Para minimizar o gravíssimo problema decorrente do descumprimento de precatórios judiciais ao longo dos tempos, tornando impossível a sua regularização mediante recursos financeiros normais, veio à luz a Lei nº 11.429/06 possibilitando o pagamento de precatórios e da dívida fundada dos estados e do Distrito Federal mediante a utilização de até 70% dos valores depositados em juízo, cujos depósitos são feitos para suspender a exigibilidade do crédito tributário em discussão. Essa utilização está condicionada à manutenção pelo estado ou DF de um fundo de reserva de 30%, corrigido pela taxa SELIC, como garantia do depositante para a hipótese de ele lograr vitória na demanda judicial.
À época da vigência da lei anterior, a Lei nº 10.482/02, alguns estados regulamentaram-na para utilização de recursos financeiros provenientes de depósitos judiciais exclusivamente para pagamento de precatórios de natureza alimentícia, o verdadeiro espírito da citada lei federal. Outros estados, entretanto, desvirtuaram a sua finalidade, permitindo a utilização desses recursos para construção de edifícios públicos, notadamente, de prédios destinados ao Judiciário. O Município de São Paulo, também, chegou a regulamentar a referida lei federal, permitindo o pagamento de precatórios e de dívidas fundadas.
A nova lei básica nacional permite a utilização de recursos provenientes de depósitos judiciais para dois fins específicos: (a) pagamento de precatórios; e (b) pagamento de dívida fundada. Na realidade, resume-se, praticamente, a uma só finalidade, qual seja, o pagamento de precatórios do exercício e daqueles não liquidados no exercício que, por determinação do § 7º, do art. 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 100/03), devem ter os seus valores incluídos no montante da dívida fundada ou consolidada, para efeito de observância dos limites globais de endividamento dos estados, DF e dos municípios.
Entretanto, o governo do Estado de São Paulo enviou projeto de lei à Assembléia Legislativa, procurando buscar autorização legal para utilizar até 70% dos recursos provenientes de depósitos judiciais (cerca de 980 milhões até agosto/2007) para pagamento de obras e serviços para modernização do Poder Judiciário, do Ministério Público, da segurança pública, do sistema penitenciário, para construção de fóruns e estradas vicinais, além de pagamento de precatórios.
É a tentativa de perpetração de um autêntico ato de improbidade administrativa, passando por cima de regras elementares de direito financeiro. As despesas aí previstas hão de ser fixadas na lei orçamentária anual de conformidade com a previsão de receitas, representando o plano de ação governamental.
Não é dado ao estado invocar como fonte de custeio das despesas receitas que não lhe pertencem (depósitos judiciais para discussão de dívida ativa). Do contrário, o orçamento anual já nasceria com desequilíbrio financeiro.
O desrespeito à ordem jurídica parece não ter fim. A utilização excepcional dos recursos depositados em juízo foi autorizada, por lei federal, para quitar os precatórios judiciais que, por conta de sistemática violação de preceitos legais e constitucionais, formaram uma verdadeira "bola de neve" impossibilitando a sua regularização por via normal.
Agora, o mesmo governo que originou essa "bola de neve" dos precatórios quer acabar com preceitos legais e constitucionais, que regem a elaboração de lei orçamentária anual.
Isso equivale a DRU estadual. DRU corresponde ao antigo Fundo Social de Emergência ou Fundo de Estabilização Fiscal, que retira do orçamento anual da União, 20% do produto da arrecadação de tributos, para ser gasto segundo a discrição do Chefe do Executivo, e não, segundo as despesas fixadas na lei orçamentária anual.
A propositura legislativa em questão é inconstitucional, ilegal, oportunista e imoral à medida que representa um benefício que se pretende extrair dos males que causou aos credores de precatórios.
A classe jurídica deve reagir com indignação às proposituras da espécie, que vibram um golpe mortal sobre o combalido instituto do orçamento anual, na verdade, instrumento de exercício da cidadania, à medida que cabe à sociedade, por via do Legislativo, direcionar a aplicação das receitas previstas na realização de despesas fixadas. Valores depositados em juízo não se confundem com receitas previstas.
O astuto instrumento normativo proposto funcionaria como sucedâneo de operações de crédito além dos limites globais de endividamento do estado, contraindo novas dívidas de forma sub-reptícia, ilegal, inconstitucional e irresponsável.