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Projeto de lei 490/2007 e o marco temporal das terras indígenas

Agenda 12/06/2023 às 10:04

Em 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou e encaminhou ao Senado para votação, o Projeto de Lei nº 490/2007, com mais de 16 anos de tramitação, sobre o marco temporal da demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas.


1. Existe apenas um tipo de terra indígena?

A resposta é não, existem três tipos de terras indígenas. Tanto no Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973), artigo 17, como no PL 490/2007, artigo 3º, são diferenciadas as três modalidades de terras indígenas: (1) as "tradicionalmente ocupadas", (2) as "áreas reservadas" e (3) as "terras de domínio das comunidades indígenas".

As primeiras (tradicionalmente ocupadas), demarcadas sob um critério temporal, que se encontra em discussão; a segunda (reserva indígena), criada pelo Governo para alocação de comunidades e etnias ao longo da história (Xingu); e a terceira (domínio), adquiridas pelos indígenas e consideradas como tal.

As terras indígenas chamadas de "tradicionalmente ocupadas" são as mais polemizadas, diante da discussão "temporal" da ocupação, são as terras em que se discutem questões antropológicas e de ancestralidade, com base no artigo 231 da Constituição, em vias de regulamentação pelo PL 490/2007.


2. É necessária regulamentação do marco temporal por lei federal?

A resposta é sim, tanto é necessário, que na falta desta regulamentação o assunto teve que ser decidido em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal, no caso Raposa Serra do Sol, que pode ser consultado pela sigla “PET3888” na consulta processual da Suprema Corte.

Isto porque, a Constituição Federal, em seus 250 (duzentos e cinquenta) artigos, traz normas gerais que muitas vezes não se aplicam por si só, sendo necessário que cada artigo, ou conjunto de artigos, seja detalhado por meio de leis federais específicas (Estatuto do Índio, Código Florestal, Código de Processo Civil etc.), seguido por decretos federais e daí por diante, até a legislação estadual, municipal, portarias e normativas de órgãos públicos.

No caso, o artigo 231, da Constituição, motivo desta problemática a respeito da demarcação de terras indígenas, estabelece que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (em destaque).

O primeiro parágrafo (§1º) deste mesmo artigo determina que “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Mesmo que a Constituição Federal tenha esclarecido que o direito dos indígenas é sobre terras que tradicionalmente ocupam e em caráter permanente, inúmeros embates jurídicos foram travados a respeito de cada uma destas palavras, por falta de uma lei federal que fizesse o devido esclarecimento.

Logo após, na cronologia normativa, em 1996, surge o Decreto Federal nº 1.775, dizendo que as “terras tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas seriam demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao indígena, de acordo com aquele Decreto (artigo 1º), com base em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que deve elaborar estudo antropológico de identificação (artigo 2º).

O Decreto Federal nº 1.775/1996, portanto, seguindo a regra de que deveria regulamentar uma lei federal, o fez com relação ao artigo 17, inciso I do Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973), que orienta apenas que são terras indígenas aquelas ocupadas a que se refere o artigo 231 da Constituição Federal, permanecendo esta “brecha” ou este “vácuo” a respeito destas terras que tradicionalmente ocupam e em caráter permanente.

Por isso, 19 (dezenove) anos após a promulgação da Constituição Federal, em meio a tamanha judicialização deste assunto, surge a iniciativa de regulamentar o que seriam “terras tradicionalmente ocupadas em caráter permanente”, por meio do Projeto de Lei nº 490/2007, o qual tramitou mais 16 (dezesseis) anos até sua votação no Congresso que ocorreu na Câmara dos Deputados no dia 30 (trinta) de maio deste ano, resultando em sua aprovação e encaminhamento ao Senado.

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Enquanto isso, entre 1998 e 2005 era discutida a Portaria nº 820/1998, modificada pela Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, discutindo a demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas em Roraima, o famoso caso Raposa Serra do Sol, homologado por decreto do Presidente da República em 15 de abril de 2005, demarcando uma área de 1.747.464 hectares entre os municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fronteira com a Venezuela.

