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Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista

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SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO. 2.VALIDADE TÉCNICO-JURÍDICA DA NORMA E O ESTADO DE DIREITO. 2.1.Norma jurídica. 2.2.Fundamento, validade e eficácia. 2.3.Validade – adequação formal e substancial. 2.4.Hierarquia normativa. 2.5.Validade da norma e a solução de antinomia. 2.6.Hierarquia normativa como pressuposto do Estado de Direito. 3.NORMA JUSTRABALHISTA. 3.1.Origem do direito do trabalho. 3.2.Princípio protetor. 3.3.Princípio da norma mais favorável. 3..4Hierarquia normativa no direito laboral e a proteção ao trabalhador. 4.HIERARQUIA NORMATIVA E O PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL NO DIREITO TRABALHISTA. 4.1.Incompatibilidade entre a hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável. 4.2.Adequação hierárquica formal. 4.3.Adequação hierárquica substancial. 4.3.1.Imperatividade da norma. 4.3.2.Presunção de dispositividade pró-trabalhador. 4.3.3.Exceções à presunção. 5.CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS


RESUMO

A Teoria Geral do Direito apresenta como um dos principais caracteres da norma jurídica seu fundamento de vigência. Um dos elementos que compõe o fundamento de vigência é a hierarquia normativa entre os diversos dispositivos jurídicos. Esta hierarquia foi celebrizada na Pirâmide de Kelsen, em que a norma hierarquicamente superior fundamenta a vigência da norma inferior. O fundamento de vigência, dentro da Teoria Geral, é um pressuposto de validade do Estado de Direito, sendo, portanto, essencial na Ciência Jurídica. Todavia, a doutrina justrabalhista encontra no Princípio da Norma Mais Favorável uma inversão na estrutura hierárquica jurídica da Pirâmide Kelsen. Para estes, a norma hierarquicamente superior será a que mais favorecer ao trabalhador, independentemente de sua posição na hierarquia tradicional da Teoria Geral do Direito. Este princípio deriva-se do caráter protetivo do Direito do Trabalho e é indispensável neste ramo jurídico. Assim, a Teoria Geral do Direito e o Direito Trabalhista aparentemente baseiam-se em conceitos incompatíveis. Este trabalho busca encontrar uma solução para o aparente conflito, considerando a importância da hierarquia normativa dentro do Estado de Direito, a relevância da garantia trabalhista do Princípio da Norma Mais Favorável e a coerência técnica e científica da Ciência do Direito.

Palavras-chave: Norma, Validade, Direito do Trabalho.


1.INTRODUÇÃO

O Direito Trabalhista é um dos ramos mais novos e mais singulares da ordem jurídica. Sua formação é posterior à Revolução Industrial e sua independência normativa e científica só se firmou no século XX. A comparar-lhe com o Direito Civil ou Penal podemos perceber-lhe sua juventude: estes dois ramos são milenares, aquele há cem anos não possuía estrutura própria. Tendo como referência o Direito Empresarial ou Administrativo podemos perceber-lhe sua singularidade: estes dois ramos, embora independentes, guardam ainda muito da milenar norma civilista, em especial quando se adentra as normas processuais; aquele se aparta de tal forma que a maioria dos países de tradição jurídica européia-continental possui uma Justiça Trabalhista independente da Justiça Civil.

Entretanto, mesmo independente, jovem e singular, o Direito Trabalhista não foge a bases estruturantes do Direito como um todo. A norma trabalhista é tão norma como outra qualquer. Logo, a legislação trabalhista possui um fundamento de validade técnico-jurídica ou de vigência como todas outras normas. A existência desta validade é-lhe tão essencial que sua ausência seria capaz de ameaçar todo este ramo jurídico.

A fonte de validade técnico-jurídica de uma norma encontra-se em vários pressupostos; dentre eles, está a obediência aos preceitos existentes nas normas que lhe são hierarquicamente superiores. Desta forma, a sentença ou o contrato, que são normas para as partes, têm seu fundamento de validade na lei, esta por sua vez na Constituição, que encontra o fundamento de sua vigência em base meta-jurídica. Esta estrutura hierarquizada de normas tem sua teorização mais clássica na Pirâmide de Kelsen.

Por outro lado, o Princípio da Norma Mais Favorável no Direito do Trabalho aponta para uma flexibilização do fundamento de validade técnico-jurídica das normas. Por este princípio, a norma, mesmo que inferior na hierarquia de vigência, contanto que mais favorável ao trabalhador, poderá sobrepor-se às que lhe estão acima. A Pirâmide, assim, pode ser visualizada com reversão de sua ordem, para proteção do empregado.

Se a norma inferior se sobrepõe àquela que, a princípio, seria seu fundamento de validade técnico-jurídica ou de vigência, o que legitima a validade ou vigência da norma trabalhista? É fato que a norma justrabalhista possui fundamento de vigência, mas se não se pode recorrer à teoria hierárquica da validade, onde se encontrará este fundamento de validade?

Esta pesquisa tem o objetivo de apontar uma solução para esta aparente incompatibilidade científica entre as duas teorias fundamentais ao Direito, em especial ao ramo trabalhista. O trabalho desenvolvido tenta trilhar um caminho que guarde coerência com o sistema normativo hierárquico do Estado de Direito, com a proteção ao trabalhador e com a cientificidade.

Os passos seguidos para alcançar tal meta são os seguintes:

a)Analise da teoria da validade técnico-jurídica ou vigência da norma.

b)Analise do Princípio Justrabalhista da Norma Mais Favorável.

c)Confronto das duas teorias, apontando possíveis soluções para o aparente conflito, dissecando cada possibilidade à luz do sistema normativo hierárquico do Estado de Direito, da proteção ao trabalhador e da cientificidade.

d)Por fim, indicação da solução que melhor atenda aos Princípios Gerais de um Estado de Direito, aos princípios protetores do Direito Trabalhista e à cientificidade do Direito contemporâneo.

A técnica utilizada é a pesquisa bibliográfica da doutrina jurídica nacional e estrangeira relativa à Teoria da Validade Técnico-Jurídica da Norma e ao Princípio Justrabalhista da Norma Mais Favorável. A norma justrabalhista é entendida abstratamente no contexto da plenitude de um sistema jurídico vigente, sem desprezo de exemplificação de normas concretas vigentes. O método adotado é racionalista e predominantemente dedutivo. A análise leva em conta evidentemente o fator histórico dos Estados de Direito e a coerência lógico-científica.

Nos dias atuais, quando se discute continuamente reformas trabalhistas, compreender a essência da norma que se pretende reformar é elucidar os caminhos para mudanças coerentes e que condigam com os ideais de Justiça e Direito. A validade técnico-jurídica da norma legitima sua existência no mundo jurídico, dando ao cidadão previsibilidade quanto ao Direito.

Assim, esta pesquisa pretende concorrer para a construção de alicerces jurídicos rígidos: acredita-se que, apontando o fundamento técnico-jurídico da norma trabalhista em consonância com o Princípio da Norma Mais Favorável, contribua-se para o engrandecimento da doutrina jurídica trabalhista e para o próprio Direito do Trabalho.

A pesquisa é composta de três capítulos: o primeiro busca compreender a teoria da Validade Técnico-Jurídica da Norma, isto é, demonstrar qual a origem do fundamento de vigência da norma jurídica para a Teoria Geral da Norma dentro da Dogmática Jurídica; o segundo detém-se no Princípio da Norma Mais Favorável, sua aplicação no Direito do Trabalho e sua importância dentro daquele ramo jurídico; o terceiro, por fim, confronta as duas teorias jurídico-científicas, apontando a origem do fundamento de validade técnico-jurídica da norma trabalhista. Com isso, pretende-se resolver a incompatibilidade aparente entre estes dois pilares do Direito contemporâneo, em especial do Direito do Trabalho.


2.VALIDADE TÉCNICO-JURÍDICA DA NORMA E O ESTADO DE DIREITO

2.1.Norma jurídica

A existência humana, em suas mais diversas manifestações, está preenchida por normas. Um jogo de futebol ou uma brincadeira de crianças tem suas regras definidas. Um processo de produção agrícola tem normas intrínsecas: primeiro se deve desbastar a área de cultivo, em seguida preparar o solo; deve-se plantar colocando as sementes ou mudas de uma forma determinada; a colheita deve se dar após um número específico de dias do plantio, etc. Os relacionamentos possuem suas próprias normas: o filho deve respeitar o pai, o cônjuge deve ser fiel, o amigo deve ser leal...

