4. CIRCUNSTÂNCIAS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE
O estudo do instituto da responsabilidade civil, em sua generalidade, não poderia ser completo ou satisfatório sem a abordagem de suas causas excludentes. Se importa conhecer os elementos necessários para a configuração do dever de reparação e as situações de surgimento desta obrigação, também é importante ter em mente aqueles casos em que, mesmo havendo conduta e o dano, a responsabilidade civil não se configura em razão da quebra do nexo de causalidade, a fim de delinear os limites de aplicação do instituto da responsabilidade civil. Assim, podem ser apontadas como circunstâncias excludentes o fato exclusivo da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior, o estado de necessidade, a legítima defesa, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento de dever legal.
O fato exclusivo da vítima é aquele em que a própria vítima deu causa à produção do resultado, sendo a sua causa apontada como a mais relevante, baseando-se na teoria da causalidade adequada. Desse modo, embora haja um agente “causador” do dano, a conduta deste é apenas um instrumento da conduta da vítima, tendo agido esta intencionalmente ou não, motivo pela qual o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano não se formará. Exemplificam Donizetti e Quintella (2012, p. 405):
O exemplo mais tradicionalmente repetido é o da pessoa que, de repente, lança-se à rua, na direção de um carro. Conquanto haja um ato do motorista, de dirigir, e um dano sofrido pelo pedestre, não há relação causal entre ambos, porquanto a causa mais adequada à produção do dano não foi o ato de transitar pela rua conduzindo um veículo, mas sim o ato da vítima de subitamente se lançar à rua. Não importa se o ato do motorista foi conforme ou contrário a direito. Estivesse ele dirigindo na mão correta, com toda diligência, ou dirigindo sem atenção, na contramão, seu ato não terá sido a causa mais adequada à produção do atropelamento. Tanto em um quanto em outro caso não haverá que se falar em responsabilidade civil, nem por culpa nem independente de culpa, porquanto não há nexo causal – à luz da teoria da causalidade adequada.
Se o fato exclusivo da vítima tiver criado uma situação que levou outrem a praticar um ato, que acabou lhe causando um dano, conquanto haja nexo de causalidade entre o ato e o dano – segundo a teoria da causalidade adequada -, o Direito não reputa justa a responsabilização do agente, porquanto o fato da vítima, mesmo não sendo a causa mais adequada à produção do dano, foi a mais juridicamente relevante e a mais repudiável. Novamente visualizam Donizetti e Quintella (2012, p. 405):
Imaginemos que um motorista, Augusto, em um cruzamento, mesmo vendo um carro que vinha em sua direção, na via que pretendia cruzar, ainda assim inicia o cruzamento. O motorista do outro carro, Manuel, na tentativa de frear para evitar a colisão, acaba perdendo o controle do carro e, depois de capotar, acerta o carro de Augusto. Diante do ato de frear bruscamente de Manuel e do dano sofrido por Augusto, analisamos o nexo de causalidade e somos levados a concluir que a causa mais adequada à produção do dano sofrido por Augusto foi a freada brusca de Manoel, que o levou a perder o controle do carro. E, presentes todos os requisitos que configuram a responsabilidade civil de Manuel, somos levados a reconhecê-la. Ocorre que o ato de Augusto, de avançar sobre o cruzamento, ainda que não tenha sido a causa mais adequada à produção do dano do seu próprio veículo, foi a causa da situação imprevisível que levou Manuel a praticar um ato que, em outras circunstâncias, não teria praticado. Logo, frente à relevância e a reprovabilidade do ato de Augusto, o Direito exclui a responsabilidade civil de Manuel.
Outro fator que pode configurar ou a ausência de causalidade ou a exclusão da responsabilidade é o fato de terceiro. Este ocorre quando uma pessoa diversa das pessoas do agente e da vítima cometer um ato, ainda que não o mais adequado, porém o mais relevante e o mais reprovável para o resultado danoso. Como exemplo pode ser citado o assalto em interior de ônibus coletivo, excluindo-se a responsabilidade da empresa fornecedora do serviço, por tratar-se de fato de terceiro inteiramente estranho à atividade de transporte, bem como a pessoa que arremessa um projétil em ônibus e fere passageiro. Corroboram Donizetti e Quintella (2012, p. 407):
Utilizando novamente o exemplo do atropelamento, imaginemos que, em vez de a vítima se lançar de súbito na rua, ela é empurrada violentamente por um terceiro e acaba se chocando com o carro. Mais uma vez, o ato do motorista – conforme ou contrário a direito, não importa – não foi o mais adequado a dar causa ao atropelamento, o qual foi o ato praticado pelo terceiro, de empurrar a vítima na direção da rua. Logo, entre a conduta do motorista e o dano sofrido pelo atropelado não há relação de causalidade – pela causalidade adequada –, pela que não se configura a responsabilidade civil, nem por culpa nem independente de culpa. E, valendo-nos novamente do exemplo do cruzamento, suponhamos que Manuel, ao frear bruscamente, perder o controle do carro e capotar, chocou-se não com o carro de Augusto, mas com o de Clóvis. Embora configurada a responsabilidade civil de Manuel pelo dano sofrido por Clóvis, o Direito a exclui de Manuel e a desloca para Augusto, por dar maior relevância ao fato de Augusto, mais reprovável.
