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Medidas protetivas de urgência e a lei 14.550/23: uma visão crítica

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Culpabilizar os homens sem espaço para a presunção de inocência, na sanha punitivista das feministas, não somente prejudica os inocentes, mas também atravanca o caminho da justiça de mulheres vítimas de violência, realmente necessitadas de proteção.

A Lei 14.550/23 acrescentou os §§ 4º., 5º. e 6º. ao artigo 19 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), determinando novos comandos de tratamento para a análise e concessão de Medidas Protetivas de Urgência para mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

O § 4º. estabelece os critérios de avaliação do pedido de Medidas Protetivas pelo magistrado. A legislação deixa claro que a concessão da medida não deve primar por um suposto juízo exauriente do caso concreto apresentado, mas orientar-se por um “juízo de cognição sumária”, tendo como parâmetro básico o depoimento da ofendida perante a Autoridade Policial ou suas alegações escritas.

O dispositivo contém a semente de um perigo, especialmente nos tempos midiáticos de condenação sumária fundada em identitarismo de toda espécie e em decisões tomadas com menos preocupação com a Lei, o Direito e a Justiça do que com a indicação de supostas “virtudes” exigidas pelo chamado “politicamente correto”.

Justamente uma famosa e conceituada feminista, Camille Paglia, diagnosticou nosso atual estado de repressão intelectual:

A História move-se por ciclos. A chaga do politicamente correto e os ataques à liberdade de expressão que surgiram nos anos 80 e foram algo contidos nos anos 90 regressaram em força. Nos Estados Unidos, tanto as universidades como os meios de comunicação convencionais são atualmente controlados por uma censura do pensamento, cheia de boas intenções mas implacável, tão dogmática nos seus pontos de vista como as autoridades da Inquisição espanhola. Mergulhamos mais uma vez num caos ético em que a intolerância se disfarça de tolerância e a liberdade individual é esmagada pela tirania do grupo. [1]

Na senda da aguda percepção de Carson pode-se realmente dizer que a “nova tolerância é inerentemente intolerante”. Desprovida de autocrítica, apresenta “uma atitude de superioridade moral” e não admite questionamentos, tornando-se “parte da estrutura de plausibilidade do mundo ocidental”. A nova tolerância é perigosa socialmente e “intelectualmente debilitante”. [2]

Gurgel alerta sobre a necessidade de ter coragem e hombridade de discordar, ainda que na contramão do “establishment”:

Alguns têm dificuldade para entender que a vida não é andar de mãos dadas com todos, cantando Ciranda, cirandinha, como se houvesse uma forma única de pensar, de entender os problemas. Não estamos aqui para essa falsa solidariedade, para a ternura hipócrita, mas para ver, olhar atentamente, observar, sair de nós mesmos e alcançarmos o drama dos outros, compreender seus motivos, ainda que, depois disso, sejamos obrigados a recusar suas explicações, sejamos obrigados a dizer um profundo não às escolhas que nosso semelhante fez, principalmente quando percebemos que essas escolhas nascem apenas do ressentimento, do rancor muitas vezes disfarçado numa suposta opção intelectual, numa falaciosa opção ideológica; rancor muitas vezes disfarçado em intelectualismo, no sentido de artificialismo das ideias, de simplificação exagerada do raciocínio. [3]

Como nos lembra Próton, com relação aos efeitos do discurso feminista nas universidades, na mídia e no Poder Judiciário:

Indiciamentos sem instrução probatória mínima, recebimento leviano de denúncias, vulgarização da prisão preventiva embasada no princípio da ordem pública, desvirtuamento da prisão cautelar como instrumento de “fazer justiça”, “vingança” ou “compensação histórica”, deturpação dos parâmetros constitucionais, deformação do sistema acusatório adotado no Estado Democrático de Direito, indiferença à individualização do acusado, julgamento do gênero midiaticamente demonizado. [4]

O problema é que a leitura superficial do § 4º., do artigo 19 da Lei Maria da Penha, com a nova redação dada pela Lei 14.550/23 pode ensejar uma falsa impressão, qual seja, a de que o Juiz pode e até deve conceder Medidas Protetivas tão somente com sustento na palavra da sedizente vítima, sem maiores avaliações, as quais, seriam até mesmo consideradas vedadas. A aparência enganadora é a da atribuição de um caráter absoluto à palavra da mulher, a qual não poderia nem deveria ser contrastada ou contraditada de forma alguma.

Na realidade, o § 4º. deve ser interpretado como uma orientação que seria uma obviedade, consistente em estabelecer que para a concessão de Medidas Protetivas de Urgência, a cognição é “não exauriente”, “sumária”, ou seja, não se trata de decisão definitiva sobre o mérito da violência. Realmente, embora isso possa parecer àqueles com menor vivência prática uma normatização desnecessária, dada a evidência da natureza dessas medidas, fato é que há magistrados que exigem muitas vezes praticamente uma comprovação completa de tudo quanto alegado para conferir medidas meramente cautelares e que visam à proteção urgente da pessoa supostamente violentada. Essa exigência exagerada pode ensejar a reiteração de atos de violência e até mesmo em casos mais graves, o homicídio (feminicídio) da mulher. [5]

A única função desse § 4º. parece ser realmente a de deixar claro que o excesso de exigências para a concessão das medidas não é adequado. No entanto, entre o excesso e a falta é preciso adotar a mediania virtuosa, conforme o ensinamento aristotélico:

