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(Ainda) a capacidade contributiva e a progressividade tributária

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Agenda 17/09/2007 às 00:00

Apesar de a redistribuição de renda ser uma finalidade do Direito Tributário, existem certos limites doutrinários e pragmáticos à utilização da progressividade.

SUMÁRIO: I. A evolução histórica do princípio da igualdade no Direito Tributário. II. Considerações sobre o princípio da capacidade contributiva: II.1. O viés quantitativo da capacidade contributiva. II.2. O viés qualitativo da capacidade contributiva. III. A progressividade e a graduação dos tributos: III.1. Teorias de justificação da progressividade; III.2. Limites à progressividade: algumas linhas sobre arbitrariedade, confisco, direito ao exercício de atividades lícitas; III.3. Progressividade no Imposto de Renda. III.4. A progressividade nos impostos reais: a) Progressão de alíquotas com fins extrafiscais: o ordenamento constitucional antes da EC nº 29/2000; b) O entendimento do STF a respeito do tema: leading case RE 153771/MG; c) Poder constituinte derivado e EC 29/2000: reforma legislativa de decisão judicial. IV. Conclusões.


I. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO IGUALDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO.

Qualquer estudo sobre capacidade contributiva deve ser precedido por uma análise do princípio da igualdade [01]. O tema, no entanto, não comporta exaustão, devido a sua amplitude. Nada obstante, alguns destaques merecem ser feitos, a propósito do melhor desenvolvimento e compreensão deste trabalho.

O reconhecimento inicial da lógica da igualdade remonta à Grécia Antiga. O pensamento aristotélico elegeu a justiça como medida de virtude, de perfeição, e, a seu turno, a justiça mantinha laços fortes com a igualdade. Dois grandes modelos de justiça surgiram: a justiça comutativa e a justiça distributiva. Resumidamente, a justiça comutativa exigia que todos fossem tratados da mesma maneira; em outras palavras, casos semelhantes demandavam soluções semelhantes e, desta forma, a igualdade estaria resguardada. A justiça distributiva – não ao contrário, mas complementarmente – pode ser definida tendo em conta a recorrente fórmula segundo a qual deve-se tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual (ou seja, aplicação da justiça comutativa), na medida de sua desigualdade. A primeira parte da fórmula da distributividade já podia ser inferida com a simples aplicação da comutatividade, e, por isso, é preciso reconhecer que a justiça distributiva não prescinde da justiça comutativa, antes a complementa. A desigualdade como medida da diferença de tratamentos – segunda parte da fórmula – é que consagra verdadeiramente o caráter distributivo da justiça [02].

Com o advento do Estado Liberal, as construções teóricas sobre o princípio da igualdade incorporaram em grande parte a idéia grega da justiça comutativa. Explica-se melhor. Durante muito tempo acreditou-se que era bastante para garantir a igualdade que as prescrições legais fossem aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. Assim, a lei, fruto da vontade geral, deveria prescrever condutas, criar direitos e atribuir deveres de modo abstrato e genérico a todos os sujeitos e, se assim acontecesse, o Estado teria prestigiado a igualdade [03]. De forma objetiva, este aspecto formal da igualdade encontra apoio substancial na justiça comutativa, vez que os indivíduos eram compreendidos como iguais entre si e, via de conseqüência, a extensão do âmbito de aplicação da lei a todos eles já garantiria por si só o resguardo da igualdade.

É possível perceber que a justiça distributiva não deixou de ser aplicada (ou, pelo menos, não ganhou tanto espaço como a comutativa) propositalmente. É que a premissa do Estado Liberal era a de que os indivíduos são eminentemente iguais. O mesmo status político de cada cidadão frente ao Estado lhes conferia, de per se, franca semelhança. Além dessa premissa, é preciso destacar que o papel do Estado revelava-se muito distante da sua atual missão: tratava-se de um Estado contemplativo, o L’État Gendarme, com nenhuma ou pouca possibilidade de interferir na sociedade [04], que era guiada amplamente pelos "desejos" do mercado. O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [05] pode ser apontado como a consagração positivada dessa igualdade perante a lei.

A mudança de postura do Estado possibilitou um novo enfoque para a igualdade, mais baseada na justiça distributiva. Mas não é só. A igualdade na lei é, em grande parte, contribuição da teoria marxista, a qual foi capaz de perceber que a sociedade estava dividida em classes e que, portanto, os homens não poderiam ser considerados todos iguais perante o Estado. O marxismo prova de uma vez por todas que os indivíduos têm diferentes necessidades e que a aplicação irrestrita dos mesmos ditames para todos eles não tem aptidão para garantir o aspecto material da igualdade – ao contrário, maximiza as desigualdades.