Os conceitos de força maior e de caso fortuito se ligam a fatos imprevisíveis, à ideia de acidentes. Naquela conhece-se o motivo ou a causa que dá origem ao acontecimento, pois se trata de um fato da natureza, como raio, enchente, terremoto, entre outros. Já no caso fortuito, o acidente que acarreta o dano advém de causa desconhecida, como o cabo elétrico que se rompe e cai sobre fios telefônicos causando incêndio e danos a pessoas ou a bens. A característica básica da força maior é a sua inevitabilidade, mesmo sendo a sua causa conhecida, como uma situação da natureza; enquanto que o caso fortuito tem como caractere fundamental a imprevisibilidade, segundo os parâmetros do homem médio. Neste, a ocorrência repentina e até então desconhecida do evento atinge a parte incauta.
O estado de necessidade, por sua vez, tem base legal no artigo 188 do Código Civil, consistindo na deterioração ou destruição de coisa alheia, ou lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Agride-se um direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior àquele que se pretende salvar, para remover perigo iminente, sempre que a situação fática não permitir outra atuação. Há um colisão de interesses jurídicos tutelados. A reação, porém, ao perigo iminente deve ser proporcional, ou seja, apenas o suficiente para afastá-lo, respondendo o agente por qualquer excesso que venha a cometer. A curiosa e, de certa forma, incongruente situação presente no Código Civil, presente em seus artigos 929 e 930, reside no fato de que, se o terceiro atingido pelo ato praticado em estado de necessidade não for causador do perigo, poderá este exigir indenização do agente, cabendo a este ação regressiva contra quem proporcionou a situação de risco. Ou seja, ao mesmo tempo em que isenta o agente da responsabilidade, afirmando que não há ato ilícito em estado de necessidade, o diploma civil impõe-lhe a obrigação de reparar o dano no referido caso.
Por legítima defesa entende-se o ato do indivíduo cometido para afastar injusta e iminente agressão a sua pessoa ou a terceiro. Também exige que a reação seja proporcional, utilizada com moderação e de modo suficiente para afastar o evento danoso, através dos meios de defesa postos à disposição do agente. O excesso de reação é juridicamente proibido, devendo ser responsabilizado pela desproporção. Da mesma forma, responderá o agente se, na reação, atingir terceiro inocente, cabendo-lhe ação regressiva contra o verdadeiro agressor. No caso de legítima defesa putativa, aquela em que o indivíduo, por uma falsa percepção da realidade, entende estar sofrendo uma injusta e iminente agressão, quando na realidade não está, não há isenção da responsabilidade, não se excluindo o caráter ilícito da conduta. Assim, o agente será obrigado a reparar o dano causado, sendo a legítima defesa putativa relevante apenas para a culpabilidade penal.
Não poderá haver responsabilidade civil, ainda, se o agente atua no exercício regular de um direito reconhecido. Tal ocorre, por exemplo, quando se recebe autorização do Poder Público para desmatamento de uma área, ou quando se empreende atividades desportivas, como futebol ou boxe, onde é possível o surgimento de lesões, desde que não haja excesso. Por outro lado, se o sujeito extrapola os limites racionais do exercício justo do seu direito, fala-se em abuso de direito. Não é imprescindível para a caracterização da abusividade que o agente tenha a intenção de causar dano a outrem, bastando que exceda manifestamente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Estreitamente ligado a esta excludente está o estrito cumprimento do dever legal. Assim, não há que se falar em responsabilidade civil do policial que destrói a porta de uma residência para o cumprimento de uma ordem judicial. Porém, o excesso também é punível, caso o agente ultrapasse a esfera de sua atribuição ou do estabelecido pela ordem a ser cumprida.
5. RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
Visto o instituto da responsabilidade civil como um todo, buscando-se entender seu conceito, espécies, evolução histórica, os pressupostos necessários para sua configuração e as suas excludentes, delimitando a sua incidência, passa-se agora à particularidade da responsabilidade civil médica. Antes, porém, importa visualizar, ainda que brevemente, a responsabilidade profissional em sua generalidade, da qual aquela é integrante. Interessa esta análise por ser a responsabilidade civil profissional um dos campos de contornos mais dramáticos para a aferição da obrigação de indenizar.
Inicialmente é importante destacar o que venha a ser atividade profissional, caracterizada como a soma das ações, atribuições, encargos ou serviços praticados por uma pessoa em razão do seu ofício. Assim, responsabilidade civil profissional é aquela que surge em razão de condutas que geram um evento danoso oriundas do trabalho, em sentido amplo, de alguém.