Os homens são bons de um modo apenas, porém são maus de muitos modos. A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio - termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente no que concerne às ações e às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio-termo. [6]

 O embaraço é que a mediania não é um princípio racional próprio do homem (homem em geral), mas um "princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática". Esse "homem dotado de sabedoria prática" é aquele capaz de discernir a virtude com sustento na "teorética" e forjar então as normas de sua conduta considerada virtuosa (prática), as quais redundarão numa poiética (conduta efetiva, um fazer) coerente e benéfico. Diante disso se conclui que, independentemente da norma posta, sendo esse “homem dotado de sabedoria prática” uma raridade em meio à massa disforme da mediocridade, sempre haverá o perigo de malversação na aplicação da lei, seja para mais, seja para menos. O perigo que segue com o § 4º. em estudo é o de que se migre de alguns erros de exigência exagerada para outros de exigência praticamente nula, impondo-se medidas protetivas gravosas a homens tão somente pelo fato de serem homens e terem sido acusados de algo por uma mulher. Isso certamente não é uma regra ou princípio que possa guiar uma aplicação do Direito minimamente justa e prudente.  Aliás, essa espécie de procedimento seria claramente inconstitucional por absolutizar a palavra da mulher diante do homem, tendo em vista o disposto no artigo 5º. e seu inciso I, CF, que inadmite discriminações de qualquer espécie, inclusive referentes ao sexo das pessoas.

E esse posicionamento equivocado já é encontrado na doutrina incipiente sobre o tema:

Nos termos da Lei 14.550/23, para a concessão das medidas protetivas é suficiente o depoimento da vítima. Assim, ficam afastados argumentos de ausência de testemunhas, laudos periciais ou outros elementos de convicção. Aliás, embora o depoimento da vítima já seja tratado como prova na legislação, aqui surge um regramento específico que estabelece prioridade desse elemento para aferir a existência de indícios de violência (ainda que não tipificado) e o perigo. [7]

Mas não é só isso. A posição dos autores acima citados já encontrava fundamento antes da alteração legal em enunciados dogmáticos, tal como o Enunciado 45 do FONAVID, trazido à baila em reforço ao entendimento por eles adotado:

“As medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006 podem ser deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes outros elementos probantes nos autos”. [8]

E no mesmo caminho se apresenta o entendimento de Bianchini e Ávila, afirmando que o dispositivo em comento “explicita que o requisito probatório para a concessão da Medida Protetiva de Urgência são as declarações prestadas pela mulher, com ou sem registro de boletim de ocorrência policial”. Para esses autores o “onus probandi” da falsidade da imputação da mulher é transferido para o “suposto ofensor”. [9]

É evidente que essa espécie de orientação até pode ser adotada “cum grano salis” e muita prudência para casos excepcionais em que outras provas são realmente indisponíveis, tendo em vista a imaterialidade da conduta (v.g. ameaças, ofensas verbais) e as circunstâncias práticas do ilícito (v.g. ato praticado no recôndito do lar, sem testemunhas). No entanto, sua generalização seja por meio da doutrina, jurisprudência ou da lei, é violadora de um devido processo legal com seus corolários inalienáveis. Para acatar somente a palavra da vítima, a decisão deve ser muito bem fundamentada, e mais, a opção de medidas protetivas deve se circunscrever, o máximo possível, às opções legais voltadas à própria ofendida (Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida – artigos 23 e 24 da Lei 11.340/06).

Também há que concordar que burocratização da análise das medidas protetivas exatamente com exigências de documentações criadas para amparar as mulheres vitimizadas é um tremendo contrassenso. Fernandes e Cunha bem destacam que o condicionamento da decisão sobre as medidas “ao preenchimento do Formulário Nacional de Avaliação de Risco”, como se tem operado em alguns juízos, atrasa indevidamente a proteção da mulher e viola a correta orientação do Enunciado 54 do FONAVID que destaca a finalidade do citado formulário de promover a “celeridade dos encaminhamentos da vítima para a rede de proteção” e jamais de atrasar a decisão de seus pleitos. [10] Essa espécie de atuação do Judiciário nos faz lembrar da excelente frase de efeito atribuída ao jornalista e intelectual mexicano, Carlos Catillo Peraza que define a burocracia como “el arte de convertir lo fácil en difícil por medio de lo inútil”. [11]

Vale ainda salientar que não se pode negar que uma tutela protetiva da vítima não se rege inteiramente e absolutamente pelo “in dubio pro reo”, mesmo porque de caráter provisório. Não presente a certeza ou a segurança de que a vítima está “suficientemente protegida” ou livre de perigos, a proteção se impõe, regendo-se pelo “princípio da precaução e pela lógica in dubio pro tutela”.[12] Essa espécie de proteção não é conferida com base em um juízo de “certeza” para eventual punição, mas numa circunstância “de gestão social de riscos”.[13] Na verdade, esse raciocínio serve para justificar toda cautelar penal, incluindo as prisões provisórias. Sem esse fundamento racional seria impraticável, por exemplo, uma “Prisão Preventiva”, a qual se chocaria com a “Presunção de Inocência” de maneira inextricável.[14] Há necessidade de ponderação medianeira, mas sem aceitar o desequilíbrio da balança da Justiça, conforme já exposto neste texto.