Estas normas surgem das mais diversas formas: em razão da natureza do universo, por meio de costumes, em conseqüência de ditames religiosos, em virtude da imposição pela força ou como resultado de acordo. As formas de nascimento das normas são tão diversas quanto a própria diversidade de normas existentes.

Em meio a esta infinidade de normas, há as normas jurídicas. Por possuírem caracteres próprios, isto é, por terem marcas distintas das demais normas existentes, há aquelas que são denominadas jurídicas. Os pontos presentes em todas elas e ausentes nas demais fazem de um determinado número de normas um grupo, que historicamente se denominou normas jurídicas.

Em primeiro lugar, é preciso excluir as normas jurídicas da categoria de regras naturais. Há normas que determinam como são os fenômenos naturais e humanos, mas não propõem nenhum comportamento. São assim, por exemplo, as leis da física. Dois corpos se atraem proporcionalmente ao produto de suas massas e em proporção inversa do quadrado de sua distância: é a lei da gravidade. É possível verificá-la por meio de experimentos, mas o primeiro físico a afirmar a existência desta norma não prescreveu um comportamento; ele não determinou que as coisas ou pessoas devessem se atrair pela a gravidade dali em diante, mas apenas verificou um fenômeno natural e o reduziu a norma.

De natureza distinta são as normas que determinam aos indivíduos certos comportamentos. No futebol, por exemplo, há a regra que determina que o goleiro não deva tocar a bola com as mãos fora da grande área. O goleiro com certeza não conseguirá escapar à força da gravidade que o planeta exerce sobre ele, mas certamente tem capacidade de sair da área com a bola nas mãos. As normas naturais apenas enunciam um fenômeno. As normas prescritivas de comportamento recomendam uma conduta, mas não têm força, por si só, de impô-la.

As normas jurídicas enquadram-se neste segundo gênero de normas: normas imperativas. Estas normas prevêem ao indivíduo um determinado comportamento, recomendando-lhe sua obediência. Elas não dispõem sobre o que é, como as normas naturais, mas sobre o que deve ser. Dirigem-se ao comportamento humano apontando-lhe uma conduta adequada e não são capazes, simplesmente por sua disposição, de fazer aquela conduta se realizar. Ela cria àquele a quem se dirige uma obrigação de agir conforme seu conteúdo, mas, diferentemente das normas naturais, não faz as condutas que prevê acontecerem naturalmente.

Mas, para que a norma não seja um comando vazio, incapaz de se fazer cumprir, as normas imperativas são envolvidas por um aparato material que lhe dá obrigatoriedade. Assim, o goleiro até é capaz de sair da área com a bola nas mãos, mas se o fizer cometerá uma falta. O juiz determinará um lance em favor de seu adversário, punindo o desrespeito à norma violada. A norma impõe um comportamento, mas prevê uma sanção em caso de descumprimento, buscando, assim, ser eficaz.

Dentro da categoria de normas imperativas, o traço principal da norma jurídica, que lhe distingue indubitavelmente de todas as outras normas que prescrevem condutas ao homem, é sua imposição estatal. O Estado, enquanto ente político, detentor da força, sobre a qual inclusive reclama exclusividade, confere a algumas normas o caráter de obrigatoriedade, impondo seu cumprimento por todas as outras pessoas. A exigência estatal do enquadramento em determinada conduta é o que coloca uma norma dentro da categoria de norma jurídica.

Os estudiosos do Direito apontam outras características da norma jurídica como a bilateralidade e a sanção. Não se pretende negar que estes aspectos estão presentes neste grupo distinto de normas; todavia, não são estas marcas que lhe apartam das demais regras que ditam a conduta humana. As normas morais, por exemplo, possuem sanções sociais, que se distinguem das sanções jurídicas em vários aspectos, mas não deixam de ser sanções por isso. As normas religiosas são bilaterais: determinam a conduta que um homem deve ter diante de seu deus; mesmo admitindo que este deus não tenha existência natural, ele existe culturalmente e é em favor dele que se cumprem as normas religiosas.

E assim, são os outros caracteres da norma jurídica: eles existem, mas são insuficientes para distinguir claramente a norma de Direito das demais normas propositivas. O marco essencial entre a norma jurídica e todas as outra é a imposição pelo poder estatal, a exigência política de cumprimento, a força do Estado em seu favor.

Com este entendimento, a norma jurídica pode ser entendida em quatro níveis: um mais estreito que iguala o conceito de norma jurídica ao de lei; um outro um pouco mais amplo, que inclui no conceito de norma jurídica toda a disposição oriunda do Estado imposta como se fosse lei; um sentido mais amplo ainda, que chama de norma toda disposição oriunda do Estado e imposta às outras pessoas; e um último conceito, o de maior amplitude, que inclui qualquer disposição, estatal ou não, capaz de imposição pelo Estado.

O primeiro sentido, em sua estreiteza de visão, entende que norma jurídica são exclusivamente as regras criadas pelo poder responsável por legislar, na forma prevista. Norma jurídica é igual à lei. Neste sentido, nem mesmo os dispositivos que determinaram o responsável e a forma de criar leis seriam normas jurídicas, vez que o legislador só o é depois que há um dispositivo assim o determinando.

Num sentido menos míope e mais adequado mais ao senso comum, norma jurídica é toda a disposição estatal imposta como se fosse lei. São as normas do Estado que têm força de lei. Aqui, enquadram-se as disposições constitucionais, as leis delegadas e as resoluções do Poder Executivo que têm força de lei, como as Medidas Provisórias no Brasil, por exemplo. Assim, todo o texto derivado do Estado, imponível como lei, é norma jurídica.

Um outro sentido ainda mais amplo, mas ainda ligado à origem estatal, é aquele que inclui toda disposição do Estado, oponível por sua coação. Alarga-se o sentido, aumentam os dispositivos denominados por norma jurídica: sentenças, portarias e outros atos menos generalistas, mas sempre derivados do Estado, são também normas jurídicas.

Por fim, o sentido mais abrangente, que aqui é o mais adequado, é o que considera que o que distingue a norma jurídica das demais normas é a imposição pelo Estado. Se for considerada apenas a imposição estatal, além das leis, da Constituição, das sentenças, dos decretos e portarias, também é norma jurídica todo ato que se origina fora do Estado, mas que recebe deste o caráter de obrigatoriedade. Contratos, acordos, costumes e outros dispositivos que criam regras de conduta e recebem do Estado, de alguma forma, a coercitividade, são, neste sentido, normas jurídicas.

Um contrato, porque pode ser executado, um costume, porque é reconhecido em sentenças judiciais, uma sentença arbitral, porque se equipara às sentenças estatais, são também normas jurídicas. O que interessa não é a origem do preceito, mas apenas a pessoa que impõe sua obrigatoriedade, isto é, o Estado. Este sentido, embora muito amplo, é o mais coerente para o estudo das características gerais da norma jurídica, pois, a um só tempo, abarca todo dispositivo passível de criar uma obrigação reconhecida pelo Direito.

2.2.Fundamento, validade e eficácia

Toda norma jurídica pode ser apreciada sob três aspectos distintos: seu fundamento, sua validade e sua eficácia. São aspectos distintos e independentes. Mas não são estanques, isto é, se interrelacionam, de forma que, por exemplo, a norma válida, mas com fundamento dissonante da realidade social, tende a ser ineficaz. São três aspectos que podem ser vistos com clara distinção sobre a norma, que não se confundem, mas que se conectam.

O fundamento da norma ou sua validade material é o aspecto axiológico. Buscar o fundamento de uma lei é questionar: a lei é justa? Sem se aprofundar na questão da formação dos valores aceitos, admitidos ou construídos por uma sociedade, mas sem ceder à idéia jusnaturalista de valores transcendentais ou sobre-humanos e eternos, é possível identificar em um determinado grupo social, definido no espaço e no tempo, valores comungados por seus membros. Todo grupamento humano possui valores, vividos mais ou menos homogeneamente por cada indivíduo, conforme a realidade do grupo, isto é, toda sociedade possui, de alguma forma, seus critérios de justiça. Para encontrar o fundamento da norma, comparam-se seus objetivos intrínsecos àquilo que a sociedade compreende por justiça.

Encontrar o fundamento da norma é perguntar a que valores esta norma serve. Os crimes que tipificam o furto e o roubo servem ao valor da propriedade privada e ao valor da supremacia do Estado sobre o indivíduo. A legislação contratualista de um código civil serve aos valores da liberdade e da capacidade de autocondução da pessoa. A lei que institui contribuições sociais às empresas serve ao valor da solidariedade social.

