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Informatização exige cautela para evitar apartheid.

Os desafios da informatização processual na Justiça brasileira após a Lei nº 11.419/2006

Agenda 15/09/2007 às 00:00

            Após vários anos de expectativa, finalmente daremos início a informatização do processo normatizado por lei federal, diante do advento da Lei 11.419/06. Como exemplos das mudanças que serão introduzidas pela lei destacamos:

            O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais; a comunicação de atos e transmissão de peças processuais (artigo 1º); o envio de petições, de recursos e a prática de atos processuais em geral por meio eletrônico, mediante uso de assinatura eletrônica (artigo 2º); a autorização para que os tribunais criem diários oficiais eletrônicos para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral (artigo 4º); a validade de intimações por meio eletrônico (artigo 5º); a autorização para que os órgãos do Poder Judiciário desenvolvam sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais por meio de autos total ou parcialmente digitais (artigo 8º), e o reconhecimento, como originais, dos documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos, com garantia da origem e de seu signatário (artigo 11).

            Até o momento, as experiências colhidas retratam iniciativas isoladas de diversos tribunais que, por meio de alguns projetos pilotos, criaram balões de ensaio de práticas processuais a distância que agora definitivamente serão aplicadas pelos tribunais brasileiros.

            A meu ver, nesta nova etapa o computador deixará de ser apenas uma ferramenta utilizada para operar programas aplicativos passando a ser um instrumento de manifestação de vontade. Esta é uma enorme diferença.

            Embora a expectativa da ministra Ellen Gracie seja que em cinco anos a totalidade dos tribunais possam estar operando com o processo eletrônico, a Justiça Trabalhista já vem dando mostras de sua habitual competência, largando na frente e colocando em prática algumas rotinas processuais sem o uso do papel através do sistema E-Doc.

            Mesmo sendo amplamente favorável à implantação destas rotinas processuais pelo meio eletrônico por acreditar este seja um dos caminhos que poderá possibilitar uma maior celeridade processual, vejo que este novo cenário deverá ser construído com certas cautelas para não haja o risco de segregar determinados grupos que podem enfrentar naturais dificuldades para acostumar a estas novas práticas.

            Estou me referindo àquelas pessoas em localidades de menor poder aquisitivo que não tem condições financeiras de se aparelhar imediatamente ou aquelas que por natural dificuldade pelejam com o manuseio do computador. É importante que este projeto de implantação seja empreendido com a preocupação de não causar o apartheid digital destas pessoas. Em outras palavras, é preciso que se tomem medidas para que o tempo de aprendizado do manuseio destas soluções seja razoável e que as pessoas possam buscar soluções para investir em uma estrutura de informatização mínima capaz de operar nesta nova realidade.

            As novas formas de comunicação eletrônica aplicada ao Judiciário certamente fascinam a todos os atores do processo pelas inúmeras alternativas capazes de possibilitar ganho de tempo e economia. Porém é certo que a tecnologia tem o poder de inebriar as pessoas fazendo crer que estamos diante de um cenário diferente¸ exigindo, um mundo diferente, que prescinde de uma mudança radical de hábitos e regras procedimentais diferentes.

            A situação não é bem esta. As regras sistêmicas podem e devem ser sempre ajustadas para causar conforto aos que necessitam da Justiça sem entrar em confronto com a tradicional prática processual ou ao arrepio da legislação processual vigente.

            Tenho me preocupado em analisar profundamente todas as rotinas implantadas e depreendo que algumas regras estão sendo criadas modificando radicalmente a prática da advocacia.

            Há que se estabelecer um limite para que o Poder Judiciário não se invista do poder de regulamentar a implantação de rotinas processuais que impactam diretamente no exercício da advocacia. Qualquer mudança procedimental deverá, segundo nos parece, estar preceituada pela lei adjetiva própria que prescinde da aprovação pelo Poder Legislativo e não inserida apenas nos regimentos internos dos tribunais.

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            É preciso fomentar um diálogo prévio para a construção destas rotinas sistêmicas entre os tribunais e todos os atores processuais para que estes naturais entraves possam ser minimizados.

            Estas dificuldades para implantar o processo eletrônico eram esperadas, uma vez que esta iniciativa não encontra precedentes em nenhum outro país. É importante lembrar que estamos tratando da criação de uma solução sistêmica que visa atender as necessidades da Justiça baseado em um programa de computador, que, pela sua própria natureza será sempre um produto inacabado, derivado da inteligência humana, que por óbvias razões provocará seguidos lançamentos de novas versões.

            Por este motivo, será extremamente valiosa adotar a iniciativa, caso os tribunais desenvolvam estes programas e estratégias de implantação envolvendo todos os participantes na Justiça, gerando uma massa crítica necessária e capaz de estudar e avaliar as melhores práticas a serem adotadas.

            É natural que os centros de processamento de dados dos tribunais tomem a iniciativa de desenvolver e implantar isoladamente estes sistemas, pois até o momento, estávamos presenciando apenas a informatização do Judiciário, cujo enfoque restringia apenas a criação de soluções interna corporis. A situação atual é diferente e exige nova postura. A nova lei abre espaço para que possamos buscar meios de informatizar a Justiça Brasileira, por isso é necessário a participação prévia na criação dos representantes de todas as entidades que a compõem.

            Estou temeroso que a informatização processual possa tomar caminhos equivocados de forma que cada tribunal resolva criar suas próprias regras procedimentais para as rotinas criadas no meio eletrônico, por meio de seus regimentos internos próprios, sustentados na interpretação da nova redação do parágrafo único do artigo 154 do Código Processo Civil, e, por conseqüência, sejam criados diversos sistemas diferenciados. Isto seria um retrocesso processual, pois o Poder Judiciário não tem poderes para regular os atos processuais inerentes a advocacia. Esta é uma atribuição do Poder Legislativo.