O caso da Raposa Serra do Sol (PET3888/STF) foi uma ação popular ajuizada pelo Senador Augusto Affonso Botelho Neto em face da União, pleiteando a declaração de nulidade da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, pois o procedimento de demarcação estaria equivocado e ofenderia os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade e devido processo legal.

E assim, em 2009, ao julgar o caso, o Supremo Tribunal Federal, deu a interpretação ao artigo 231 da Constituição Federal que até o momento não se fez pelas vias legislativas, ou seja, não é apenas uma tese jurídica, é a orientação da Constituição Federal e do Estatuto do Índio, interpretada pelo STF, no sentido de que são demarcadas apenas as terras indígenas em que povos indígenas ocupavam ou disputavam até 5/10/1988, promulgação da Constituição.

Naquela ocasião do caso Raposa Serra do Sol, houve consenso do STF decidindo uma definição para “marco temporal da ocupação”, ficando registrado o seguinte:

[...] I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos indígenas, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante recrutamento de indígenas de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência de expulsão de indígenas para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. [...]

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Considerava-se, portanto, um critério chamado “renitente esbulho”, em outras palavras, o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal de 05/10/1988.

Além do mais, é importante comentar que o próprio Estatuto do Índio, artigo 25, garante que o reconhecimento do direito dos indígenas à posse permanente das terras por eles habitadas será assegurado, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação.

Em 2012, a Advocacia Geral da União (AGU), com competências para fazer cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal no território nacional, determinou que todos os órgãos da administração federal, incluindo a FUNAI, obedecessem aos critérios estabelecidos pelo caso Raposa Serra do Sol, por meio da Portaria nº 303/2012, voltando a valer por meio da Portaria nº 415/2012.

E em 2017, o Parecer nº 001/2017, da Advocacia Geral da União, determinou aos processos administrativos (Funai) de demarcação de terras indígenas que fossem observadas e respeitadas as famosas “19 condicionantes” (condições) fixadas pelo Supremo Tribunal Federal do caso Raposa Serra do Sol, como por exemplo, a proibição de que os indígenas façam exploração de recursos minerais e hídricos sem autorização do Congresso Nacional, a atuação da Força Nacional sem consulta à Funai, o trânsito de pessoas pelas áreas sem cobrança de tarifas pelos indígenas, a proibição de arrendamento, proibição de ampliação de demarcações, entre outros.


3. Por que o assunto não se encerrou com o caso Raposa Serra do Sol?

O caso Raposa Serra do Sol não modulou efeitos para todos os demais julgamentos sobre o mesmo tema e isso aconteceu por uma “falha processual” da época em não determinar a aplicação do efeito chamado de Repercussão Geral.

Houve tentativa de modular os efeitos da decisão do caso Raposa Serra do Sol para todo o país por meio de Embargos de Declaração, entretanto, a Ministra Rosa Weber decidiu que não seria possível e que somente o julgamento já serviria como “diretriz relevante para as autoridades estatais que viessem a enfrentar novamente as mesmas questões”.

O ministro Luís Roberto Barroso, quando à época de sua relatoria no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, também julgou no sentido de que “a decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”.

De toda forma, o resultado já sabemos, mesmo com diretrizes relevantes nas mesmas questões e mesmo com tamanha “força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, o assunto foi novamente admitido para discussão no próprio STF, pelo Recurso Extraordinário 1.017.365, desta vez com efeitos a produzir em todo o País, em razão da chamada “Repercussão Geral”, Tema 1031.


4. Qual a novidade? Existem motivos para uma mudança de entendimento do STF?

A novidade foi a inclusão de uma discussão sobre a chamada “teoria do Indigenato”, esta sim, uma verdadeira tese jurídica inovadora à legislação, encampada pelos indigenistas, às margens da falta de regulamentação do marco temporal e em contradição com o caso Raposa Serra do Sol, no sentido de que o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas seria um direito inato, congênito, anterior à própria criação do Estado brasileiro.