Em resposta, portanto, à consagração do aspecto formal da igualdade (igualdade perante a lei), a partir do marxismo e, definitivamente, com o Estado Social, passou-se a realçar o substrato material da igualdade (igualdade na lei). Assim, as próprias normas deveriam veicular preceitos diferentes para pessoas diferentes. A dessemelhança, contudo, não poderia dar lugar à arbitrariedade e, por isso, deveria ser racional, vale dizer, o critério de discriminação deveria ser legítimo [06]. Essa legitimidade estaria diretamente relacionada com três "testes": (i) o da razoabilidade do critério de discriminação escolhido, (ii) o da adequação entre o fator discriminatório adotado e a disparidade no tratamento adotado e (iii) o da promoção dos valores constitucionais de determinada ordem jurídica.

Modernamente, no Estado Democrático de Direito, a discussão a respeito do princípio da igualdade ganha novos contornos. Diversas são as teorias que procuram trabalhar com a igualdade. Discute-se sobre igualdade de chances e igualdade de resultados, sobre a igualdade a partir de critérios de distribuição de bens justos, entre outras formulações. No âmbito do Direito Tributário, não há grandes inovações nesse percurso traçado até agora, e nem poderia ser de outra maneira.

O Estado Patrimonial foi marcado pelo regime de imunidades e privilégios das classes altas da sociedade (Nobreza e Clero). A liberdade dos estamentos foi, então, valorizada em detrimento da igualdade. É importante destacar, contudo, que o regime de imunidades e privilégios não é, por si só, uma violação à igualdade, afinal, como se sabe, hoje em dia, algumas das Constituições que consagram expressamente o princípio da igualdade convivem com um sistema de imunidades. A Constituição brasileira de 1988 é um exemplo disso. Mas a verdade é que, naquela época, os Reis governavam para si, para a Nobreza e para o Clero e, destarte, as imunidades restavam atreladas a esse tipo de política – estavam, portanto, muito longe de representar um abrandamento da tributação em prol de direitos fundamentais –, cabendo ao povo subsidiar as vontades do governo [07]. Havia, desta forma, real inversão da lógica das imunidades (pelo menos como ela é hoje concebida e estruturada) com aprofundamento das desigualdades políticas, econômicas e sociais [08]. A insustentabilidade desse modelo fez com que lentamente o príncipe fosse centralizando a política e as finanças do Estado e a burguesia assumisse um papel de destaque no Estado. Trata-se do Estado de Polícia, caracterizado pelo fim das imunidades estamentais da Nobreza e do Clero [09].

Até então, como se observa, a tributação não era uma prática generalizada, senão que guardava relação com eventos esporádicos (tais como as Cruzadas, por exemplo) e, mesmo assim, a igualdade passava longe de contribuir com fundamentação e/ou justificação da imposição tributária. Com a ascensão do liberalismo e o crescimento dos Estados, cresceu a necessidade de a população subsidiar os gastos do Estado (que não era mais auto-sustentável) e a exação se revelou o meio mais eficaz. Para tanto, a atividade tributária aumentou, abrangendo mais e mais indivíduos. Teorias de justificação foram desenvolvidas para dar aporte doutrinário a essa ampla utilização dos tributos como instrumentos de custeio do Estado; em outras palavras, para que se evitasse uma crise sócio-política por causa da tributação, fazia-se mister convencer os cidadãos a respeito da legitimidade das exações.