            É importante que a ministra Ellen Gracie rememorize as ponderações encaminhadas pelo presidente Busato durante a sua visita no Conselho Federal no ano passado, à época da vigência do PL 5.828 que deu origem a Lei 11.419/06.

            Por estes motivos a OAB pugna para que:

            a) Haja um diálogo permanente com gestores de tecnologia da informação dos tribunais estaduais e federais, sob cuja responsabilidade acham-se hoje, em tramitação, milhões de processos que envolvem interessada população, ligados aos amplos os setores da vida civil e submetidos a variedade significativa de ritos procedimentais (direito privado, público, criminal, trabalhista), a fim de que as particularidades regionais e estaduais, e os variados ritos legais processuais, sejam permanente considerados na definição das novas topologias e soluções computacionais telemáticas e não ofereçam riscos de estagnação da prestação jurisdicional, que se exige contínua mesmo quando da implantação de sistemas, evitando-se a adoção unilateral de sistemas-padrão que não assegurem migrações ou adaptações locais ou que não preservem, com razoabilidade e proporcionalidade, dados e andamentos judiciários já atualmente disponíveis no âmbito destes tribunais;

            b) Diálogo permanente entre o Conselho Nacional de Justiça e tribunais com a OAB e com demais atores essenciais à administração da Justiça (Ministério Público Estadual e Federal), sem os quais não se poderá ter, dentro do respeito à legalidade, meios de implantação saudável do processo judicial eletrônico, uma vez que a lei brasileira, assentada em secular tradição do direito pátrio, entrega a estas instituições a prerrogativa, exclusivista e correspondente, de identificação e cadastramento de seus respectivos integrantes, que vêm, tradicionalmente, atuando nos órgãos do Poder Judiciário brasileiro após a devida inserção na atividade profissional, da advocacia e da fiscalização da lei, o que é feito mediante prévio reconhecimento formal-oficial, realizado pelas ditas instituições;

            c) Coordenação da implantação do processo eletrônico por fases programáticas, que incluam etapas prévias, a abranger a instalação de projetos piloto, de caráter experimental, no âmbito de cada Poder Judiciário — com a participação da OAB e do MP — a fim de que respectivas experiências, com seus dados de aceitação e eventuais inadaptações, possam ser tratadas em debate centralizado, no STF, para depuração conjunta de soluções que assegurem a instalação saudável do sistema;

            d) Coordenação de estudo-conjunto — que inclua representantes de tribunais estaduais, federais, OAB, e MP — sobre alterações da prática processual e judiciária em sua feição eletrônica, frente à norma em que se vier a converter o PLC 5.828/2001, elaborando-se, do estudo, "cartilha" nacional, de orientação, com glossário de expressões computacionais e respectiva elucidação, destinada a agentes administrativos, magistrados, advogados, membros do MP, e ao público em geral, com o fito de preparação cultural interna e externa do Poder Judiciário para efetivo uso do novo sistema;

            e) Sugerimos ainda que se estabeleça um trabalho conjunto entre OAB, Judiciário e MP visando educar os seus integrantes e a sociedade brasileira a utilizar os recursos do processo eletrônico.

            Finalmente, entendemos que o impacto da adoção da legislação do processo eletrônico repercutirá por meio da criação de um canal alternativo para a prática de atos processuais a distância, que certamente irá redefinir conceitos de tempo e distância na prática cotidiana da advocacia brasileira, pois o computador deixará de ser meramente uma ferramenta para uso de programas aplicativos para ser um instrumento de manifestação de vontade.

            Diante destas mudanças drásticas, temos de ter muita cautela para não criarmos um apartheid digital de modo a não excluir deste novo cenários advogados com natural dificuldade em lidar com os recursos tecnológicos ou menos favorecidos.

            Esta preocupação justifica-se em razão da mudança cultural sem precedentes em outros países causada pela desmaterialização do processo e implantação de rotinas processuais à distância. Recomendados que a implantação destas novas regras se faça de forma gradativa para melhor compreensão dos usuários, mantendo durante todo instante o contínuo diálogo entre os atores do processo eletrônico para divulgação e treinamento das etapas de implantação.

            Caso prevaleça a tendência atual dos tribunais em conduzirem a implantação dos sistemas de processo eletrônico interna corporis, sem a participação conjunta dos advogados e dos demais atores processuais, haverá séria infração ao princípio constitucional preceituado do artigo 133 que assegura que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". A matéria é de ordem constitucional.

            Como coordenador do curso de pós-graduação de Direito de Informática da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP, estou monitorando um diagnóstico sobre o atual estado da informatização dos tribunais brasileiros. Futuramente iremos divulgar este trabalho, para que possamos entender melhor qual é o atual estágio da informatização das cortes e o que será necessário para ser implantado diante das mudanças previstas na Lei 11.419/06.

            Segundo lição do professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, renomado jurista especialista em Internet Law, no meio eletrônico as entidades que detém a infra-estrutra da rede e o código de programação ao seu dispor, são aquelas quem realmente detém o poder para normatizar a conduta das pessoas e não os estados que, de certo modo, estão incapacitados de soberanamente exercer as suas leis sobre a população no ciberespaço.

            Em decorrência deste lúcido ensinamento, temo que se não estivermos vigilantes consoante a correta aplicação das normas legais vigentes durante a implantação da Justiça eletrônica no Brasil, estas novidades talvez não possam causar o conforto e os resultados esperados para aqueles que dela se socorrem.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ATHENIENSE, Alexandre. Informatização exige cautela para evitar apartheid.: Os desafios da informatização processual na Justiça brasileira após a Lei nº 11.419/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1536, 15 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10417. Acesso em: 23 dez. 2024.

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