O aspecto axiológico da norma justifica a imposição do Direito sobre a sociedade. Ele fundamenta, subsidia, legitima a norma jurídica. Em síntese, o fundamento jurídico da norma é "o valor ou complexo de valores que legitima uma ordem jurídica, dando a razão de sua obrigatoriedade" (REALE, 2002a, p. 594).

Paralelamente ao seu fundamento, a norma pode ser analisada sob a ótica de sua eficácia. Norma eficaz é aquela a que seus destinatários, em geral, se submetem. A eficácia é a faceta social da norma. A pergunta que se faz para identificar-se a eficácia de uma norma é: seus comandos são obedecidos por aqueles a quem ela se dirige?

Se uma pessoa, por exemplo, firmar um contrato de empréstimo de dinheiro junto a um banco, teremos uma norma válida para as partes e com fundamento. Os valores da liberdade contratual fundamentam a norma entre os contratantes e, se o acordo atender todos os ditames legais, é válido. Mas, se mesmo com contrato firmado o mutuário simplesmente não receber o valor previsto no empréstimo? Por um motivo qualquer, o dinheiro não lhe foi entregue. O contrato será, então, uma norma válida, com fundamento, mas ineficaz. Os destinatários da norma, a pessoa e o banco, não se submeteram aos seus ditames: o banco não emprestou o dinheiro e a pessoa não pagou os juros acordados. A norma existiu, mas não gerou seus efeitos.

Norma eficaz é aquela que gera efeitos sobre seus destinatários. Todavia, não é necessário que todos aqueles a quem a norma se dirige se submetam a ela. Quando se trata de normas mais generalistas, como leis, decretos ou comandos constitucionais, é comum que parte dos destinatários se insubordinem. Assim, a eficácia, para existir, não precisa ser necessariamente plena.

As normas penais, por exemplo, são constantemente desobedecidas. Universalmente, em qualquer sociedade e em todos os tempos, houve pessoas transgredindo as regras penais. Essa realidade pode ser facilmente verificada, seja nas punições previstas a criminosos no antiqüíssimo Código de Hamurabi, seja em um passeio numa cadeia pública. A simples necessidade de uma pena já demonstra que na constituição da norma se previu sua transgressão.

Porém, seria temerário afirmar que todas as normas penais são ineficazes, somente porque casualmente são desobedecidas. Uma análise mais detida revelará que os destinatários das normas penais, isto é, todas as pessoas que compõem um conjunto social, em geral submetem-se aos seus comandos. O número de pessoas que cometem crimes é esmagadoramente inferior ao de pessoas que cumprem as leis. A lei é eficaz, embora eventualmente desobedecida.

Afirmar a ineficácia de uma norma exige muito mais do que demonstrar sua eventual transgressão. É preciso que a insubordinação ao ditame legal seja tão difundida e constante, que seja difícil enxergar os efeitos pretendidos pela norma.

O jogo do bicho é um caso claro de ineficácia normativa no Brasil. Não será difícil a qualquer pessoa que desejar apostar no bicho encontrar em sua cidade uma banca para realizar a aposta. Dificilmente será enfrentada alguma repressão. O jogo funciona como se fosse livre. Embora esteja tipificado como um delito na Lei de Contravenções Penais, o jogo do bicho é uma prática social corriqueira. "Consta que, na década de 80, o jogo do bicho movimentou cerca de R$ 500.000,00 por dia com as apostas realizadas" (GONÇALEZ et al., 2004). São quase R$ 2 milhões por ano; uma cifra bastante elevada, que nem toda atividade econômica lícita movimenta, revelando o quanto esta norma pode sim ser chamada de ineficaz.

Diferentemente, normas como as que criminalizam o homicídio ou a lesão corporal não podem ser tidas por ineficazes. Por maior que seja a violência de uma determinada localidade, o que se verifica em qualquer grupamento social é que as pessoas, em geral, não cometem estes crimes. Há, neste caso, influência de ditames morais e religiosos fortalecendo as normas jurídicas. Todavia, independente do motivo que leva as pessoas em geral a cumpri-las, as normas em questão são eficazes. Não é a transgressão de uma pequena parcela da sociedade que lhes subtrai esta característica.

Assim, a eficácia de uma norma se verifica socialmente. É um fato concretamente demonstrável. A Sociologia e a Psicologia Jurídicas ocupam-se do estudo aprofundado da eficácia jurídica. Até que ponto os ditames do Estado ressoam no comportamento do grupo social submetido a sua autoridade é questão corrente daquelas disciplinas.

Por fim, compondo a terceira faceta da norma, há a vigência. Também chamada de validade formal, validade técnico-jurídica, fundamentação lógica ou simplesmente validade, a vigência da norma é a característica que lhe permite fazer parte do ordenamento jurídico. É a vigência que indica se a norma é parte do arcabouço legal do Estado.

Assim, a publicação de uma sentença dá-lhe vigência para sua aplicação às partes do processo. A fundamentação axiológica da decisão judicial formou-se ao longo do processo, pela interpretação judicial das leis e sua aplicação ao caso em lide. A eficácia desta norma dependerá de seu cumprimento voluntário ou forçado pelas partes. Mas a vigência nasce no momento de sua publicação. A sentença, emitida pelo magistrado competente na forma preconizada pela lei, a partir de sua publicação, passa a compor o ordenamento jurídico do Estado, fazendo-se assim obrigatória para seus destinatários. Seu conteúdo determina de que forma os sentenciados deverão se comportar, a partir de então, em relação ao objeto em discussão.

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A vigência é bastante característica da norma jurídica positiva e possui maior relevância dentro de sistemas jurídicos de tradição romano-germânica. Em sistemas baseados nos costumes, a vigência se entrelaça muito mais fortemente com a eficácia.

O Direito costumeiro pode ser definido como um conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reiterado, uniforme e que gera a certeza de obrigatoriedade, reconhecidas e impostas pelo Estado (NADER, 2001, p. 150).

Nesta perspectiva, se não há eficácia, isto é, se não há uso reiterado e uniforme, não há costume a ser imposto pelo Estado, ou seja, a viger. O costume pressupõe a eficácia espontânea.

Todavia, mesmo nesta modalidade de sistema jurídico, a validade ainda se distingue da eficácia. É certo que não há vigência sem eficácia espontânea, pois não haveria nem o que viger. Entretanto, é possível haver um costume socialmente difundido, reiterada e uniformemente seguido, mas que o Estado não lhe reconheça e não lhe imponha. Seria uma norma consuetudinária eficaz, mas sem validade formal para o Direito. A validade do costume se inicia a partir do momento em que o Estado lhe reconhece, seja por sentença, decreto, lei etc.; o meio não importa, mas sem o aval do poder constituído há um costume eficaz, mas sem vigência.

Entretanto, é em um sistema legalista, como o que existe no Brasil, em que é mais clara a distinção entre eficácia e vigência. É fácil determinar o período em que uma norma vigora. As normas positivas têm data de nascimento e de morte de sua vigência. Nasce quando publicada ou a partir do prazo previsto nela mesma ou em outra lei. Morre com a revogação, tácita ou expressa. Já sua eficácia pode antecedê-la, ser-lhe ou não contemporânea e permanecer após sua revogação.

Para Bobbio, os três aspectos da norma, ou três critérios de valoração como eles os chama...

[...] dão origem a três ordens distintas de problemas, e são independentes um do outro, no sentido em que a justiça não depende nem da validade nem da eficácia, a eficácia não depende nem da justiça nem da validade (2001a, p. 48).

Assim, os três aspectos são evidentes e distintos em cada norma. Dentro do pensamento do mestre, reduzir o estudo do Direito a apenas um deles, qualquer que seja, limita a visão inteira do fenômeno jurídico. Contudo, por serem completamente independentes, os três aspectos não seriam confundíveis e pouco influenciariam uns sobre os outros.

Com uma visão um tanto mais acertada, Kelsen destaca a necessidade de eficácia mínima para a validade de uma norma.

Sustenta a teoria pura [de Kelsen] que tanto a norma singularmente considerada, quanto a própria ordem jurídica como um todo, deixam de ser válidas se perderem a eficácia. É incorreto pretender, por conseguinte, que a vigência não tenha qualquer relação com a eficácia (COELHO, 1995, p. 41).

