4. NOSSA SOLUÇÃO: A CIÊNCIA INSTITUCIONAL DE QUALQUER SERVIDOR PÚBLICO
4.1. Exposição da solução
Diversos autores de direito administrativo disciplinar parecem entender que a Administração pública somente atua por meio de autoridades de nível elevado. O lapso do ministro do STJ Napoleão Nunes Maia (vide item 3.3, supra) expressa essa posição, pois ele equipara “poder decisório” a “hierarquia superior” da Administração pública, como se somente os mais elevados graus da Administração tivessem algum poder de decisão. No entanto, é evidente que qualquer autoridade tem poder decisório, e mesmo servidores lotados em cargos “normais” podem tomar decisões que vinculam a Administração, bastando que a lei assim o determine. Como exemplo, citamos os já referidos fiscais em geral, bem como os servidores do atendimento ao público do Instituto Nacional da Seguridade Social, que têm autonomia para conceder ou não certo benefício diante da documentação apresentada.
Tal lapso do ministro não foi isolado. Todos os autores em direito disciplinar que examinamos, inclusive o manual de processo disciplinar da CGU, afirmam expressamente que a Administração “somente pode atuar” por meio das autoridades competentes: “Ao servidor – aí incluídas as autoridades de menor hierarquia ocupantes de chefias imediatas – sem poder decisório de conduzir a Administração, cabe o dever de representar, conforme o art. 116, VI e XII do citado Estatuto [Lei nº 8.112/1990]” (TEIXEIRA, 2020, p. 1.791).
Isso nos parece um resquício de uma visão que só enxerga autoridades na Administração pública. Servidores lotados em cargos efetivos sem cargo ou função comissionados quase não existem; são meros “tentáculos” das autoridades superiores, estas sim corporificando a Administração No entanto, essa visão é evidentemente ultrapassada. O Estado é uma abstração, uma hipostasia, e manifesta-se por meio de pessoas. É absurdo dizer que essas pessoas somente são as autoridades, afinal, os setores de atendimento ao público contam com servidores “comuns”, e não autoridades; e, no entanto, tais servidores efetivamente presentam a Administração. Suas declarações e decisões vinculam a Administração pública e podem até caracterizar atos coatores, suscetíveis de mandado de segurança.
Ou seja, no tratamento da prescrição disciplinar, os autores cometem certa confusão entre “autoridade competente para instaurar o processo” e “autoridade que presenta a Administração pública”, mormente porque, como explicamos acima, existe uma intrínseca relação entre a hierarquia e a apuração disciplinar. Mas precisamos rejeitar esse erro, tanto de maneira geral, quanto de maneira especial, quando tratamos das sanções decorrentes do poder de polícia, situação em que inexiste relação hierárquica.
Por tudo isso, conforme já vínhamos sugerindo ao longo do trabalho, nossa proposta é de que a “ciência da infração” a que o art. 25 da LAC se refere deve ser a ciência institucional (ou oficial) por parte de qualquer servidor público. Como visto acima, não vemos motivo válido para restringir essa ciência apenas a autoridades administrativas, independentemente de elas serem ou não competentes para a apuração do ilícito.
Adicionalmente, se o servidor público, ainda que no desempenho de suas funções, tomar ciência de certo fato ilícito mas nada fizer a respeito, não estará caracterizada a ciência institucional. É a mesma lógica que se aplica às funções oficiais em geral do servidor público: por exemplo, não adianta um oficial de justiça, ainda que no exercício de suas funções, meramente tomar ciência de certo fato. Só haverá efeitos jurídicos quando o oficial certificar sua ocorrência. Do mesmo modo, o servidor pode não ter percebido que se trata de ato ilícito – por exemplo, um auditor pode ter ciência dos valores de certo contrato superfaturado, mas não perceber de imediato que existe superfaturamento, ou a própria detecção do superfaturamento pode estar fora de seus conhecimentos específicos, impedindo-o de identificar que se trata de algo que mereça atenção.
Tal ciência oficial exclui a ciência do ilícito por mera notoriedade do fato, em razão das considerações que expusemos no final do item 3.5.
4.2. Fundamentação da escolha: persuasão, e não “objetividade científica”
Estamos conscientes de que nossa proposta não tem qualquer superioridade objetiva em relação às outras, isto é, não podemos apelar à coercibilidade matemática para sustentar sua adoção. Nossa exposição mostrou que, diante da natureza do problema, não se pode dizer que qualquer das soluções apontadas pela doutrina e jurisprudência, inclusive a nossa, tem algum tipo de superioridade intrínseca, isto é, a característica de ser reconhecida por qualquer pessoa racional como a única solução. Oferecemos nossa proposta como a que entendemos ser a mais persuasiva, a mais convincente.