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Dois foram os pontos usados pelo Estado Fiscal Liberal para sustentar a tributação: (i) a compreensão desta como garantidora da liberdade e (ii) o desenvolvimento do princípio da capacidade contributiva. No que toca ao primeiro ponto, houve toda uma movimentação doutrinária no sentido de justificar a tributação como preço da liberdade [10]. Assim, cada um contribuía com pequena parcela do patrimônio para garantir o núcleo de sua liberdade. O tributo era visto como um pedaço marginal de liberdade do qual se podia abrir mão em prol da proteção de um pedaço maior e essencial da liberdade. Paralelamente a essa construção, depois da Revolução Francesa, o princípio da capacidade contributiva começou a ser aplicado contidamente, representando a transposição da igualdade para o campo tributário através da constatação de que cada um deveria contribuir de acordo com sua capacidade econômica. O estabelecimento de imunidades e privilégios para resguardar o mínimo de liberdade de um determinado indivíduo reforça a incipiente idealização da capacidade contributiva [11]. Com o Estado Social Fiscal deu-se uma aproximação entre a liberdade e a justiça e, só então, passaram a existir posições que defendiam uma maior igualdade em sentido material. A capacidade contributiva ganhou contornos mais firmes e passou a ser efetivamente aplicada como concretização da igualdade em matéria tributária (igualitarismo tributário). Por fim, com o Estado Democrático Fiscal, as doutrinas igualitaristas, que aproximavam igualdade de capacidade contributiva foram perdendo força (notadamente na Alemanha), dando lugar às teorias neoliberais sobre igualdade, tais como as de Dworkin e Walzer. Curiosamente, no Brasil, ainda hoje a capacidade contributiva é entendida e aplicada como corolário da igualdade, sem que, por conta disso, comprometa-se sua eficácia e sua efetividade. A bem da verdade, em relação à igualdade no campo do Direito Tributário, é pouca a diferença entre o Estado Social Fiscal e o Estado Democrático Fiscal [12]. As teorias sobre liberdade [13] é que efetivamente sofreram radical transformação de um período para o outro.

Em suma, como destaca Griziotti, o princípio da igualdade no ambiente fiscal pode ser resumido nos seguintes postulados:

"1) Los sujetos a la soberania fiscal deben ser sometidos a las cargas públicas proporcionalmente a su capacidad contributiva y a paridad de capacidad deben corresponder iguales tributos.

2) Las exenciones y atenuaciones de gravamen deben establecerse por la ley.

3) No se deben conceder privilégios fiscales.

4) No debe darse lugar a doble imposición ni a excesos fiscales" [14].

Colocadas essas linhas gerais sobre igualdade, alguns desses postulados serão clarificados a seguir, com o estudo do princípio da capacidade contributiva.


II. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

Conforme se destacou anteriormente, o princípio da igualdade no seu aspecto material impõe que a dessemelhança fática apurada entre indivíduos seja convertida em tratamentos estatais potencialmente diferentes entre eles. Já foi visto também que um problema que deriva dessa concepção é saber se um critério de desigualdade é justo, bem como se a eleição desse critério guarda pertinência lógica com os resultados que se pretende alcançar, além da conformidade deste com o sistema constitucional.

Nada obstante essa dificuldade prática, o princípio da igualdade material é uma premissa de justiça e, por assim ser, foi recepcionado em todo o ordenamento [15]. No Direito Tributário, a igualdade material se realiza mais concretamente por meio do princípio da capacidade contributiva [16]. O texto constitucional brasileiro de 1998 alude à capacidade contributiva no seu art. 145, §1º, assim redigido: "Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte". A partir daí, definiu-se capacidade contributiva como o dever colocado a cada um de contribuir para o gasto público na medida de suas possibilidades econômicas. Como se verá em seguida, esse, no entanto, é apenas um dos dois vieses do princípio.

II.1. O viés quantitativo da capacidade contributiva.

O primeiro sentido da capacidade pode ser chamado de quantitativo, pois remonta essencialmente aos elementos quantitativos dos tributos [17]. Trata-se do senso comum [18], ou seja, pela capacidade contributiva o cidadão contribui em razão de sua riqueza. Como assevera José Marcos Domingues de Oliveira, neste caso, a capacidade contributiva funciona como "critério de graduação e limite do tributo" [19].

Vê-se, pois, que, aí, a riqueza foi eleita como discrímen entre os indivíduos no plano fiscal. Ora, tendo em conta a lição de Karl Larenz, o fator de discriminação deve ser razoável / proporcional para efeitos da igualdade. A riqueza é, sem dúvida, o principal critério diferenciador no âmbito do Direito Tributário [20] e, portanto, revela-se discrímen juridicamente apto a servir de base para eventuais tratamentos desiguais de contribuintes perante o Fisco. É esse aspecto da capacidade contributiva que justificará em grande parte a adoção de alíquotas progressivas nos impostos, conforme adiante se tentará demonstrar.

Apesar de a riqueza ser hoje considerada o discrímen básico para ordem tributária (em total atenção à capacidade contributiva), não foi ela o critério desenvolvido a priori para justificar a imposição diferenciada entre os indivíduos [21].