Sob esta ótica, o contrato firmado entre a pessoa e o banco no exemplo anterior não teria vigência, pois sua eficácia é nula. Sem nenhuma existência social, não há que se falar em existência formal, isto é, sem nenhuma eficácia, padece a validade.

Acrescenta-se que, além de condicionar-se por um mínimo de eficácia, a norma também não prescinde de valores. Não há comando jurídico anaxiológico. A norma sempre pretende alcançar objetivos, defender valores. Mesmo um mero regulamento administrativo tem carga axiológica, porque pretende dar cumprimento à legislação, a qual, quando elaborada, baseou-se em valores eleitos pelo legislador como devidos.

Por isso, uma norma que se sustenta em valores que destoam daqueles admitidos pelo seu destinatário tende à ineficácia, pois quem não reconhece legitimidade no Direito não se propõe a cumpri-lo. Algumas vezes, mesmo com a imposição de graves sanções pelo Estado, sem o substrato de valores vividos pelo corpo social, a norma tem sua eficácia prejudicada, deixando de ser cumprida por um número significativo de destinatários.

No sentido oposto, uma norma vigente pode também impor novos valores ao corpo social, fazendo-o assimilá-los, modificando sua bagagem axiológica. A norma que, em princípio, atenda a valores não assimilados pela sociedade pode, pela sua imposição coercitiva estatal, tornar-se eficaz. Uma vez eficaz, pode criar novos valores ou modificar os já existentes. Mas mesmo aqui, a norma válida não prescindiu de fundamentação axiológica, tanto que terminou por fazer seus valores presentes no corpo social.

Nesta direção, os três aspectos evidentes na norma jurídica se entretecem. A relação entre eles é dinâmica, com a influência de um sobre o outro, tornando o Direito um fato social, positivo, axiológico e essencialmente dialético. São três facetas distintas e individualmente identificáveis sobre a norma, mas inseparáveis na vivência cotidiana do Direito.

2.3.Validade – adequação formal e substancial

Como já afirmado, fundamentação, validade e eficácia são três aspectos da norma jurídica que se entrelaçam e se influenciam dinamicamente. Para efeitos didáticos, porém, é possível isolá-los e analisá-los separadamente. O estudo individual da validade não implica na negação da eficácia e da fundamentação da norma. Apenas decorre da necessidade de aprofundamento sobre este objeto.

A vigência da norma pode ser vista de uma forma bastante ampla, como Reale a entende, exigindo um mínimo de fundamento axiológico, um tanto de efetividade e relacionando a vigência à questão do Poder e da positividade. Afirma ele que "a vigência, como se vê, é um problema bem mais complexo e profundo do que o ligado ao seu sentido técnico-jurídico" (REALE, 2002a, p. 600).

Ressalte-se, porém, que esta perspectiva da vigência é muito mais aberta do que a que interessa à Ciência do Direito, como o próprio mestre esclarece em sua obra. À Dogmática Jurídica interessa o aspecto técnico-formal, que envolve questões como "legitimidade do órgão emanador da lei; sua compatibilidade com outros de maior hierarquia; respeito à distribuição das competências; sanção, promulgação e publicação" (REALE, 2002a, p. 597). A visão plena da validade da norma é objeto da Filosofia Jurídica e não interessa, neste momento, analisá-la.

Ainda sob a ótica realiana, é preciso esclarecer que a validade, em sentido técnico-jurídico, pressupõe a vigência plena de um ordenamento jurídico. A vigência que se discute na Ciência do Direito é a de uma norma jurídica dentro de um todo jurídico, e não a validade do todo. "A análise da vigência em seu aspecto técnico-formal pressupõe todo um mundo jurídico já formado, com as suas normas integradas em um sistema e um complexo de atos e de juízos que nele se praticam" (REALE, 2002a, p. 601).

A doutrina jurídica aponta inúmeros critérios para aferição da validade técnico-formal da norma. Bobbio, por exemplo, identifica três operações necessárias para sua identificação: "1) averiguar se a autoridade de quem ela emanou tinha o poder legítimo para emanar normas [...] 2) averiguar se não foi ab-rogada [...] 3) averiguar se não é incompatível com outras normas do sistema [...]" (2001a, p. 47).

Os requisitos apontados na doutrina jurídica podem ser divididos em dois grupos: adequação formal e adequação substancial ao ordenamento jurídico de que a norma faz parte. O primeiro diz respeito às características externas da norma e o outro ao seu conteúdo.

Assim, a adequação formal implica em emanação da norma pelo poder competente, através do procedimento previsto expressamente ou validado pelo costume e inexistência de revogação expressa. São condições de validade da norma que independem daquilo que ela dispõe. Mesmo antes de analisar a matéria regulada por ela é possível atestar a existência de sua adequação formal, portanto a existência desta fração da validade.

O órgão com poder para emanar normas estará previsto em outra norma, anterior e em geral de hierarquia superior. É comum que a competência para fazer leis esteja prevista na Constituição. Em Estados com tradição da lei dos comuns, muitas vezes esta competência está em normas consuetudinárias. Já a competência para emanar sentenças, em geral, é atribuída a juízes, conforme a organização do Poder Judiciário ou instituição assemelhada da localidade. Os cidadãos comumente têm poder para celebrar contratos, ou seja, normas que regularão suas próprias condutas. No mesmo sentido, a forma como o ente promulgador de normas cumprirá sua função vem de normas, positivadas ou costumeiras, anteriores. O sistema jurídico já formado escolherá de que maneira e por quem ele mesmo será alterado.

Se por um lado a norma anterior define o legislador e a forma de legislar, a norma posterior pode determinar o fim da validade de uma outra norma. Ao revogar expressamente norma anterior, a nova norma lhe tira a validade, passando a viger em seu lugar. A norma anterior condiciona a validade da posterior, mas a posterior, ao seu tempo, pode retirar-lhe a vigência, desde que venha ao mundo do Direito na forma previamente prevista.

Mas em todos os casos, não será o conteúdo da norma em análise que indicará sua vigência. A existência ou não da validade estará prevista em outra norma, seja ela anterior ou posterior. O conteúdo da norma em si não tem relevância; importa sim o que dispuser outras normas do ordenamento jurídico.

Já quanto à adequação substancial, é preciso analisar o conteúdo da norma para verificar sua validade. Em primeiro lugar, ela deve ser compatível com as normas que lhe são superiores. Por isso, uma lei que conflite com a Constituição não possui validade, pois sua substância é inadequada. Da mesma forma, o contrato que disponha em sentido contrário ao da lei de ordem pública não vige, pois sua matéria é ilegal.

Ademais, a norma deve se adequar ao conteúdo de outras que lhe são hierarquicamente iguais, mas de promulgação posterior. Um contrato, por exemplo, pode dispor a obrigação de um pagamento X; posteriormente, um aditivo a este contrato, firmado pelas mesmas partes, dispõe um pagamento Y. Com isso, a cláusula inicial de pagamento perdeu sua validade. Este fenômeno se denomina revogação tácita.

A revogação expressa é formal, pois dependente somente do conteúdo de outras normas do ordenamento jurídico e não do conteúdo da norma cogitada. Já a revogação tácita só se percebe após a análise da substância da norma questionada.

E ainda, é preciso que haja adequação do conteúdo da norma ao de outras que lhe são hierarquicamente iguais, anteriores ou contemporâneas, mas específicas. Assim, hipoteticamente uma lei pode determinar obrigações A, B e C para as sociedades empresariais. Se na hipótese outra lei isentar as micro e pequenas empresas destas obrigações, mesmo que a primeira lei seja posterior à segunda, esta subtrairá a validade daquela nos casos em que dispuser. A lei mais específica, que isenta as obrigações, não permite que a norma mais genérica, que prevê as obrigações, seja válida nos casos previstos. Há vigência para todos os demais casos, mas ela fica limitada pela norma específica.

A adequação substancial da norma ao ordenamento pretende impedir que haja duas disposições conflitantes e igualmente válidas dentro do mesmo sistema jurídico. Se uma norma, por ser superior, por ser mais nova ou por ser mais específica, não retirasse a validade de outra que se opõe a ela, qual seria a norma aplicada ao caso concreto? Qual conduta deveria tomar a pessoa que desejasse agir em acordo com o ordenamento jurídico? Qual conduta poderia ser reprimida pelo Estado?

