregado e empregador, se mais favorável, toma o lugar até da Constituição.

Ora, se no Direito em geral aplica-se a norma de hierarquia superior e no Direito do Trabalho aplica-se a norma que mais beneficie o trabalhador, pode-se concluir que no ramo justrabalhista a norma de hierarquia superior será a mais favorável ao trabalhador. Quebra-se, com isso, a organização tradicional da pirâmide normativa. O sistema hierárquico no Direito do Trabalho obedecerá ao Princípio da Norma mais Favorável, alçando ao topo da pirâmide a norma que melhor proteger o obreiro. Assim, ao caso concreto "não se aplicará a norma correspondente dentro de uma ordem hierárquica predeterminada, mas se aplicará, em cada caso, a norma mais favorável ao trabalhador" (RODRIGUEZ, 1978, p. 54). A proteção do trabalhador exige uma perspectiva especial na análise da hierarquia normativa, sob pena de comprometimento dos fins do Direito do Trabalho.

Neste sentido, se um sindicato de trabalhadores e uma empresa fixarem em acordo coletivo uma jornada de trabalho com tempo inferior ao previsto legalmente, este acordo prevalecerá hierarquicamente. Se, em seguida, um empregado for contratado pela empresa que firmou o acordo coletivo e em seu contrato de trabalho for prevista uma jornada ainda menor, o acordo coletivo cederá seu lugar na pirâmide hierárquica à nova norma. A relação é dinâmica: a todo o momento uma nova norma pode tomar o lugar da outra na pirâmide hierárquica, passando a viger preponderantemente sobre as demais. A constatação da organização jurídica das normas será casual e não estática, como determina a teoria tradicional da norma.

Ressalve-se, porém, que a norma deve ser mais favorável à classe trabalhadora a quem ela se dirige e não a um trabalhador apenas. A verificação é casual, mas abrange todos aqueles que estão submetidos à norma. Não se apura o maior benefício apenas do trabalhador específico que reclama a aplicação da norma, mas de todo o conjunto de trabalhadores cujos contratos de trabalho estão normatizados pelos dispositivos.

Imagine-se, por exemplo, que uma convenção coletiva determine que as horas noturnas se estendam das 19:00h às 06:00h e sejam remuneradas com adicional de 60%; ao mesmo tempo, um acordo coletivo determina a extensão de 18:00h às 05:00h com adicional de apenas 20%. Ambas as normas estabelecem onze horas noturnas, mas a primeira é nitidamente mais favorável quanto ao adicional. Se for posto ao juiz o caso de um trabalhador que labore diariamente até 18:30h, a segunda norma seria mais favorável a ele especificamente, vez que só por ela terá direito a algum adicional. Todavia, por ser o primeiro dispositivo mais favorável ao conjunto de trabalhadores, ele deve prevalecer. A hierarquia é casual, pois uma convenção coletiva está no topo da pirâmide por ser mais favorável; mas não é específica, pois estaria desfavorecendo todo o conjunto de trabalhadores em favor de um apenas.

Esta inversão hierárquica é resultado da especificidade do Direito Laboral, que tem fins característicos e princípios exclusivos. Seu objetivo é adequar a sistemática de concretização normativa aos fundamentos do Direito do Trabalho. A causa primeira da existência do ramo justrbalhista é a proteção do trabalhador, dada sua fragilidade dentro do sistema econômico, social e político capitalista. Não seria coerente negar a aplicação de um benefício ao trabalhador somente porque ele está previsto em uma norma inferior.

À medida que a matriz teleológica do Direito do Trabalho aponta na direção de conferir solução às relações empregatícias segundo um sentido social de restaurar, hipoteticamente, no plano jurídico, um equilíbrio não verificado no plano da relação econômico-social de emprego [...] prevalecerá, tendencialmente, na pirâmide hierárquica, aquela norma que melhor expresse e responda a esse objetivo teleológico, central justrabalhista. Em tal quadro, a hierarquia de normas jurídicas não será estática e imutável, mas dinâmica e variável, segundo o princípio orientador de sua configuração e ordenamento (DELGADO, 2005, p. 178).

Observe-se que em virtude da inversão hierárquica as normas trabalhistas evitam o enrijecimento das relações jurídicas trabalhistas. Elas estabelecem um patamar mínimo que os atores da relação de trabalho não podem reduzir, mas garantem a estes atores o poder de realizar qualquer modificação em benefício do trabalhador. Com isso, pessoas privadas, como sindicatos e empresas, e órgãos público, como os tribunais trabalhistas, podem criar novas normas e levá-las ao cume da pirâmide normativa. Há sempre espaço para ampliação da proteção do empregado dentro da relação econômica dinâmica do trabalho.

Lima Filho destaca que esta inversão na graduação entre normas não implica em "nenhum ‘absurdo’ e nem tampouco pode ser considerado inconstitucional" (2000, p. 139). Há inversão da hierarquia tradicional, mas mantém-se a plena coerência do Direito do Trabalho com os dispositivos normativos em geral, inclusive a Lei Maior, e com a ordem jurídica do Estado. O Direito do Trabalho reclama, por sua natureza, meios que possibilitem a constante elevação da condição social do trabalhador. O Princípio da Norma mais Favorável é um meio eficaz de permitir aos diversos normatizadores deste ramo jurídico a apresentação de soluções alternativas ao arcabouço legal em benefício da classe trabalhadora. Por este motivo, sua aplicação é apropriada dentro do contexto justrabalhista e não ultraja a ordem jurídica estatal.

Por causa da especificidade do Direito do Trabalho e em razão de seus objetivos fundamentais a hierarquia normativa neste ramo jurídico é definida em função do Princípio da Norma mais Favorável. No Direito do Trabalho, deve sempre prevalecer hierarquicamente a norma mais favorável ao obreiro, mesmo que tradicionalmente ela seja considerada inferior. Sem a aplicação do princípio, compromete-se não apenas a teoria jurídica trabalhista, mas o próprio Direito Laboral em sua construção e aplicação às relações de trabalho.

Sobre o autor
Hugo Alexandre Cançado Thomé

bacharel em Direito em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMÉ, Hugo Alexandre Cançado. Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1529, 8 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10388. Acesso em: 2 nov. 2024.

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