Isso pode parecer muito vago, mas há um rico embasamento teórico para isso, que, de certo modo, toca a própria natureza do direito. No entanto, em razão do escopo limitado deste trabalho, apresentaremos um recorte limitado da concepção da argumentação jurídica como persuasão, e não demonstração matemática.
Na verdade, essa controvérsia existe pelo menos desde a seminal obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, tanto é que adquiriu o nome de “desafio kelseniano”. Ao tratar da interpretação, Kelsen diz que existem as interpretações autênticas e não autênticas. As interpretações autênticas da lei são aquelas efetuadas pelos órgãos juridicamente competentes para tanto, e as não autênticas são todas as outras. Em razão de sua competência, tais órgãos podem tomar a lei como uma mera moldura, e decidir o que quiserem dentro dessa moldura. Isto é, Kelsen nos diz quem pode interpretar, mas não diz o que pode ser interpretado:
A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito. (...)
A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência [rectius: ciência do direito] tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximadamente.
(KELSEN, 2003, pp. 395 e 396. Grifamos.)
Kelsen chega às últimas consequências da concepção de interpretação autêntica e doutrinária, e diz explicitamente que o intérprete autêntico pode julgar até mesmo fora da moldura da lei:
A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.
(KELSEN, 2003, p. 394. Grifamos)
À primeira vista, essa declaração radical pode parecer estranha. Afinal, a teoria pura de Kelsen é frequentemente considerada o ápice do positivismo jurídico, uma teoria tão neutra de valores que pode justificar até mesmo sistemas jurídicos totalitários e genocidas. No entanto, tal declaração é perfeitamente coerente com a própria distinção entre interpretações autêntica e doutrinária: se somente o intérprete autêntico pode estabelecer o sentido da lei, então o próprio conceito de “moldura” da lei como algo externo ao intérprete autêntico não existe, ou, no mínimo, é fixado pelo próprio intérprete autêntico, o que acaba resultando na mesma consequência: o intérprete autêntico tem liberdade de interpretar sem qualquer vinculação lógica com o conteúdo da lei interpretada.
Tal concepção também é coerente com textos do fim da vida de Kelsen, especialmente na correspondência travada com Ulrich Klug entre 1959 e 1965, nas quais Kelsen reiteradamente afirma que a lógica formal é inteiramente inaplicável ao conteúdo das normas jurídicas:
O emprego de princípios lógicos, especialmente o princípio da não contradição e a regra da conclusão, a normas em geral e a normas jurídicas em particular, não é todavia tão evidente como tem sido admitido pelos juristas. Pois os dois princípios lógicos são, de acordo com sua natureza, somente aplicáveis, pelo menos de maneira direta, a afirmações, na medida em que estas são o ignificado de pensamentos e podem ser verdadeiras ou falsas. (...) As normas, porém, significam atos volitivos e como tais não podem ser verdadeiras nem falsas.
(KELSEN & KLUG, 1984, p. 61)
Somente podemos aplicar a lógica às proposições a respeito das normas, mas não sobre o conteúdo das normas em si, pois normas jurídicas são atos de vontade, e não afirmações sobre a realidade. Kelsen não utiliza a terminologia “moldura” nesses textos, mas a implicação é evidente: se não podemos aplicar a lógica ao conteúdo das normas, então não existe uma “moldura” de sentidos possíveis da norma, pois a construção da moldura pressupõe a análise lógica do conteúdo da norma.
Isso também é condizente com a distinção que o próprio Kelsen apresenta entre sistemas normativos estáticos e dinâmicos: sistemas normativos estáticos são aqueles cujas normas podem sempre ser logicamente deduzidas umas das outras:
As normas de um ordenamento do primeiro tipo [estático], quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade.
(KELSEN, 2003, pp. 217 e 218)
Chamam-se estáticos porque não comportam expansão de conteúdo além do que já está ao menos implicitamente nos princípios superiores; cabe, no máximo, declarar consequências até então impensadas dos princípios superiores, mas nunca criar soluções estranhas a tais princípios. Um exemplo apresentado pelo próprio Kelsen seria o conjunto dos “Dez Mandamentos” da Bíblia Sagrada.
Sistemas dinâmicos, por sua vez, são sistemas normativos em que a validade de cada norma é aferida conforme a cadeia de competência dos órgãos que proferiram a decisão, e não do conteúdo lógico das normas:
O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (...) A norma que constitui o ponto de partida da questão não vale por força de seu conteúdo, ela não pode ser deduzida da norma pressuposta através de uma operação lógica.