A adequação substancial da norma ao ordenamento jurídico busca fazer do Direito um fenômeno lógico, despido de conflitos internos. Teoricamente, não é possível que haja duas normas válidas dispondo em sentidos diferentes, pois uma subtrairia validade à outra, porque superior hierarquicamente, porque mais nova ou porque mais específica. Todavia, na realidade cotidiana dos operadores jurídicos, os conflitos de norma, isto é, as antinomias estão presentes. Para solucioná-las, deve-se lançar mão exatamente às regras explicitas ou implícitas de validade do ordenamento.

É preciso destacar que as condições de validade aqui expostas são meramente exemplificativas. Não se pretende exaurir a várias regras que os mais diversos ordenamentos jurídicos prevêem para conceder ou subtrair validade à suas normas. A relação seria de longa extensão e estaria necessariamente sujeita a incompletude.

O que se pretende ressaltar é que a vigência da norma está condicionada à sua adequação ao ordenamento de que ela faz parte. Como já dito acima, a validade, em seu sentido técnico-jurídico, refere-se à norma dentro do todo jurídico. Neste sentido, está pressuposta a existência de um conjunto de disposições que organizam o Direito de um Estado.

O que sobressai na análise da vigência é que o ordenamento jurídico é a própria fonte de validade da norma. A norma é válida quando nasce de acordo com seus pares pré-existentes, em forma e em conteúdo. E permanecerá vigente enquanto suas semelhantes não lhe subtraírem esta condição. O ordenamento jurídico se retro-alimenta, mantendo assim vivos os fundamentos materiais e sociais que originaram sua existência.

2.4.Hierarquia normativa

Um dos pontos mais relevantes na análise da vigência da norma refere-se à hierarquia estabelecida dentro do ordenamento jurídico: a maneira como as normas se organizam e se amoldam umas às outras, formando o corpo jurídico vigente.

Dentro da ordem de Direito, as normas não são acumuladas aleatoriamente, concorrendo umas com as outras no mesmo nível. Elas se estruturam de forma hierarquizada, partindo da norma superior, genérica, abstrata e fundamental, passando por toda uma cadeia para chegar finalmente às normas de menor hierarquia, concretas e específicas. "O ordenamento jurídico não é, portanto, um sistema jurídico de normas igualmente ordenadas, colocadas lado a lado, mas um ordenamento escalonado de várias camadas de normas jurídicas" (KELSEN, 2003, p. 103). A validade de qualquer norma vem daquela que lhe é imediatamente superior na hierarquia normativa.

Kelsen exemplifica a estrutura hierárquica normativa perguntando:

Por que determinado ato coercitivo, como [...] que um indivíduo prive outro de liberdade, encarcerando-o numa prisão, é um ato jurídico e, portanto, pertencente a determinado ordenamento jurídico, assim será a resposta: porque esse ato foi prescrito através de determinada norma individual por uma sentença judicial.

Pergunta-se em seguida: por que essa norma individual vale, e justamente como parte de um ordenamento jurídico bem determinado e recebe-se a resposta: porque corresponde a uma lei do Código penal. E se se indaga do fundamento da validade do Código Penal, chega-se à Constituição do Estado, de cujos artigos foi criado o Código Penal, pelo órgão para isso competente, de um dos procedimentos prescritos na Constituição (2003, p. 97).

Também na execução de um contrato encontra-se a hierarquia das normas. Se um indivíduo presta um serviço, como pintar um muro, e outro lhe paga, estarão cumprindo os ditames de um contrato que firmaram, no qual acordaram preço, modo de execução, etc. O preço e o serviço podem ser exigidos porque o contrato os valida. A vigência do contrato estará sustentada pela legislação civil que estipula a forma e o conteúdo possível do contrato. Esta legislação, por sua vez, tem vigência porque está conforme a Constituição.

Da mesma forma, um ato administrativo vale porque está em consonância com o regulamento do órgão da Administração que o executou. O regulamento tem vigência porque correspondeu ao decreto originário do Poder Executivo. Este retira sua validade da lei. E esta, por fim, encontra sua vigência na Constituição. Hierarquicamente, a Carta Magna está acima de todas as normas, emprestando validade a toda a cadeia. Por seu turno, o ato administrativo, absorve validade de todo o conjunto que lhe está acima.

Mas se, eventualmente, houver um ruído na estrutura de validade, como, por exemplo, a invalidação da lei por inconstitucionalidade? Se a lei perder sua validade, estará comprometida a vigência de toda a cadeia. O decreto, o regulamento e o ato, que lhe estavam abaixo, serão inválidos. Todavia, se apenas o regulamento estiver em desacordo com o decreto, carecerá de vigência apenas ele mesmo e o ato. As demais normas, porque estão em posição hierárquica superior, não tem sua validade comprometida por uma norma menor.

Mais uma vez se ressalta que a estrutura de validação, isto é, qual é a norma superior e qual é a inferior, como ocorre a validação de uma norma por sua superior, qual o caminho admitido pelo Direito para a correta vigência da norma será definido pelo próprio ordenamento. Assim, a Carta Magna preverá o que é uma lei constitucional, as leis preverão o que são contratos, decretos ou sentenças válidos e assim sucessivamente, até chegar-se em atos concretos.

Cada norma jurídica está ligada a uma cadeia de validade, que parte da norma fundamental e chega aos atos executórios específicos. Como em geral há apenas uma norma fundamental da qual se originam várias leis, de cada lei é possível que se originem vários decretos, contratos e sentenças e destes é possível que se originem vários atos executórios, criou-se a imagem de uma pirâmide para representar o ordenamento jurídico.

Desde as simples normas contratuais, estabelecidas entre particulares, até a Constituição Nacional, forma-se [...] uma autêntica pirâmide jurídica, na qual a juridicidade de cada norma é haurida da juridicidade da norma que a suspende (TELLES JÚNIOR, 1967, p. 171 apud BASTOS, 2002, p. 624).

Na base da pirâmide estão os inúmeros atos específicos e concretos que se originam de normas também concretas, mas em número menor; estas retiram vigência de um número cada vez mais reduzido de normas que são cada vez mais genéricas, chegando-se enfim ao ápice da pirâmide, onde está assentada a Constituição, norma fundamental e abrangente, que é o sustentáculo de validade de todas as outras. Considerando que um dos principais teóricos da hierarquia normativa foi o austríaco Hans Kelsen, constuma-se denominar esta estrutura geométrica jurídica de Pirâmide de Kelsen.

É importante destacar que a hierarquia normativa se desdobra em seus aspectos formal e substancial. Tanto a norma deve chegar ao mundo jurídico pela forma já prescrita por outras normas de hierarquia superior, quanto seu conteúdo deve estar de acordo com o destas. A Pirâmide se aplica para os dois casos.

Um decreto, por exemplo, pode padecer de falta de validade por ter sido expedido por autoridade incompetente. Uma norma superior determinava que a autoridade A poderia decretar, mas quem o fez foi a autoridade B. O defeito é uma carência formal, porque independente do conteúdo do decreto, mas é suficiente para torná-lo inválido. Este mesmo decreto, porém, pode ter sido promulgado na forma regular, mas ter substância que afronte lei de hierarquia superior. Neste caso, mesmo a forma perfeita não lhe garante validade: seu conteúdo deve se adequar à norma superior. A adequação à norma superior deve ser formal e substancial, a fim de garantir a plenitude da vigência da norma jurídica.

Uma questão relevante sobre a hierarquia é a impressão de que as normas, porque obedecem às que lhe são superiores, fluem umas das outras naturalmente. Parece que o Código Penal, porque decorrente da Constituição, será meramente uma especificação do conteúdo desta, numa operação lógica de detalhamento do que é geral. Esta é, porém, uma sensação falsa e não traduz a realidade da criação da norma jurídica. Evidentemente, uma norma não pode ferir o conteúdo de outra que lhe seja hierarquicamente superior. Mas há inúmeras vias que se pode adotar sem que se constitua nenhuma afronta. A escolha de qualquer dos caminhos é um processo consciente, um ato de poder daquele que faz a norma.

Suponhamos uma Constituição que consagre o direito à vida, mas não vede expressamente a pena de morte. Se o legislador, ao elaborar o Código Penal, estabelecer a pena capital para os casos mais graves de homicídio, será discutível a violação da disposição constitucional. Uma condenação à morte priva a pessoa sobre quem ela recai do direito vida, constitucionalmente garantido; todavia, a pena só existe para, dada sua gravidade, evitar homicídio, garantindo o mesmo direito. Então, há afronta ou defesa do conteúdo da norma superior?