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Não obstante, a palavra da mulher sedizente vítima absolutizada configura uma espécie de “Petição de Princípio” na qual a autoridade do objeto é encontrada no próprio objeto. O argumento é circular: Por que devemos conceder as medidas? Porque a mulher as pediu e disse que foi violada. Por que a mulher foi violada? Porque ela disse. E assim sucessivamente. Mas acontece que algo não pode ser considerado verdadeiro somente porque se diz verdadeiro!

Na tentativa de justificar o injustificável encontramos na doutrina passagens que se assemelham a um emaranhado de contradições e incoerências sem maior significado, o que nos tenta a parafrasear a expressão do literato Thomas Pavel, “Miragem Linguística”, [15] não no seu rigoroso sentido técnico, mas literal:

Obviamente que não se pretende revestir de sacralidade a palavra da mulher vítima de violência doméstica e familiar e, desta forma, suprimir os direitos do suposto autor do fato, [mas] ressignificar a palavra da mulher nesse contexto, expandindo-a na medida do devido processo legal, livre de representações muitas vezes trazidas aos autos por imaginário marcado por estereótipos e discriminações. [16]

Conferir em geral valor absoluto e isolado à palavra da mulher realmente não é “sacralizar” sua versão, apenas porque o contexto não é de natureza religiosa ou mística. A questão é de absolutização indevida e o uso da palavra “sacralidade” dando aparência de que realmente não há nada de irregular é uma válvula de escape indevida, uma fuga do real problema a ser enfrentado. O que se pode querer dizer com “ressignificar a palavra da mulher”? Aliás, o que se pode querer dizer com essa tendência desconstrutiva de “ressignificar” tudo, reconstruindo o mundo como se isso fosse possível, quando, na verdade, o máximo a que se chega é à destruição pura e simples do existente e sua substituição por abstrações? O que significa livrar o devido processo legal de representações imaginárias, marcadas por “estereótipos e discriminações”? O que isso significa quando exatamente se está desconstruindo um sistema de direitos e garantias constitucionais mínimos com sustento em estereótipos e discriminações contra os homens? Muitas e muitas vezes já se disse que a Justiça não é a injustiça de ponta-cabeça, que a Justiça não é a injustiça apenas com o vetor oposto.

Essas manifestações prenhes de contradição, incoerência e até mesmo sem um significado plausível deveriam, estas sim, não ser “ressignificadas” (sic), mas relidas por seus autores para que talvez chegassem à constatação que Hofmannsthal descreve em seu texto, “Carta de Lord Chandos”, no qual este último reconhece ter perdido totalmente a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre qualquer assunto. “In Verbis”: “Meu caso, em poucas palavras, é este: perdi por completo a faculdade de pensar ou falar coerentemente sobre qualquer coisa”. [17]

Não é possível permitir que, a pretexto de proteger as mulheres vítimas (supostamente vítimas, já que tratamos de investigação e processo) sejam estas blindadas ao ponto de poderem eventualmente incidir em “Denunciação Caluniosa” sem maiores chances de que suas narrações sejam checadas no decorrer de uma investigação e /ou processo regular.[18]

Infelizmente distorções legais e interpretativas têm abundado porque “o movimento [feminista] acabou monopolizando a temática da violência doméstica, canalizando a culpa para a “masculinidade” e dominando todos os campos de debate a respeito de “agressão, assédio e estupro”. Porém, como se vê em muitos pequenos e grandes exemplos “do dia-a-dia”, nesse contexto não é incomum a manipulação do “discurso da violência” por mulheres de má-fé ou mesmo apenas idelologizadas, com o fito de “controlar e cercear a liberdade masculina”, culpabilizando “todos os homens sem espaço para a presunção de inocência”.[19] Essa sanha punitivista incontida e unilateral das feministas, não somente “prejudica os homens inocentes”, mas também “atravanca o caminho da justiça de vítimas mulheres” realmente necessitadas de proteção.[20]

Pode parecer muito desagradável, inadequado ou até cruel questionar a palavra da vítima, seja ela mulher ou não, mas isso é absolutamente necessário para a busca de uma verdade processualmente válida. Quem pode questionar que uma mulher vitimizada no próprio lar deve ser defendida? Isso é até mesmo uma platitude. Mas as consequências do excesso repressivo com relação aos homens, violando garantias mínimas constitucionalmente asseguradas, é um mal que se oculta por trás de uma grossa camada de suposta benignidade. Como nos lembra Dávila:

“Toda la habilidad del mal está en transformarse en un dios doméstico y discreto, cuya presencia ya no inquieta”. [21] Tradução livre: “Toda a habilidade do mal está em se transformar em um deus doméstico e discreto, cuja presença já não incomoda”.