Durante muito tempo acreditou-se que o contribuinte deveria arcar com os gastos públicos tendo em conta a utilidade que lhe derivava das prestações do Estado (teoria da equivalência) [22]. Portanto, quem recebesse mais pagaria mais.

"Tal afirmación refleja claramente el ideario económico liberal o individualista al que responde. El tributo trata de asimilarse a la imagem del precio pagado libremente entre indivíduos libres en un mercado de libre concurrencia. En este mercado cada individuo paga el precio de un bien porque de él deriva una utilidad. Porque con él satisface una necesidad. El cambio del bien por el precio se hace en tanto sea vantajoso para las dos partes" [23].

Duas foram as críticas lançadas a essa teoria. Em primeiro lugar, é factível que certos serviços são fornecidos a título universal, não sendo possível avaliar qual o proveito tirado por um determinado contribuinte em específico. Destarte, a teoria só funcionaria bem para os tributos vinculados – como as taxas e as contribuições de melhoria, por exemplo –, nos quais os serviços são prestados uti singuli, mas não ajudaria, por outro lado, a diferenciação entre pessoas no campo dos tributos não vinculados – notadamente os impostos [24]. Em segundo lugar, é difícil definir com precisão (ou, pelo menos, a ponto de justificar uma diferença de tratamento tributário) qual o grau de benefício auferido em razão de um ato do Poder Público. Isso ocorre pelo simples motivo de que as pessoas têm gostos e necessidades diversos e, portanto, a utilidade para um pode ser a inutilidade para outro. Seguindo este raciocínio, o valor do benefício seria atribuído pelo Estado, ad hoc, e poderia não encontrar paralelo na realidade, afastando-se, portanto, da justiça (valor que lhe deveria ser originalmente informador) [25].

A prestação de serviços divisíveis já estava devidamente justificada pelo princípio da equivalência. Considerando a dificuldade da aplicação desta teoria aos tributos não vinculados, buscou-se uma nova construção teórica que pudesse dar aporte à constatação singela de que os cidadãos deveriam contribuir diferentemente [26]. Só então a riqueza foi eleita como fator de discriminação (ainda que de forma distante da configuração atual). Passou-se a defender que, quando da prestação de serviços indivisíveis, os indivíduos contribuiriam em quantidades proporcionais a sua capacidade econômica, não se devendo ter em consideração, para fins de graduação do tributo, os benefícios advindos da atividade do Poder Público [27]. Assim, começou-se a crer que, ao menos hipoteticamente, o descompasso entre as situações financeiras poderia indicar um parâmetro hábil a desigualar os contribuintes de impostos (ou de qualquer outro tributo não vinculado), porque os mais ricos se utilizariam mais de algumas prestações estatais, tais como as desenvolvidas em favor da proteção da propriedade privada e do acesso à justiça. Como se observa, a idéia de capacidade contributiva ainda estava bastante atrelada ao conceito de utilidade auferida pela prestação de serviços públicos. Com o tempo, entretanto, esse enlace foi sendo desfeito.

Para tanto, desenvolveram-se as teorias do sacrifício [28]. A idéia geral dessas construções doutrinárias se sustenta no fato de que a igualdade dos homens deve se refletir na intensidade do sacrifício sofrido no momento do custeio do Estado. Isso significa dizer que cada um suportará não a mesma soma numérica (que se expressaria por um valor fixo do tributo, como, por exemplo, mil reais) – pois isto importaria necessariamente que quem detivesse maior capacidade econômica suportasse uma carga menor do que aquela suportada por quem detivesse menos patrimônio –, mas, ao contrário, que determinada pessoa pagaria tributo em quantidade proporcional à sua capacidade, de modo que, ao final, o sacrifício suportado por cada membro da coletividade fosse rigorosamente o mesmo. Tendo em conta esta mesma abstração teórica, formularam-se a teoria do sacrifício igual e do sacrifício proporcional.

"De acuerdo con la teoría del sacrifício igual, los impuestos deben repartirse de forma que todos los individuos sufran, en términos de utilidad detraída por el tributo, un sacrificio igual. (...)

La teoría del sacrificio proporcional puede entenderse como una simple variante, perfeccionada, de la expuesta. Según ella, cada individuo ha de desprenderse al pagar el impuesto de una dosis de utilidad igual, en proporción a la dosis total de utilidad que él detenta, a aquélla de la que se ven privados los demás miembros de la comunidad" [29].