A decisão sobre a adequação do Código à norma superior, no caso a Carta Magna, caberá ao legislador e ao tribunal que avalia a constitucionalidade das normas. De qualquer forma, não é uma operação matemática que solucionará a questão, mas uma escolha consciente que se refletirá numa manifestação de poder do legislador ou do julgador constitucional. A adequação das normas à hierarquia do sistema jurídico não muda o caráter político do Direito.

As normas particulares [...] não podem resultar logicamente da norma fundamental, isto é, de maneira espontânea. Elas devem, como é natural, ser criadas por um ato especial de determinação positiva, o qual não é um ato da mente e sim da vontade. O que é essencial é que esse ato especial de determinação positiva tenha obedecido às condições do sistema segundo a norma fundamental (REALE, 1998, p. 169).

Se não fosse assim, seriam desnecessários legisladores, julgadores, contratantes etc. Bastaria o poder promulgador da Constituição e o resto seria automático: uma norma decorrendo da outra naturalmente. Todavia, o Direito não funciona como a matemática. Toda criação de Direito pressupõe um ato de vontade e poder. A partir de uma norma superior podem decorrer inúmeras outras normas inferiores versando sobre o mesmo tema de formas contrárias entre si, mas sempre de acordo com a norma que lhe está acima. O caminho adotado será uma opção do normatizador.

Na venda de um objeto, por exemplo, as partes podem acordar infinitos preços. O preço contido no contrato será uma norma obrigatória para aquele que se comprometeu a pagar. Porém, qual o preço devido, isto é, qual a nova norma que se deve criar? Isto não decorre logicamente da legislação civil. No Brasil, se este valor não resultar de erro, dolo, coação, estado de perigo ou lesão, qualquer que seja ele, será válido.

A norma superior, essencialmente, estabelece limites dentro dos quais a norma inferior deve se enquadrar. Mas ela, em geral, permite uma margem razoável de escolha ao normatizador inferior. Evidentemente, quanto menos genérica e mais concreta a norma, menos espaço haverá para a criação de sua inferior.

2.5.Validade da norma e a solução de antinomia

Antinomia é a contradição entre duas normas jurídicas. Quando uma norma autoriza determinada conduta e uma outra a veda, verifica-se a antinomia, isto é, a incoerência entre dois dispositivos de Direito. Por definição, para a Ciência Jurídica, antinomia é a discordância entre duas normas válidas.

Para que haja real incompatibilidade entre duas normas será preciso que:

a)Ambas as normas sejam jurídicas [...].

b)Ambas sejam vigentes e pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico [...].

c)Ambas devem emanar de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, prescrevendo ordens ao mesmo sujeito.

d)Ambas devem ter operadores opostos (uma permite, outra obriga) e os seus conteúdos (atos e omissões) devem ser a negação interna um do outro [...].

e)O sujeito, a quem se dirigem as normas conflitantes, deve ficar numa posição insustentável (DINIZ, 1998, p. 21).

A comparação entre uma norma vigente e outra revogada, por exemplo, não importa à Dogmática Jurídica. Importa à História do Direito ou à Axiologia Jurídica, mas será improvável que alguma discussão seja suscitada em um Tribunal quando os três pólos da relação processual concordam que se confronta uma norma válida e outra revogada.

A antinomia é um ponto de deficiência do ordenamento que traz insegurança jurídica às pessoas submetidas aos seus comandos. Toda norma jurídica se dirige pelo menos a dois indivíduos simultaneamente. A norma não estabelece uma conduta isolada; ela é dinâmica, pois disciplina as relações entre sujeitos. "A relação jurídica não toca apenas a um sujeito isoladamente, nem ao outro, mesmo que se trate do Estado, mas sim ao nexo de polaridade e de implicação dos dois sujeitos" (REALE, 2002a, p. 691).

Uma sentença pode condenar uma das partes, reconhecendo o direito da outra ou homologar um acordo: em ambos os casos, as duas partes estão envolvidas num nexo de obrigação e direito; o contrato estabelece obrigações e direitos de uma parte à outra; os direitos dos cidadãos previstos na Constituição, quando não exigem uma ação proativa do Estado, no mínimo estabelecem a toda coletividade a obrigação de respeitar-lhes.

Exatamente porque o Direito se direciona a mais de uma pessoa, a antinomia estabelece insegurança nas relações jurídicas. Se uma lei, por exemplo, permitir aos indivíduos o uso livre de um parque público, mas um regulamento exigir que a polícia reprima o uso daquele mesmo espaço, como as pessoas poderão gozar livremente de seu direito legalmente previsto? Se ambas as normas fossem válidas, como adequar o livre uso e a repressão policial, que limita a liberdade. Quem age segundo o Direito? O funcionário público que, obedecendo ao seu regulamento, viola a lei ou o cidadão que, exercendo seu direito, desafia a autoridade pública?

Destarte, duas normas jurídicas discordantes não podem prevalecer com a mesma validade dentro de um mesmo ordenamento jurídico. Se o mesmo ordenamento previsse direitos incompatíveis a pessoas diferentes, os cidadãos entrariam em conflito na exigência de seus direitos e ambos estariam resguardados por normas igualmente válidas. Se, independente das antinomias, os tribunais estão sempre cheios de conflitos, admiti-las no mundo jurídico seria abrir as portas do Direito para o caos.

Para a solução de antinomias, Maria Helena Diniz aponta três critérios: o hierárquico, o cronológico e o de especialidade (1998, p. 34). Note-se que os critérios apontados são exatamente as regras do ordenamento que determinam a validade.

Por exemplo, uma norma presente talvez em todo ordenamento jurídico (pelo menos intrinsecamente) determina que a norma mais nova revogue a mais antiga: é o critério cronológico. Assim, se duas normas conflitam, prevalece a mais jovem, pois a anterior perdeu sua validade: é a revogação tácita já apresentada acima. Da mesma forma, a especificidade da norma, a revogação expressa, a incompetência do normatizador etc. são meios de definir qual a norma deve prevalecer em caso de antinomia. O ordenamento jurídico, ao estabelecer suas regras de validade, indiretamente, cria a solução para seus conflitos internos. Exatamente porque duas normas incompatíveis e válidas não podem conviver, o ordenamento estabelece meios de retirar a validade a uma das duas.

Uma regra relevante para solução de antinomias é a hierarquia normativa. Uma norma, se conflitante formal ou materialmente com outra que lhe é superior, será inválida. Porque inválida, não comporá o ordenamento jurídico, eliminando-se assim a antinomia. A lei inconstitucional ou o contrato ilegal, em princípio, seriam origem de uma antinomia. Mas se são inválidos, não há que se falar em conflito, não há antinomia a perturbar o bom funcionamento do Direito.

Por isso, em termos meramente teóricos, abstraindo-se o Direito da realidade cotidiana, as antinomias não existem de fato. Se o próprio ordenamento jurídico subtrai a validade de uma das duas normas conflitantes, estamos diante do conflito entre uma norma jurídica e um texto qualquer sem valor nenhum dentro do sistema. Ante o conflito, por meio das regras de validade, qualquer um poderia saber qual a norma adequada. Teoricamente a norma inválida é uma não-norma, não tem vida jurídica. Não há, pois, conflito entre vivos e mortos.

Porém, no mundo de verdade, existem fantasmas jurídicos. O conflito de normas não é algo tão evidente que seja aferido uniformemente por todas as pessoas. Mais acima trouxemos o exemplo de uma lei que preveja a pena de morte para homicidas em um Estado em que a Constituição defenda a vida, mas não vede expressamente aquela condenação. Poderiam particulares armar-se e resgatar um condenado à morte antes de sua execução, baseando-se na inconstitucionalidade da lei? Seria permitido a qualquer pessoa, por conta própria, violar um contrato, por crê-lo ilegal, sem que o outro contratante pudesse fazer nada?

Assim como admitir a existência de antinomia traria a desordem para o sistema jurídico, permitir a qualquer pessoa a violação da norma, por reputá-la inválida, desorganizaria qualquer sociedade. Bastos, falando do conflito entre leis e Constituições, retrata o desalinho a que se chegaria:

Ao conferir a qualquer um a competência de declarar uma lei inconstitucional, como escusa para seu descumprimento, chegaríamos ao absurdo de ver o Executivo deixar de cobrar tributos, de efetuar prisões, de interditar estabelecimentos, toda vez que reputasse a lei como contrária à Constituição. Assistiríamos, por outro lado, ao particular resistir a balas à ordem de prisão emanada de uma autoridade, derrubar obstáculos ao trânsito em certas vias etc., toda vez, também, em que, segundo seus critérios subjetivos, as medidas de poder público estivessem escoradas em leis inexistentes, por ferirem a Constituição, embora emanadas do Poder criado pela Constituição com o fim de fazer normas de direito (2002, p. 629).