E ao não mais inquietar ou incomodar, pode causar as mais deletérias consequências, sem que seja percebido.  Mais que isso, como sói ocorrer nos casos do politicamente correto, o mal travestido de bem, pode gerar aplausos dos incautos e dos covardes que temem confrontá-lo e preferem acomodar-se ao custo das próprias consciências. Não é, portanto, assim que se deve avaliar a qualidade de uma norma. Voltando a Dávila: “El volumen de aplausos no mide el valor de una ideia. La doctrina imperante puede ser una estupidez pomposa. Tan trivial reparo suele escapar, sin embargo, al espectador amedentrado”. [22] Tradução livre: “O volume de aplausos não mede o valor de uma ideia. A doutrina predominante pode ser uma estupidez pomposa. Tão trivial reparo costuma escapar, no entanto, ao espectador amedrontado” 

Muitas vezes belas palavras, indicações de virtudes obnubilam males, gerando distorções e confusões. Conforme bem assevera Ernest Hello:

Una palabra  cuanto más bela, más peligrosa. Es indecible la importância del linguaje. Los vocabulos  son pan o veneno y es la confusión universal uno de los caracteres de nuestra época. Los signos del linguaje son instrumentos temibles por lo complacentes. De ellos se puede hacer el abuso que se quiera, pues no protestan, dejan que se les deshonre, y la alteración de las palavras revélase tan sólo por la íntima perturbación que produce em las cosas. [23]

Em tradução livre:

“Uma palavra quanto mais bela, mais perigosa. É indizível a importância da linguagem. As palavras são pão ou veneno e é a confusão universal uma das características da nossa época. Os signos da linguagem são instrumentos temíveis por serem complacentes. Deles se pode fazer o abuso que se quiser, pois não protestam, deixam que sejam desonrados, e a alteração das palavras se revela apenas pela íntima perturbação que produz nas coisas.” 

Um exemplo muito concreto dessa falta de percepção de um mal que se infiltra insidiosamente e produz consequências que deveriam ser indesejadas, mas que as pessoas em geral nem sequer se dão conta é a interpretação que se dá com frequência a certas normas do Direito Internacional. O “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ”, tornado impositivo pela Resolução CNJ 492/23 consigna que “a ideia de estereótipos de gênero é muito importante, na medida em que, quando permeiam – consciente ou inconscientemente a atividade jurisdicional pode reproduzir inúmeras formas de violência e discriminação”. É verdade. Mas o problema é que o estereótipo de gênero somente é considerado pela academia e pelas instituições quando se trata de mulheres. Os homens podem ser estereotipados à vontade, até mesmo como “estupradores inatos” de forma generalizante. Podem ser submetidos a procedimentos que, a pretexto de proteger mulheres vítimas (um fim louvável) lhes tolhe direitos e garantias individuais com fulcro tão somente no sexo, tal como essa legislação sob comento.

Essa visão enviesada é resultado de todo um contexto cultural, conforme nos mostra Jiménez :

En numerosos debates he podido comprovar que la narrativa de género actúa dejando intacta toda aquella información que se ajusta a su discurso, pero completa los vacíos de conocimiento con las peores expectativas sobre el sexo masculino. De ahí que en el imaginário popular se crea que en el passado las mujeres carecían de poder, no jugaban papel alguno en la violencia organizada, no tuvieran recurso alguno ante maridos abusivos (supuestamente la mayoria), y que los roles de género actuales fueran una creación ideada para su beneficio a costa de explotar a la mujer.

Como hemos visto, la única forma de combatir este tóxico imaginário popular es mediante el conocimiento, particularmente el conocimiento histórico. Se trata de un trabjo difícil, pues la narrativa de género instala un enorme escepticismo hacia documentos o estúdios que muestran ideas contrarias a su discurso, y una fácil aceptación de otros que puedan confirmala, incluso cuando se realizan con datos, fuentes o metodologias altamente cuestionables. Y si bien el siesgo de confirmación no es algo exclusivo de esta narrativa, su influencia en la política y los médios de comunicación la hacen merecedora de una atención especial. Pese a todo, con el conocimiento adecuado no sólo es posible refutar aspectos de la narrativa de género que son patentemente falsos, sino también poner em cuestión aquellos huecos donde no tenemos suficiente información para efectuar una valoración razonable y que encuentran ahora ocupados por ella.

No se trata de un assunto trivial. Aceptar la narrativa de género actual constituye admitir que no es la adaptación al entorno ni uma multiplicidad de factores históricos lo lqe explica la actitud de hombres y mujeres en el passado. Reducir todo a la maldad masculina, empleando inadecuadamente términos como “patriarcado” o “machismo”, [24] supone aceptar la inferioridad moral  del varón, lo cual además de incorrecto, constituye un peligroso punto de partida para quienes luchen por la igualdad. Esto há llevado a excesos actuales en forma de leyes que partiendo de dicho preupuesto imponen penas superiores al varón por el mismo delito o tornan la presunción de inocência en presunción de culpabilidad, entre otras discriminaciones, pues no se puede tratal igual a quien no se considera como tal.

Por qué há sido tan exitosa una narrativa tan simplista? Si bien ya argumentamos que su éxito radica tanto en su sencillez como en su utilidad política, también (...) los médios de comunicación han jugado un papel clave en su difusión, marginando ciertas noticias o tratándolas como hechos aislados e inconexos, mientras que potenciaban otras más afines a dicha narrativa y las consideraban parte de un todo más amplio. [25]

Tradução livre:

Em numerosos debates pude comprovar que a narrativa de gênero atua deixando intacta toda aquela informação que se ajusta ao seu discurso, mas completa os vazios de conhecimento com as piores expectativas sobre o sexo masculino. Daí que no imaginário popular se acredita que no passado as mulheres careciam de poder, não desempenhavam papel algum na violência organizada, não tinham recurso algum perante maridos abusivos (supostamente a maioria), e que os papéis de gênero atuais fossem uma criação idealizada para seu benefício à custa de explorar a mulher.