Deixando de tomar o indivíduo como ponto de referência e passando a considerar a comunidade como um todo, desenvolveu-se, ainda, a teoria do sacrifício mínimo, segundo a qual a repartição da carga tributária dos impostos deveria importar, como um todo, o menor sacrifício possível (daí, inclusive, o nome que se deu à teoria). Neste sentido, tanto melhor seria quanto menor fosse o número de indivíduos instados a participar da subvenção aos gastos públicos. A melhor maneira para atingir este fim seria tributar somente os mais ricos, pois a mesma quantidade de tributo seria custeada pelo menor número de pessoas possível e, portanto, a sociedade sofreria, em conjunto, um sacrifício mínimo.

Contra essas teorias não se pode opor, por certo, a impossibilidade de aplicação aos tributos não vinculados (aliás, elas foram desenvolvidas exatamente para dar cabo da dificuldade que adveio da aplicação da teoria da equivalência aos impostos), mas permanece a crítica já feita à teoria da equivalência no que tange à dificuldade de pontuar, na prática, o conceito e o valor do benefício, por conta da diversidade de necessidades, sensações e gostos [30]. Apesar da imprecisão, essas teorias ainda têm considerável eco na doutrina e na jurisprudência e ajudaram a solidificar a obrigatoriedade da imposição progressiva como conseqüência dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva [31].

Além das teorias da equivalência e do sacrifício, eminentemente econômicas (ou objetivas), existe pelo menos um outro argumento, de cunho jurídico e sociológico (ou subjetivo), para a eleição da riqueza como discrímen principal do sistema tributário, que é a solidariedade. O segundo pós-guerra foi marcado por intensa aproximação entre a Moral e o Direito, movimento denominado de virada kantiana. Depois que Hitler subiu ao poder e promoveu todo o Holocausto dentro dos estritos ditames legais, a comunidade jurídica percebeu que os ordenamentos precisavam ser algo mais do que apenas um sistema formal de normas, carecendo de fatores de legitimação que os tornariam verdadeiramente uma tábua axiológica das sociedades (vulgarmente, os direitos fundamentais). Quer dizer, tornou-se imperioso que os valores maiores de cada grupo social servissem de elemento informativo, conformativo e interpretativo de todo o arcabouço normativo [32]. Os horrores do nazi-fascismo trouxeram a compreensão posterior de que o Direito persegue a proteção do homem e que, em sendo assim, não eram as relações patrimoniais (entre elas, destaque-se, a relação tributária), mas, ao revés, as situações existenciais, que deveriam ser a pedra de toque do Direito. Esse câmbio de perspectiva elevou a dignidade da pessoa humana ao centro dos ordenamentos.

Em consonância com essa nova concepção, a Constituição brasileira de 1988 consagrou a dignidade humana como fundamento da República e, como seu objetivo fundamental, formar uma sociedade solidária (CF/88, art. 3º, I). É legítimo admitir que a solidariedade é, portanto, um meio para consecução da dignidade da pessoa humana. De forma geral, o dever de solidariedade decorre da conscientização de que a pessoa não é um ser descontextualizado, mas, ao contrário, sua existência é influenciada pelo todo e, em particular, por aqueles que a rodeiam, tornando-se relevante conceber o outro como um igual e perseguir a realização do interesse comum [33].

O Direito Tributário não ficou imune a essa releitura existencial do Direito [34]. No que tange mais especificamente à imposição segundo à capacidade, em última instância, é possível reconduzir a ela o dever de contribuir genericamente para os gastos públicos em razão de sua riqueza [35]. Em outras palavras, aqueles com mais recursos financeiros tributáveis, em atenção às impossibilidades e contingências dos seus pares e ao interesse comum, deveriam assumir uma carga de exação maior.

A teoria da solidariedade, justificando a riqueza como critério de diferenciação no campo tributário, foge às críticas formuladas tanto à teoria da equivalência como às teorias do sacrifício, porque não depende de qualquer premissa econômico-objetiva para constatar que as condutas estatais, em prol da preservação da coletividade, não podem deixar de observar as peculiaridades de cada pessoa. Trata-se, como já se afirmou, de teoria com substrato sociológico.

Mas sua maior vantagem talvez seja também seu maior problema: a abstração do conceito de solidariedade não ajudará o legislador ou o intérprete a definir exatamente qual a técnica de diferenciação mais adequada, ou seja, se a proporcionalidade ou a progressividade, por exemplo. De qualquer maneira, mais do que uma construção de fundamentação ou de justificação, tem-se na teoria da solidariedade uma fonte de legitimação para a cobrança diferenciada.