Por este motivo, as normas jurídicas gozam de presunção de validade quando atendem a requisitos mínimos. Quando a norma é emanada pelo poder aparentemente competente, por meio do procedimento aparentemente correto, presumivelmente ela é valida. Assim, a lei que provém do Legislativo tem presunção de vigência, os atos administrativos têm presunção de legitimidade ou veracidade, as sentenças transitadas em julgado têm presunção de validade. Assim, para que a norma seja obrigatória, imponível, origem de coerção, não é preciso que ela atenda, em princípio, a todos os requisitos de validade.

Mas como compatibilizar a segurança jurídica, que não é possível sem obediência às normas de validade, com a adequada imposição da ordem social, que exige presunção de validade para toda norma jurídica? Kelsen responde a esta pergunta concedendo uma validade especial à norma jurídica que transgride as regras de vigência. "A Constituição não só admite a validade da lei conforme a Constituição, como também, em certo sentido, a validade da lei inconstitucional, pois deste modo não se poderia falar da ‘validade’ desta última" (KELSEN, 2003, p. 110).

Assim, à norma que atenda a requisitos mínimos, o próprio sistema jurídico concede validade especial, até que o poder competente declare-a inválida. Neste sentido, a lei será válida até que o Tribunal Constitucional (ou qualquer outra instituição semelhante) declare-a inconstitucional. Os atos administrativos vigem até sua anulação pelo Poder Judiciário ou pela própria Administração. A legalidade dos contratos deve ser questionada judicialmente. A sentença transitada em julgado poderá ser logo executada, até sua rescisão ou revisão. Por isso, a norma que afronta as regras de validade não é uma não-norma. Ela é uma norma válida, componente do sistema jurídico, mas passível de invalidação.

Neste sentido, há normas que podem violar as regras de validade, mas continuar existindo no ordenamento jurídico até a exaustão de seus comandos. Se um acordo ilegal, por exemplo, um contrato de trabalho em que o salário do empregado seja inferior ao mínimo legal, for cumprido por seus contratantes, sem que nenhum deles o questione judicialmente, ele terá sido uma norma válida, que perpetrou seus objetivos, muito embora afrontasse uma norma hierarquicamente superior. Da mesma forma, uma sentença que não é mais passível de rescisão, por mais que seu conteúdo ofenda aos princípios constitucionais, fará parte eternamente do ordenamento jurídico, por força da coisa julgada, que lhe garante validade perpétua.

Mas esta característica de validade especial permanente é mais comum em normas mais concretas e menos abrangentes. A sentença e o contrato, porque se aplicam apenas às partes, se inconstitucionais ou ilegais, prejudicarão apenas os envolvidos, o que não ameaça a segurança jurídica do sistema como um todo. Ademais, eles se exaurem com seu cumprimento, cessando, assim, a produção de efeitos que afrontam regras de validade.

Já as normas mais genéricas, como leis, emendas constitucionais ou atos administrativos, em geral, são sempre passíveis de invalidação, já que atingem um número maior de destinatários e seus efeitos não se exaurem até que haja revogação por outra norma. Caso contrário, não haveria nem necessidade de regras de validade, vez que não seria possível desfazer a ação indevida do normatizador. Mas também não haveria necessidade de Direito, pois a segurança jurídica seria apenas uma teoria.

Em síntese, a antinomia é uma deficiência real do Direito, pois mesmo as normas que desafiam as regras de vigência possuem validade, ou seja, têm parte juridicamente admitida dentro do arcabouço legislativo estatal. Todavia, a fim de resguardar a segurança jurídica, cuja existência padece diante do conflito de normas, o ordenamento determina meios para fulminação da validade especial concedida às normas que desafiam as regras de vigência. Desta forma, garante-se a ordem social, pois se impede que qualquer pessoa desobedeça ao Direito por conta própria, e ainda se preserva a segurança jurídica, vez que se cria meio para eliminação de antinomias.

2.6.Hierarquia normativa como pressuposto do Estado de Direito

Um último ponto a ser destacado sobre a hierarquia da norma é que a solução de antinomias é uma conseqüência destas regras de vigência e não sua origem. O sistema interno do ordenamento que estrutura os dispositivos jurídicos não existe apenas com objetivo de por termo ao conflito de duas normas contraditórias. Até mesmo porque, no nível puro da teoria, estes conflitos sequer existem.

É certo que a solução de antinomias se dá por meio de regras internas do ordenamento jurídico. Todavia, essas normas, inclusive as de hierarquia, servem para a solução de antinomias, porém não existem porque há antinomias. As principais regras hierárquicas se originam em razões que se confundem com os fundamentos da existência do próprio Estado de Direito. Evidentemente, todo ordenamento jurídico pode criar regras com o único objetivo de solucionar conflitos de normas; todavia, as principais regras hierárquicas vêm de motivos mais profundos e essenciais ao sistema jurídico.

A hierarquia jurídica advém basicamente da organização do Estado de Direito, em sua concepção moderna e contemporânea. O escalonamento de normas existe primeiramente por causa da supremacia do Estado, enquanto principal ente da organização política, sobre os particulares. Adicionalmente, o conceito de divisão de funções do Estado, isto é, a idéia de freios e contrapesos do poder, que foi estruturada no pensamento de Montesquieu, também resulta na existência das regras de hierarquia. Enfim, a graduação dos preceitos jurídicos vem da supremacia da Constituição em relação à legislação e aos órgãos de poder do Estado.

Desde o início da Idade Moderna, quando se firmaram os primeiros Estados, entes com a forma que (com algumas modificações) ainda se impõe na política das sociedades contemporâneas, a possibilidade de normatizar o comportamento social foi monopolizada por estas pessoas. O Estado passou a ser a única fonte legítima da força, detentor do poder, sobre o qual reclama exclusividade. Desde os primeiros Estados absolutistas até as democracias ou os Estados teocráticos contemporâneos, nas mais diversas formas de enxergá-los, apoiá-los ou criticá-los, os Estados são tidos como os principais centros políticos, impondo comportamentos sobre a sociedade.

Não se pretende negar as diversas funções que outras instituições, como empresas, associações ou ONGs, desempenham na sociedade, exercendo, em sua medida, alguma forma de poder; não se pretende também justificar a supremacia estatal; nem sequer se pretende discutir como se forma ou como se materializa o poder dentro da complexa estrutura social e estatal. Mas é forçoso constatar que a partir do século XVI, em diferentes momentos, a estrutura política nas diversas partes do mundo chegou à centralização política no Estado, à "concentração do poder numa única pessoa. É esta característica a principal nota formadora do Estado moderno" (BASTOS, 2002, p. 6).

A implicação imediata desta sobreposição de poder do Estado sobre as demais pessoas é que as normas emanadas por aquele ente têm preponderância sobre todas as outras. A supremacia estatal define a base da pirâmide hierárquica normativa: as disposições jurídicas originárias dos particulares estão abaixo de todas as normas estatais. Assim, um contrato, uma petição junto à administração ou um ato processual da parte são normas e atos jurídicos submetidos às normas estatais, porque estas são hierarquicamente superiores.

A liberdade contratual, isto é, o poder de normatizar direitos e obrigações não proibidas não subverte a submissão das normas particulares às estatais. Até mesmo porque há liberdade contratual quando e na forma que previr as normas do Estado. Assim, a primeira origem da hierarquia normativa está na própria existência do Estado moderno.

Outro fator relevante na formação da hierarquia normativa é a divisão das funções básicas do Estado: normatização, administração e julgamento. Admitido o Estado como principal centro político e monopolizador da força, mas na busca de dar-lhe configuração que afaste abusos de poder por parte daqueles que estão em seu controle, Montesquieu idealizou a divisão das funções precípuas da máquina estatal. Assim, porque está dividido, o poder controla o poder: é o sistema de freios e contrapesos que originou a divisão dos órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário.

Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo e o poder executivo, não existe liberdade; porque pode-se temer que o próprio monarca, ou o próprio senado, faça leis tirânicas, para executá-las tiranicamente.

Também não existe liberdade, se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o juiz seria o legislador. Se estivesse unida (sic) ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais, ou de nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as pendências entre particulares (MONTESQUIEU, 2002, p. 174).