Segundo a tese jurídica da teoria do Indigenato, não prevista em lei, não poderia haver nenhuma limitação a este direito ancestral, devendo o poder público federal demarcar e proteger todas as terras em que um passado remoto e distante já esteve presente.

Parece coerente? Como garantir para aqueles que compraram terras antes da Constituição, sem a presença de indígenas, que ali era terra indígena de posse imemorial? Se estas questões não são respondidas juridicamente, longe da ideologia, não há estabilidade jurídica, social ou fundiária.

Aliás, até o momento, o STF sequer se pronunciou devidamente a respeito da necessidade de rediscutir um tema já decidido com a “força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País” que outrora considerava, sem falar da falta de motivos para superação ou sua distinção de tão importante precedente, ameaçando gravemente a segurança e estabilidades jurídica e socioeconômica.

Nossa legislação proíbe a repristinação, ou seja, ressuscitar direitos, como pretende a tal teoria do Indigenato, sequer prevista em lei.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto 4.657/1942), determina que uma norma só volta a valer se explícita, expressa em outra norma (artigos 2º e 3º), não há repristinação automática, muito menos criada por tribunais; e a ‘nova ordem constitucional’ (1988), trouxe sim o marco temporal, sem qualquer menção à ‘donos naturais das terras’ (indigenato), portanto não há possibilidade de retornar os indígenas a todas as terras nas quais um dia supostamente estiveram.

A Lei de Terras (601/1850) previa três tipos de terras: terras particulares, terras a serem legitimadas e terras devolutas. Estas últimas reservadas para a colonização indígena, sem qualquer menção a donos naturais.


5. Terras com uso e ocupação do solo consolidado com uso agropecuário podem novamente se tornar terras de usos e costumes tradicionalmente indígenas?

Voltamos à leitura do artigo 231, §1º da Constituição Federal:

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

O Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973), no artigo 3º, considera ‘índio ou silvícola’ todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.

O mesmo estatuto considera como indígenas integrados (art. 4°, III) aqueles incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.

Portanto a utilização de terras indígenas com finalidades diversas de seus “usos e costumes” (soja, pecuária etc.), para trazer desenvolvimento socioeconômico às comunidades indígenas, traz uma linha tênue entre a flexibilização do uso das terras indígenas e o esvaziamento do verdadeiro significado do art. 231, o qual reconhece expressamente usos, costumes e tradições de uma etnia.

Sendo assim, no atual planejamento territorial brasileiro, há alguma coerência em alocar indígenas em áreas já ocupadas há muitos anos com outros usos, sejam urbanos ou agrícolas?

Tais locais não serão mais convertidos em terra propícia para os usos e costumes da grande maioria das etnias indígenas. Não existem indígenas sojicultores e não serão destruídas as áreas de produção para retorná-las ao estado pré-colonização para que os indígenas habitem após a demarcação, é paradoxal!

A discussão é paradoxal, ao mesmo tempo em que o Brasil criou um belo exemplo de regramentos legais para a manutenção de uma riqueza cultural, também retira, destes povos, a possibilidade de aproveitamento destas terras para fins culturais ou até mesmo econômicos e seu direito de integração à sociedade, caso seja este o anseio da comunidade indígena.

Também não há possibilidade de dar terras a todos que pedem terras no Brasil, sejam produtores, indígenas, sem-terra (reforma agrária), ambientalistas (unidades de conservação) e outras muitas políticas públicas que segregam povos e deixam de priorizar o Brasil.

Atualmente, 14% do território brasileiro já está demarcado como terras indígenas e, segundo estudos da CNA, caso não haja um marco temporal, poderão ser ampliados para 27%, cerca de 237 milhões de hectares, em áreas rurais, urbanas, desocupadas ou ocupadas.

O impacto socioeconômico para muitas cidades, estados e para o país, destinando muita terra para pouca gente, será em prejuízo de todos os brasileiros, refletindo mais de 1,5 milhão de empregos a menos, R$364 bilhões de produção agrícola a menos, aumento de preços de alimentos, dentre outras consequências. Enfim, fora o marco temporal, outras questões podem aguardar maiores discussões.

Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

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