Como vimos, a única forma de combater esse tóxico imaginário popular é mediante o conhecimento, particularmente o conhecimento histórico. Trata-se de um trabalho difícil, pois a narrativa de gênero instala um enorme ceticismo em relação a documentos ou estudos que mostram ideias contrárias ao seu discurso, e uma fácil aceitação de outros que possam confirmá-lo, mesmo quando se realizam com dados, fontes ou metodologias altamente questionáveis. E embora o viés de confirmação não seja algo exclusivo dessa narrativa, sua influência na política e nos meios de comunicação a fazem merecedora de uma atenção especial. Apesar de tudo, com o conhecimento adequado não só é possível refutar aspectos da narrativa de gênero que são patentemente falsos, mas também colocar em questão aqueles buracos onde não temos informação suficiente para fazer uma avaliação razoável e que encontram agora ocupados por ela.

Não se trata de um assunto trivial. Aceitar a narrativa de gênero atual constitui admitir que não é a adaptação ao ambiente nem uma multiplicidade de fatores históricos o que explica a atitude de homens e mulheres no passado. Reduzir tudo à maldade masculina, empregando inadequadamente termos como “patriarcado” ou “machismo”, supõe aceitar a inferioridade moral do homem, o que além de incorreto, constitui um perigoso ponto de partida para quem luta pela igualdade. Isso levou a excessos atuais em forma de leis que partindo desse pressuposto impõem penas superiores ao homem pelo mesmo delito ou tornam a presunção de inocência em presunção de culpa, entre outras discriminações, pois não se pode tratar igual a quem não se considera como tal.

Por que foi tão bem-sucedida uma narrativa tão simplista? Embora já tenhamos argumentado que seu sucesso radica tanto em sua simplicidade como em sua utilidade política, também (…) os meios de comunicação desempenharam um papel-chave em sua difusão, marginalizando certas notícias ou tratando-as como fatos isolados e desconexos, enquanto que potenciavam outras mais afinadas com essa narrativa e as consideravam parte de um todo mais amplo.

 E o pior é que essa imposição acadêmico-midiática de estereótipos masculinos negativos atinge não somente homens adultos, mas também meninos, como nos demonstra Sommers, afirmando contundentemente que “en la guerra contra los chicos, como en todas las guerras la primera baja es la verdad”.[26] – tradução livre: “na guerra contra os meninos, como em todas as guerras, a primeira baixa é a verdade.” A visão disseminada erroneamente é a de que “a violência tem gênero e seu gênero é masculino” (no original: “la violencia tiene ‘género’ y su género es masculino”). Em geral, aqueles que lideram movimentos por igualdade têm pontos de vista muito obscuros sobre os meninos, falando solenemente deles como os valentões, violadores e assassinos de amanhã” (no original: “Los líderes del movimento de igualdad tienen un ponto de vista muy oscuro sobre los chicos, hablando con expressión solemne de ellos como bravucones, violadores y asesinos de mañana”). [27]

Ainda que em breve análise do parágrafo em estudo é possível encontrar nele mesmo o cerne de uma orientação ponderada. Após a afirmação de que as medidas serão concedidas em “cognição sumária” a partir do depoimento ou alegações escritas da mulher, fica estabelecido que o pedido possa ser indeferido de acordo com a devida “avaliação” da autoridade quanto à “inexistência de risco” efetivo à suposta vítima ou seus dependentes. Resta claro que não se trata de determinar aos magistrados um deferimento de pedidos de medidas protetivas às mulheres de forma automática, tão somente com sustento em suas narrativas.

Deve o magistrado ponderar, em primeiro lugar, a verossimilhança das alegações da ofendida, bem como se a Autoridade Policial tomou as providências cabíveis de acordo com o disposto nos artigos 10 a 12 da Lei 11.340/06. Em caso, por exemplo, de violência física com lesões, será indispensável comprovação de encaminhamento da vítima a exame de corpo de delito, bem como, inicialmente, ao menos a juntada de “laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”, ou mesmo atestados médicos, fichas de atendimento ou qualquer início de prova da materialidade delitiva (vide artigo 12, § 3º. da Lei 11.340/06). Também não é admissível que, constando da ocorrência a presença de testemunhas no momento da lavratura, não acompanhe o pedido as oitivas respectivas. O novo parágrafo inserido na Lei Maria da Penha não é um salvo-conduto para a omissão e leviandade das autoridades judiciais, ministeriais e policiais.

Não convence ou não deveria convencer a alegação de que não configuraria “exclusão da apreciação judicial”, a decisão baseada somente na palavra isolada da vítima sem maiores fundamentações. Não é correto afirmar que é legítima uma “inversão do raciocínio” corriqueiramente utilizado, buscando ao invés da comprovação (ainda que provisória) da “existência do perigo”, basear o indeferimento das medidas na segurança da “inexistência de perigo”.[28] Isso nada mais é do que advogar pela legitimação da chamada “Prova Diabólica” ou a “Prova de Fato Negativo” (“Probatio Diabolica” ou “Devil’s Proof”), uma categoria de prova impossível ou descomedidamente difícil de ser levada a cabo.[29]

Na verdade se trata de posição que advoga claramente uma inversão do ônus probatório. E para embasar tal inversão há quem apresente exemplos advindos da área civil, consumerista e trabalhista:

Vale registrar que a técnica processual de inversão do ônus da prova é usual no âmbito de estatutos de proteção a grupos vulneráveis. Nesse sentido, o art. 6º, inciso VIII, da Lei n. 8.078/1990 (CDC) prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, de sorte que basta-lhe provar o fato constitutivo de seu direito (verossimilhança da alegação), que os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito se tornam ônus do fornecedor de produtos ou serviços. Esta análise é feita levando-se em consideração as usuais dificuldades que consumidores têm de comprovares suas demandas (Nesse sentido: STJ, AgInt no AREsp n. 2.162.083/SP, rel. Min. Raul Araújo, 4ª T., j. 24/10/2022). No mesmo sentido, o art. 373, § 1º, do CPC, permite a inversão do ônus da prova, quando houver “excessiva dificuldade de cumprir o encargo [probatório]”. Há regra semelhante no art. 818, § 1º, da CLT. [30]

Acontece que não é correto e é extremamente perigoso distorcer a natureza jurídica de medidas, bem como transplantar à fórceps institutos e regras das áreas civil, consumerista e trabalhista para a seara penal que geralmente predomina ou está presente nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. [31]

Havia muita discussão sobre haver necessidade de um registro criminal para que as medidas protetivas da Lei Maria da Penha pudessem ser deferidas. A nosso entender, no âmbito estrito criminal, esse registro e em casos de necessidade de representação ou requerimento/Queixa - Crime (ação pública condicionada ou privada), isso tudo seria realmente imprescindível. Não vislumbrávamos a razão de ser e o fundamento da existência de uma medida cautelar protetiva sem o sustento em um processo ou procedimento principal, tendo em vista sua característica da “acessoriedade”:

As cautelares são acessórias de um processo principal, não podendo subsistir por si mesmas. Destaque-se que se em sede de Processo Civil é possível falar em “Cautelares Satisfativas” (que se exaurem em si mesmas), embora tal ponto seja mesmo nessa seara bastante discutido [32], não há se cogitar de satisfatividade cautelar no Processo Penal. Nesta sede a acessoriedade se agiganta, impedindo que a providência cautelar se transforme em antecipação de pena. [33]

 Isso não queria dizer que a mulher ficasse desamparada em relação a eventuais medidas protetivas sem o registro criminal, a representação, requerimento ou Queixa-Crime, se fosse o caso. Apenas significava que o Juízo Criminal não seria o adequado para a concessão de tais medidas. Sabe-se que a Lei Maria da Penha é um diploma híbrido e pode ser aplicado nas searas civil e criminal (vide artigo 14 e artigo 24-A, § 1º., da Lei 11.340/06). Dessa forma as medidas protetivas seriam concedidas com característica de cautelares civis, sem prejuízo algum à necessária urgência, preventividade e celeridade.[34] E em caso de descumprimento de eventual cautelar cível, não haveria também desamparo, já que o magistrado não poderia decretar a Prisão Preventiva (artigo 20 da Lei 11.340/06 c/c artigos 311, 312, e 313, III, CPP). Afora os instrumentos coercivos civis, ainda haveria a possibilidade de responsabilização criminal do recalcitrante por infração ao artigo 24-A da Lei 11.340/06, bem como sua Prisão em Flagrante e decretação de preventiva, desta feita pelo competente Juiz Criminal respectivo (inteligência do artigo 24-A, §§ 1º. a 3º., da Lei Maria da Penha). [35]

Entretanto, com o advento da Lei 14.550/23 e o acréscimo do § 5º. ao artigo 19 da Lei 11.340/06, afasta-se expressamente a necessária ligação entre as medidas protetivas e processos ou procedimentos de natureza criminal e até mesmo civil. Fica estabelecido que as medidas protetivas independem da “tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência”. Evidentemente, em casos de ação penal pública condicionada ou privada também não haverá necessidade de representação, requerimento e muito menos apresentação em juízo de Queixa-Crime.

Para além da criação de cautelares “sui generis”, sem a característica da “acessoriedade” e do fato de que a inexistência de interesse da ofendida em quaisquer procedimentos ser induvidosamente um elemento de descrédito quanto à gravidade e até realidade da situação de violência doméstica, é preciso dizer que esse § 5º. nos parece eivado de clara inconstitucionalidade. A violação é patente ao “devido processo legal”, já que se cria uma “cautelar satisfativa”, especialmente na seara criminal.[36] Uma “cautelar satisfativa” no campo criminal equivalente à uma antecipação dos efeitos de uma sentença de procedência ou tutela antecipada penal, que em termos práticos, corresponderia à aplicação de pena sem processo de conhecimento, ambiente nativo da cognição exauriente, cuja violação vai ao encontro do brocardo nullum crimen sine culpa (inteligência do artigo 5º., LIV, CF).

Não há como fugir dessa conclusão, tendo em vista que nada mais se exige e será aplicada uma medida constritiva a alguém, especialmente no campo penal, mediante um “juízo de cognição sumário”, conforme dispõe o parágrafo logo anterior (artigo 19, § 4º., da Lei 11.340/06), o que equivaleria a uma pena restritiva de direitos sem processo de conhecimento, que no contexto da inteligência da nova redação, descarta, inclusive, a citação. A partir do momento em que essa constrição imposta em “cognição sumária” se concretiza e solidifica sem qualquer outra exigência, é cristalino que houve uma descarada infração reflexa ou um contorno espúrio do devido processo legal, rumando para uma espécie de Direito Penal de “coerção direta”.