A base deste pensamento está na concepção de um Estado que seja soberano, mas que garanta a liberdade individual. O conceito parte do princípio de que ao Estado é dada a exclusividade da força em benefício daqueles que estão sob seu domínio e não em favor dos que detém o controle estatal. Para que se evitem abusos e garanta-se, pois, o benefício coletivo, o próprio poder do Estado é usado para controlar os controladores do poder.

Esta teoria, que remonta ao século XVIII, ainda é amplamente aplicada nos Estados ocidentais contemporâneos, muito embora já revista e aperfeiçoada por vários pensadores desde então. O artigo 2º da Constituição Federal brasileira traz em destaque a adoção do sistema montesquieuniano de distribuição das funções estatais: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" (BRASIL, 1998).

Neste sentido, se é preciso que o Executivo e o Judiciário estejam apartados do Legislativo, é preciso que as normas emitidas por este poder estejam em grau superior ao das normas emitidas por aqueles. É essencial que as normas vindas do órgão responsável pela legislação submetam os órgãos responsáveis pela administração e pelo julgamento. Se fosse possível aos órgãos do Estado executar as resoluções públicas ou julgar sem observância das normas legislativas, para que serviriam estas normas? Se qualquer que fosse o órgão pudesse ignorar as normas do poder legislador, não haveria separação dos poderes.

De pouco adiantaria a separação de funções se um decreto do Executivo pudesse desafiar o conteúdo da lei. Estaria o Executivo, na verdade, legislando, quando esta não é sua função. Se o Judiciário passasse a julgar sistematicamente contra legem, pra que leis? E se assim o fizesse, não estaria este órgão legislando em cada julgamento? Estaria invadindo a função que não lhe cabe e, pior ainda, legislando posteriormente ao conflito e casualmente! Se isto não é arbítrio e tirania, será difícil saber o que é.

Estabelece-se, assim, o segundo nível da pirâmide hierárquica: no nível mais baixo estão as normas privadas, em seguida, as normas estatais não originárias do Poder Legislativo. Por isso, os contratos podem ser modificados por sentenças, mas estas não podem, pelo menos não sistematicamente, desafiar a legislação. A hierarquia normativa surge, desta forma, em função da soberania do Estado e da separação das funções estatais.

Por fim, o terceiro principal elemento originador da hierarquia normativa é a supremacia da Carta Magna do Estado. No momento da formação do Estado, as pessoas responsáveis por sua organização distribuem as competências e organizam as bases sobre as quais ele irá funcionar. Estas pessoas podem ser uma Assembléia Constituinte, um corpo de nobres, um grupo revolucionário ou mesmo um exército. Fato é que este poder formador determinará como será a constituição material do ente político nascente.

Por vezes, esta organização é reduzida a termo, vindo a se tornar a Constituição deste Estado nascente. Evidentemente, que a existência deste texto escrito não é condição da formação do Estado. Mas, escritas ou não, haverá normas que determinam como e quem exercerá os poderes estatais. Serão definidos os responsáveis pela legislação, os incumbidos dos julgamentos, os que exercerão a administração, os que representarão o Estado perante a população e perante outros Estados, os direitos e princípios mínimos a que este Estado pretende se submeter etc. Assim, a Lei Maior do Estado pode ser um único texto legislativo, mas também podem ser textos distintos ou mesmo não ter existência formal. Em qualquer das hipóteses, porém, tácita ou expressamente, será formada a Constituição do Estado.

A doutrina jurídica faz distinção entre Constituição em sentido formal e em sentido substancial. Na primeira acepção, a Lei Maior seria necessariamente um texto positivo, com hierarquia superior às demais disposições legislativas: é o que se denomina Constituição Formal. No outro sentido, seria a norma expressa ou tácita que organiza, que constitui o Estado: a Constituição Substancial. Neste ponto se encontram duas formas de hierarquia, uma que se origina dentro do próprio ordenamento jurídico e outra que vem da organização do Estado.

A Constituição Formal, por vezes, determina que alguns de seus dispositivos ou todos eles são imutáveis ou só podem ser alterados por meio de um processo legislativo especial. Com isso, ela estabelece a hierarquia entre seu próprio texto e as demais normas: se a lei comum não pode modificar a Carta Magna, logicamente também não pode dispor de maneira que lhe seja contrária, o que seria o mesmo que modificá-la. A Constituição, por si mesma, se coloca em posição superior, obrigando as demais leis a obedecer-lhe. Esta é uma regra que advém do próprio sistema jurídico. A Lei Maior cria a regra de auto-preservação, impondo-se sobre todas as demais normas do sistema.

Exatamente porque é regra derivada do sistema, portanto não possui fundamentação na própria existência do Estado, há sistemas jurídicos que não a adotam. A Dogmática Jurídica chama as Constituições que não prevêem esta regra de flexíveis, pois o normatizador comum pode curvá-la à suas disposições. Como qualquer texto legislativo pode alterar a Lei Maior, não há hierarquia. Precisamente porque esta é uma regra derivada do próprio sistema, adotá-la ou não é uma opção do Constituinte.

Diferente é a hierarquia estabelecida por qualquer que seja a Lei Maior, flexível ou não, em relação às normas que constituem o Estado. As regras que organizam o Estado, isto é, distribuem os poderes e funções que o Estado exerce na sociedade e regram o processo legislativo, possuem hierarquia superior a todas as demais normas, exatamente porque formam este ente político. Se a legislação inferior lhe modificar, estará na verdade alterando a própria personalidade do Estado, extinguindo o sistema jurídico antigo e colocando outro em seu lugar. Mesmo que o Estado novo possua a mesma denominação, população e território do antigo, sua organização jurídica toda será outra, como um outro Estado.

Se, por exemplo, uma lei extinguir o órgão julgador e acumular sua função no órgão legislador, em outras palavras, se uma norma abolir o Judiciário e passar suas atribuições ao Legislativo, todo o sistema jurídico sofrerá alteração. As sentenças, que até então eram normas válidas, estarão fragilizadas. As ordens judiciárias para repressão das inconstitucionalidades do legislador não existirão mais. O sistema jurídico todo padecerá diante de tal alteração, dando lugar a um outro sistema jurídico, como se fosse um novo Estado.

O mais comum na história é o órgão administrador usurpar as funções do legislador. Inúmeros são os casos, em especial no Brasil, em que o Legislativo é fechado pela força de um exército e o Executivo lhe assume as funções. Neste contexto, a hierarquia entre normas do legislador e outras normas estatais perde sentido, porque se fulminou todo o sistema jurídico. Aqui, porque se violou as normas constituintes do Estado, porque se desobedeceu à hierarquia básica de superioridade da norma Constitucional sobre os demais atos, porque à força se deu juridicidade a um ato que não cabia no sistema jurídico, rompeu-se o próprio sistema, formou-se um novo Estado.

Desta forma, a superioridade das normas constitucionais que estruturam o Estado, isto é, a preponderância das normas que formam o ente político é condição de existência deste ente, estejam elas escritas ou não. A violação desta hierarquia implica na extinção do sistema jurídico e sua substituição por um novo. A hierarquia aqui não é determinada pelo próprio sistema, como a prevista nas Constituições Formais, mas é condição de existência da organização jurídica vigente: sem ela, o próprio sistema jurídico se torna inválido. A regra é pressuposto do sistema e não resultado dele. A Constituição, em seu conteúdo essencial, sempre estará acima das demais normas; senão, o próprio sistema jurídico poderá padecer.

Assim, o ordenamento jurídico pode, entre as inúmeras normas que possui, criar regras hierárquicas com o objetivo de solucionar antinomia. Todavia, há regras mínimas que não são meras exigências formais, criadas pelo legislador ou impostas pela doutrina jurídica. Um mínimo da hierarquia é pressuposto da existência do Estado de Direito. A supremacia das normas públicas sobre as privadas, a preponderância das normas derivadas do órgão legislador sobre os dispositivos derivados dos outros órgão e a supremacia das normas que constituem o Estado sobre as normas comuns são condições da existência do Estado de Direito. É certo que estas normas servem à solução de antinomias, mas não é este o motivo de sua existência. Sem elas, o próprio Estado de Direito tem sua validade comprometida.

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Sobre o autor
Hugo Alexandre Cançado Thomé

bacharel em Direito em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMÉ, Hugo Alexandre Cançado. Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1529, 8 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10388. Acesso em: 24 abr. 2024.

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