II.2. O viés qualitativo [36] da capacidade contributiva.

Além de servir como parâmetro para a definição dos elementos quantitativos dos tributos, o princípio da capacidade contributiva também é pressuposto da tributação [37]. Por isso alguns autores falam em capacidade contributiva absoluta, para se referir às hipóteses em que exista de fato manifestação de riqueza apta a ser tributada, ou, em outras palavras, em que exista efetiva capacidade para contribuir [38]. Não se tratar de apurar em qual medida cada indivíduo vai contribuir, mas se determinada pessoa ou grupo de pessoas pode contribuir.

Outra também é a conotação dada à expressão "capacidade contributiva absoluta", qual seja, a de causa do tributo. Em outras palavras: surge para o legislador o dever de só escolher como fatos geradores de tributos aqueles que revelem capacidade econômica (daí ser ela tida como causa) [39]. Como se vê, é uma faceta que decorre de considerar a capacidade contributiva como pressuposto do tributo e, por isso, ao lado da perspectiva anterior, será tratada neste tópico.

A fundamentação deste viés da capacidade contributiva repousa na tutela do mínimo existencial. Os fatores para apurar capacidade econômica são muitos: renda percebida, renda acumulada, número de imóveis que se possui etc. No entanto, é perceptível que parcela destes bens que compõe no todo a riqueza de um cidadão são empregados para seu próprio sustento e, em havendo, o de sua família. Tal parcela não pode ser alvo de tributação, sob pena de se infringir o mínimo existencial, e, com isto, a dignidade humana. Assim, é correto postular que a atividade impositiva só poderá recair legitimamente sobre um cidadão a partir de determinado ponto de sua riqueza [40].

Alem da tutela do mínimo existencial, pode-se destacar como fundamento do aspecto qualitativo do princípio da capacidade contributiva a supremacia e indisponibilidade do interesse público. Explica-se. A Administração tributária (como de resto toda a Administração Pública) deve atuar em prol da coletividade, em prol da proteção e da concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos [41]. Essa é, em última análise, a finalidade do Estado. Para desempenhar corretamente o seu papel, o Poder Público precisa de meios, sejam materiais (recursos, estruturas físicas, aparelhagens, pessoal etc.), sejam jurídicos (poderes, prerrogativas, faculdades etc.). Tem-se, pois, de um lado, o que se convencionou chamar de interesse público primário – isto é, promoção dos direitos fundamentais pelo Poder Público – e, de outro, o interesse público secundário – quer dizer, a proteção da situação jurídica do Estado em si (notadamente do erário). Quando se afirma a supremacia e a indisponibilidade do interesse público tem-se em mente não o interesse público secundário (interesse da pessoa jurídica de direito público), mas sim o interesse público primário, porque, ocorrendo o inverso, estar-se-ia priorizando os meios em detrimento dos fins [42].

Pois bem. É evidente que a arrecadação de recursos por conta do poder impositivo é um meio para a implementação dos direitos fundamentais e, por isso, caracteriza-se como interesse público secundário. A dignidade da pessoa humana – valor guarnecido pela tutela do mínimo existencial – foi alçada, com a edição da Constituição Federal de 1988, a fundamento da República (CF/88, art. 1º, III), constituindo-se em interesse público primário [43]. Não faz sentido, pois, que se pretenda tributar sem levar em conta exatamente aquilo que se considera como valor informativo de todo o sistema [44]. Em suma: onde não houver riqueza tributável (por necessária observância dos padrões mínimos de sobrevivência) não há indícios de capacidade econômica e, conseqüentemente, não poderá haver manifestação do poder aquisitivo (daí se falar em capacidade contributiva também como pressuposto ou causa da atividade tributária).

Esse viés da capacidade contributiva ganha maior relevância ainda quando se conclui que o Poder Judiciário tem o dever de anular disposições normativas que tenham tomado com fato imponível um fato ou ato jurídico que não revele substrato econômico, i.e., que não tenha em conta a capacidade contributiva [45].

Sobre a autora
Renata Ribeiro Baptista

advogada, mestranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAPTISTA, Renata Ribeiro. (Ainda) a capacidade contributiva e a progressividade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1538, 17 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10419. Acesso em: 26 nov. 2024.

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