E a situação se agrava ainda mais quando vemos que o § 6º., acrescido também ao artigo 19 da Lei Maria da Penha pela Lei 14.550/23 empresta às medidas protetivas uma duração temporal indeterminada, já que afirma que estas terão vigor “enquanto persistir risco” à vítima ou seus dependentes. A expressão “enquanto persistir risco” é uma carta branca dada ao magistrado para eternizar ou perpetuar a constrição ao homem. A lei sequer prevê um período máximo de duração e uma necessária revisão para eventual renovação da medida de acordo com as circunstâncias e as características da “revogabilidade” e “provisoriedade”.[37]  A partir de então temos não somente uma pena travestida de providência cautelar, violando o devido processo legal, mas também uma pena de caráter potencialmente perpétuo, dada sua indeterminação no tempo, em patente violação ao artigo 5º., XLVII, “b”, CF, autorizando-se a conclusão teratológica de uma novidade flagrantemente inconstitucional no ordenamento jurídico, qual seja tutela penal antecipada ad perpetuam secundum eventum litis, porque não faria coisa julgada material, criando-se, por via transversa uma espécie de revisão criminal pro societate. A tentativa do texto de fazer traslado de institutos notadamente de outros ramos do Direito para o direito penal e processual penal é o mesmo que tentar explicar a quadratura do círculo. [38]

A sugestão de Fernandes quanto à “reavaliação periódica do perigo e da manutenção das medidas” em sede doutrinária é esboçada nos seguintes termos:

As medidas protetivas estão vinculadas ao perigo e não ao procedimento. Contudo, não podem ter uma duração infinita, sugerindo-se que, na decisão, conste o prazo mínimo para a reavaliação, tal como ocorre em relação às medidas de segurança. O ideal é que, periodicamente, seja realizada nova avaliação de risco para se verificar a necessidade e adequação das medidas anteriormente deferidas, que poderão ser substituídas ou revogadas. Como já salientado anteriormente, a decisão não faz coisa julgada e poderá ser modificada a todo momento, diante da alteração dos fatos. [39]

Realmente, o mínimo que se poderia esperar da legislação a fim de evitar uma constrição de caráter potencialmente perpétuo, seria a previsão expressa de sua reavaliação periódica e criteriosa em termos de proporcionalidade e razoabilidade, mas isso somente se perfaz na dogmática e não na letra da lei, cujo silêncio homizia inconstitucionalidade por ensejar a confusão entre perpetuação e indeterminabilidade da medida de acordo com zelosa avaliação da “necessidade concreta” de eventuais renovações em revisões contínuas.[40] Talvez uma solução “ad hoc”, portanto não ideal, seja aplicar, por integração, a regra do artigo 316, Parágrafo Único, CPP que impõe a revisão da preventiva de 90 em 90 dias de forma fundamentada.

Ainda que na versão original do Projeto que deu origem à Lei Maria da Penha se tenha substituído a expressão “medidas cautelares” por “medidas protetivas de urgência” com o fito de desconexão desses institutos de “qualquer caráter acessório de um processo principal”,[41] é preciso reconhecer que tal pretensão sempre foi inadmissível em face dos diversos conflitos com a Constituição que tal quimera jurídica poderia ensejar e efetivamente ensejou, vindo a Lei 14.550/23 para agravar ainda mais a controvérsia.

Discordamos do entendimento de que com o advento da Lei 14.550/23 as medidas protetivas de urgência se tornam necessariamente de “natureza civil”, impugnando a posição firmada no STJ de sua “natureza cautelar criminal”.[42] Como visto acima, as medidas protetivas podem ser cautelares de natureza criminal ou civil, a depender das circunstâncias e do juízo que as determine. Nesse passo, concordamos parcialmente com o entendimento de Bianchini, no qual afirma que dados os objetivos de proteção das medidas enfocadas, sua natureza jurídica é “sui generis”, não sendo passível de encaixe em “moldura” penal, civil ou administrativa.[43] Apenas discordamos quanto à alegação de absoluta indefinição. A nosso ver a medida será criminal se oriunda de ordem de Juízo Criminal e civil se originária de determinação de Juízo Civil. Em nosso socorro temos o Enunciado COPEVID n. 4 que considera as medidas protetivas como “tutelas de urgência, sui generis, de natureza civil e/ou criminal” (grifo nosso). Mas mesmo que se admitisse a condição ou a atribuição de natureza civil de forma generalizada não haveria pretexto para contornar o devido processo legal e a proibição de sanções perpétuas. Nada mais trivial do que a conclusão de que se penas perpétuas na seara criminal são vedadas pela Constituição, também o serão sanções na verdade da mesma natureza, travestidas de civis. O mesmo raciocínio vale para a aplicação de constrição a alguém, seja na área penal ou civil, sem o devido processo legal, o qual não se constitui, como é sabido por todos, da mera previsão positivada de um procedimento.

Finalmente, há que mencionar que a Lei 14.550/23 adiciona o artigo 40-A à Lei Maria da Penha, estabelecendo que sua aplicação se espraia para todas as situações descritas no artigo 5º., da Lei 11.340/06, independentemente da causa ou motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida.