(KELSEN, 2003, p. 219)
O direito seria um exemplo típico de sistema dinâmico. Com efeito, a validade de uma norma não decorre da compatibilidade de seu conteúdo com as normas superiores, pois somente a autoridade competente (por exemplo, o juiz de 1ª instância ou o tribunal constitucional) pode dizer se aquela norma é ou não compatível com as normas superiores. Se eu entendo que o conteúdo de certa lei é logicamente incompatível com a Constituição, mas o Supremo Tribunal Federal entende que ela é compatível, a lei será válida.
Ora, se o objeto de hermenêutica são conteúdos normativos essencialmente plurívocos, se o legislador, porque age por vontade e por razão, sempre abre múltiplas possibilidades de sentido para os conteúdos que estabelece, então à ciência jurídica cabe descrever esse fenômeno em seus devidos limites. Isto é, apenas mostrar a plurivocidade. Querer, por artifícios ditos metódicos, ir além dessa demonstração, tentar descobrir uma univocidade que não existe, é falsear o resultado e ultrapassar as fronteiras da ciência.
(...)
Com isso, porém, Kelsen frustra um dos objetivos fundamentais do saber dogmático, desde que ele foi configurado como um conhecimento racional do direito. Ainda que lhe atribuamos um caráter de tecnologia, de saber tecnológico, sua produção teórica fica sem fundamento, aparecendo como mero arbítrio. (...) Enfrentar essa questão constituiu o que chamaríamos, então, de o desafio kelseniano.
(FERRAZ JR., 2017, pp. 218 e 219. Destaques no original.)
Em suma, Kelsen entende que é impossível escolher, por meio de critérios estritamente jurídicos, qual dentre as diversas interpretações deve ser adotada. Ao jurista cabe, no máximo, descrever essa impossibilidade, jamais dizer qual decisão deve ser tomada em cada caso. Kelsen se referia especificamente ao “juiz” em sentido amplo, na condição de intérprete autêntico da norma, mas essas observações também se aplicam ao intérprete doutrinário: podemos construir diversas proposições sobre as normas e aplicar a análise lógica sobre elas, mas as normas em si mesmas não possuem sentidos determináveis logicamente.
Diversos estudos posteriores procuram abordar esse âmbito supostamente “ajurídico” da decidibilidade, isto é, de qual decisão (ou interpretação) deve ser adotada, e fornecer subsídios para, afinal, decidir qual interpretação ou rejeitar. Parece-nos que o Tratado da Argumentação, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, dialoga diretamente com o desafio kelseniano, pois esses autores criticam o uso da argumentação matemática (única que pode pretender convencer o “auditório universal”) como único critério de racionalidade. Buscam, assim, trabalhar o que Aristóteles chamava de retórica, a argumentação baseada não no necessário, e sim no verossímil: “O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições necessárias” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2020, p. 5). Leoanrd Schmitz complementa:
O direito é uma prática eminentemente argumentativa, onde (sic) – e essa é a premissa básica da retórica – não existem verdades ou inverdades absolutas. O processo argumentativo depende da existência de um orador e de um auditório, e um argumento pode ter adesão desse auditório, ou seja, ele pode dar-se por convencido do argumento, sem que haja condições materiais de comprovação da sua “veracidade”.
SCHMITZ, 2015, p. 116
Independentemente da controvérsia a respeito das concepções de Kelsen e Perelman & Olbrechts-Tyteca, ela é certamente aplicável para o nosso caso. Nossa pesquisa mostrou que a falta do estabelecimento de um termo inicial para a prescrição da LAC não tem qualquer solução objetiva, demonstrável “matematicamente”; sempre é necessário recorrer a algum outro critério que, em última análise, é persuasivo, e não coercivo.
Conscientes disso, preferimos explicitar os elementos persuasivos pelos quais entendemos capazes de tornar nossa solução da “ciência institucional” como a mais convincente:
Objetividade: condicionamos o termo inicial da prescrição da LAC à ciência de qualquer servidor público. A condição de servidor público é objetivamente aferível, assim como a comunicação que ele fizer a respeito do ilícito.
Coerência: A rejeição do fato notório como critério de ciência é coerente com a ideia de objetividade adotada acima.
-
Respeito à especificidade: mostramos como a prescrição da LAC tem elementos diferentes da prescrição disciplinar; com efeito, a LAC tem um sistema de polícia, enquanto a prescrição da Lei nº 8.112/1990 tem um sistema hierárquico disciplinar. Assim, rejeitamos a utilização analógica de que a ciência do ilícito deva necessariamente se dar por uma “autoridade” administrativa.
Justiça (lato sensu): o critério nos parece balanceado tanto para o administrado como para a Administração: condicionar o termo inicial da prescrição à ciência da autoridade especificamente competente para instaurar processo prorroga-o demasiadamente. Por outro lado, condicionar o transcurso da prescrição à ciência de pelo menos um servidor público evita que atos ilícitos prescrevam sem que a Administração pública tivesse tido sequer a possibilidade abstrata de apurá-lo.