Quanto a sua natureza jurídica, Gagliano e Pamplona Filho (2010) afirmam que, partindo do pressuposto de que o sujeito realiza a atividade em decorrência de sua atuação profissional, este tipo de responsabilidade se caracteriza como contratual, tendo em vista que pressupõe uma pactuação em que o profissional se obriga a prestar determinado serviço. Os autores distinguem, para melhor compreensão, as obrigações de meio das obrigações de resultado. Aquelas são as que o devedor se compromete a empreender a sua atividade com prudência e diligências normais, segundo as melhores técnicas, objetivando conseguir determinado resultado, mas sem ofertar garantias de que será atingido. E aqui se encaixa, em regra, a responsabilidade do médico, salvo em se tratando de cirurgia plástica estética, em que a obrigação é de resultado. No caso de cirurgia plástica reparadora, ou seja, aquela decorrente de queimaduras ou acidentes, a obrigação é de meio.
As obrigações de resultado, por sua vez, são aquelas em que o devedor se compromete a produzir o resultado esperado pelo credor, como nos contratos de transporte, no qual o destino da viagem deve ser alcançado, sem o qual o prestador de serviço é considerado inadimplente, não importando se utilizou as melhores técnicas e atuou com a diligência normal esperada.
Em ambas as situações, ter-se-á uma responsabilidade subjetiva, na qual a culpa do profissional deve ser demonstrada. Nas obrigações de meio, o prestador do serviço será compelido a reparar o dano se atuou de forma imprudente, desleal, pouco diligente ou sem as melhores técnicas, caso em que é possível que suporte o ônus de provar a sua atuação correta para excluir-se do ressarcimento. Nas obrigações de resultado, porém, cabe ao lesado a prova, tendo em vista ser esta bem mais fácil de ser demonstrada, pois basta ficar evidente o resultado.
Incumbe ressaltar que esta responsabilidade civil subjetiva é aplicada aos casos em que o profissional presta os seus serviços de forma direta. Se o profissional é contratado de uma pessoa jurídica, o lesado gozará do instituto da responsabilidade objetiva, pela qual a culpa não precisa sequer ser demonstrada. Assim, a responsabilidade do médico é subjetiva, sendo objetiva a responsabilidade do hospital que o contrata, podendo este acioná-lo regressivamente.
Diniz (2012) afirma ser bastante controvertida a questão da natureza jurídica da responsabilidade profissional, pois há autores que a incluem na seara contratual, outros, na extracontratual. A autora entende, porém, que aos profissionais liberais se aplicam as noções de obrigação de meio e de resultado, que partem de um contrato. Logo, não poderá de ser contratual a responsabilidade decorrente de infração dessas obrigações. Há casos, porém, em que, dos atos oriundos da responsabilidade profissional, pode advir responsabilidade também objetiva. Diniz (2012, p. 315) explica:
Não se pode olvidar que há, sem dúvida, certas profissões dotadas de função social, daí serem obrigações legais, de modo que o profissional responderá por elas tanto quanto pelas obrigações assumidas contratualmente. São hipótese em que coincidem as duas responsabilidades – a contratual e a extracontratual –, e o profissional deverá observar as normas reguladoras de seu ofício, umas vezes por força de contrato e outras, em virtude de lei. Mas, como a responsabilidade extracontratual só surge da ausência de um vínculo negocial, decorre daí que, se há vínculo contratual, o inadimplemento da obrigação contratual e legal cairá, conforme o caso, na órbita da responsabilidade contratual e não da delitual, ante a preponderância do elemento contratual. Todavia, em algumas hipóteses poder-se-á ter duas zonas independentes: a da responsabilidade contratual e a da responsabilidade delitual. P. ex.: se, em relação ao serviço médico, se cogitar da extensão do tratamento e de sua remuneração, do descumprimento desses deveres resultará uma responsabilidade contratual. Se um médico fez uma operação altamente perigosa e não consentida, sem observar as normas regulamentares de sua profissão, o caso será de responsabilidade extracontratual, visto que não houve inadimplemento contratual, mas violação a um dever lega, sancionado pela lei.
Gagliano e Pamplona Filho (2010, p. 249) destacam, segundo eles, “um interessante problema que está vindo à tona, com o advento do Novo Código Civil brasileiro”, referente à atuação de profissionais liberais que empreendem atividade de risco, como médicos e advogados. Os autores demonstram que há setores doutrinários que entendem pela aplicação da responsabilidade objetiva aos profissionais liberais, aplicando-se o Código Civil em lugar do Código de Defesa do Consumidor. Por sua vez, defendem que a disciplina geral da responsabilidade civil dos profissionais liberais permanece, a despeito de opiniões contrárias, de natureza subjetiva, pois o Código Civil, embora seja lei mais nova, prevalece sobre o diploma consumerista em razão de sua especialidade. Acreditam que este entendimento preserva a autonomia e a dignidade da atividade profissional.