Havia discussão na doutrina e jurisprudência sobre haver necessidade de comprovação de que a violência contra a mulher perpetrada nas circunstâncias descritas no artigo 5º., da Lei 11.340/06 era derivada de uma relação opressiva de gênero (o que está disposto no próprio artigo 5º. da Lei 11.340/06). O que o artigo 40- agora incluído na Lei Maria da Penha faz é dizer claramente que não há necessidade dessa comprovação de opressão de gênero na violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal condição seria conatural às situações descritas no artigo 5º., da Lei 11.340/06. Alguém pode até falar em uma “presunção” da presença da violência de gênero nesses casos, o que não nos parece nada aconselhável,[44] porque então estaríamos diante de nova inconstitucionalidade, já que haveria uma “Presunção de Culpabilidade” contra o investigado ou réu (discriminação de gênero) em violação frontal à “Presunção de Inocência” constitucionalmente imposta (inteligência do artigo 5º., LVII, CF).  

Bianchini e Ávila abraçam a tese espelhada no novel artigo 40-A da Lei 11.340/06 de que a conduta de violência doméstica, familiar e referente a relação íntima de afeto contra a mulher “é sempre uma forma de violência baseada no gênero, porque é derivada de representações sociais e culturais de gênero estruturantes das relações sociais e por afetarem as mulheres de forma desproporcional” (grifo nosso). Para os autores, a lei “expressamente conceitua que todos os casos de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher são formas de violência baseadas no gênero”. A discriminação, como já se afirmou, seria conatural ao ato, fato notório que não requer prova. Mais ainda, essa disposição trazida pela Lei 14.550/23 é um “pressuposto político” de aplicação da Lei Maria da Penha. Erige-se, segundo os autores, a “definição de uma categoria jurídica” e não uma suposta “presunção legal”. Não tem, portanto, cabimento “discutir se a violência doméstica ou familiar contra a mulher é ou não uma violência baseada no gênero: a lei faz a opção política de sempre aplicar a Lei Maria da Penha”.[45]

A então Senadora Simone Tebet foi cautelosa na apresentação de sua Justificativa do Projeto de Lei, afirmando que “todas as formas de violência contra as mulheres no contexto das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto são manifestações de violência baseada no gênero, que invocam e legitimam a proteção diferenciada para as mulheres”.[46] Trata-se de uma afirmação, de uma imposição legal, uma escolha política, mais especificamente de “Política Criminal” e não de uma alegada “presunção jurídica” absoluta ou mesmo relativa, o que atrairia evidente inconstitucionalidade. Se essa opção política é ou não um subterfúgio para contornar o cerne inconstitucional da normatização ou se reflete uma realidade factual, é algo a ser objeto do devido debate e depuração.  

Todas as questões a respeito do choque entre os dispositivos criados pela Lei 14.550/23 e os direitos e garantias constitucionais do processo (penal ou civil) não podem ser solucionados mediante o recurso à alegação de que não seriam, na verdade, inovações legislativas, mas apenas “interpretações autênticas” da sistemática da Lei 11.340/06.[47] Ora, a chamada “interpretação autêntica” nada mais é do que uma modalidade de “interpretação pública” (...) “originada pelo órgão legislativo (criador do direito)”.[48] É irrefutável que o legislativo, tanto na criação como na “interpretação autêntica” do direito ordinário posto há que se curvar diante dos preceitos constitucionais cimeiros do ordenamento jurídico. Pouco ou nada importa se os dispositivos criados pela Lei 14.550/23 constituem inovação legal ordinária ou mecanismos de “interpretação autêntica”. Seja como for, têm de ser avaliados em sua legitimidade de acordo com sua adequação à Constituição Federal.

Em sendo, a título de argumentação, possível superar as inconstitucionalidades trazidas no bojo da Lei 14.550/23, a aplicação dos novos §§ 4º., 5º. e 6º., do artigo 19 da Lei 11.340/06 é automática e imediata a partir de sua vigência. São válidos os atos praticados antes e os que agora forem realizados o serão sob a sua égide (inteligência do artigo 2º., CPP c/c 14, CPC).

Quanto ao artigo 40-A da Lei 11.340/06 com nova redação dada pela Lei 14.550/23 entende-se que realmente não é de se perscrutar se sua natureza é penal, processual ou mista. Nesse caso é admissível entender que o legislador fez uma opção de Política Criminal, explicitando, em ato de “interpretação autêntica” o sentido amplo que gostaria de conferir à Lei Maria da Penha. Dessa forma, sua aplicação é imediata e pode perfeitamente retroagir a casos anteriores. Bianchini e Ávila, com acerto e propriedade apresentam esse posicionamento e indicam precedentes do STJ admitindo que se uma nova lei acata entendimento jurisprudencial anterior, solucionando divergência antecedente, não se trata de novatio legis in pejus, podendo ser “aplicada ex tunc, ainda que prejudique o réu, pois trata-se apenas de aplicar o entendimento da legislação originária, agora esclarecido”.[49]

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Ruchester Marreiros Barbosa

Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal. Foi aluno especial do programa de Mestrado em Direito Penal e Criminologia (UCAM/RJ). Foi aluno do programa de doutoramento em Direitos Humanos (Universidad Nacional Lomaz de Zamora, Argentina) Ex Coordenador da Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Universidade Estácio de Sá/RJ. Membro da Subcomissão do projeto de lei do Novo Código de Processo Penal na Câmara dos Deputados. Premiado 6 vezes consecutivas “Melhor Delegado de Polícia do Brasil”. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Direitos Humanos. Autor de livros e artigos. Colunista do site Consultor Jurídico. Colaborador da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Medidas protetivas de urgência e a lei 14.550/23: uma visão crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7259, 17 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104132. Acesso em: 22 dez. 2024.

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