Resumo: O instituto jurídico da responsabilidade civil se encontra entre os maiores geradores de demandas judiciais e discussões doutrinárias. Entre suas muitas vertentes, a responsabilidade civil na atividade médica contratual é tema cada vez mais recorrente nas lides travadas pelos tribunais pátrios, que envolvem obrigações de resultado, erros médicos e deveres em geral de clínicas, hospitais e operadoras de plano de saúde. A partir da realização de um estudo qualitativo, com foco em pesquisa exploratória e bibliográfica, este trabalho objetiva especificamente apresentar nuances e especificidades da responsabilidade civil decorrente da atividade médica contratual, com esteio no entendimento doutrinário e jurisprudencial brasileiro.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Atividade médica contratual. Obrigações de resultado. Erro médico. Hospitais. Operadoras de plano de saúde.
1. INTRODUÇÃO
A palavra responsabilidade tem sua origem na raiz latina spondeo, pela qual se vinculava o devedor, solenemente, nos contratos verbais do direito romano. Dentre as várias acepções existentes, algumas fundadas na doutrina do livre arbítrio, outras em motivações psicológicas, pode ser destacada a noção de responsabilidade como aspecto da realidade social. Assim, toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade, destinada a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano.
O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal consequência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar o dano. Quem pratica um ato, ou incorre em uma omissão de que resulte dano, deve suportar as consequências do seu procedimento, tratando-se de uma regra elementar de equilíbrio social, na qual se resume, mais uma vez, a questão da responsabilidade.
Um dos campos mais importantes e atuais desta temática reside na aferição da responsabilidade civil referente ao exercício de uma atividade profissional. Nesta seara, pulula especificamente a problemática da responsabilidade civil dos médicos e suas variadas nuances, como as obrigações de resultado, o erro médico, a obrigação de hospitais, clínicas e empresas de plano de saúde, dentre outras, tema cada vez mais recorrente nas lides levadas aos tribunais brasileiros.
É importante ressaltar, de antemão, que o presente estudo tem como cenário a responsabilidade civil médica contratual, ou seja, aquela que envolve uma relação regida por normas contratuais celebradas entre o cliente/paciente e o profissional liberal. Neste tipo, vítima e autor do dano se aproximam anteriormente, vinculando-se para o cumprimento de uma ou mais prestações, sendo a culpa contratual a violação de um dever de adimplir, que constitui justamente o objeto do negócio jurídico. O destaque é pertinente, pois a responsabilidade advinda da prestação pública de serviços médicos é caracterizada como extracontratual ou aquiliana, caindo nos casos gerais de responsabilização objetiva do Estado, de acordo com o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, na qual o ente público responde objetivamente, ou seja, independentemente de culpa, tendo direito de regresso contra o profissional quando este agir com culpa ou dolo, âmbito em que prevalece a teoria do risco administrativo.
A tendência de não deixar irressarcida a vítima de atos ilícitos provenientes de atos médicos sobrecarrega os pretórios pátrios de ações de indenizações das mais variadas espécies. Deste modo, o tema é de grande atualidade e de enorme e especial importância para o estudioso e para o profissional do direito, por se dirigir à restauração do status quo ante desfeito e à redistribuição da riqueza em conformidade com os ditames da justiça social, permitindo entender os posicionamentos judiciais dos tribunais brasileiros sobre determinados casos e a jurisprudência consolidada, bem como as normas legais sobre o assunto.
Destarte, livre da pretensão de esgotar o tema, este trabalho tem como objetivo estudar a responsabilidade civil contratual advinda do cometimento de atos ilícitos por parte de médicos, enquanto profissionais liberais, em prejuízo dos clientes/pacientes, sem descartar a responsabilidade civil objetiva dos estabelecimentos médicos.
Os seus objetivos específicos são: analisar o instituto da responsabilidade civil, partindo-se de seus aspectos gerais, como conceito, natureza jurídica, evolução histórica e espécies; averiguar os elementos ensejadores do dever de reparar e suas causas excludentes, permitindo uma visão global do assunto; identificar a responsabilidade civil profissional; e apresentar as nuances e especificidades da responsabilidade civil dos médicos, os modos de verificação e reparação e o entendimento doutrinário e jurisprudencial brasileiro sobre o tema proposto. Para concretização deste trabalho, realizou-se um estudo de natureza qualitativa, por meio da utilização de pesquisa exploratória e bibliográfica. Ao contrário da pesquisa quantitativa, a qualitativa não obriga à formulação de hipóteses, nem exige dados numéricos para enumerar ou mensurar o objeto em análise. Os resultados de estudos dessa natureza podem fundamentar hipóteses de trabalhos futuros. Tais pesquisas partem de questões ou focos de interesse mais amplos, que se definem à medida que o estudo se realiza.
Assim, o primeiro passo da pesquisa exploratória é o exame da literatura. Nesse caso, recorreu-se às seguintes fontes bibliográficas: legislação, doutrina, jurisprudência, princípios e artigos publicados em revistas científicas impressas ou digitais. Com a pesquisa bibliográfica, que abrange a análise da literatura selecionada, pode-se estruturar o presente artigo em sete partes. Além desta introdução, inicialmente aborda-se a noção geral de responsabilidade civil através de breve estudo histórico, conceito, espécies e natureza jurídica. Em seguida, apresenta-se um tópico referente aos elementos da responsabilidade civil (conduta, nexo, dano, dolo ou culpa), análise dedicada à melhor compreensão dos eventos específicos gerados por atos ilícitos advindos de condutas médicas.
A abordagem sobre as causas excludentes do dever de indenizar compõe a quarta parte deste trabalho, servindo como limite para evitar a responsabilização geral e conferir justiça ao instituto, averiguando-se condutas e situações nas quais o profissional médico fica isento da obrigação. A responsabilidade profissional e a sua espécie médica, onde se encontra o cerne deste estudo, consubstanciam a quinta e a sexta parte, respectivamente. Ao final, encontram-se as considerações finais.
2. NOÇÕES GERAIS DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Antes de adentrar ao cerne do tema proposto, a responsabilidade civil advinda dos atos médicos, e para melhor compreendê-lo, é necessário entender o que venha a ser o instituto da responsabilidade civil, partindo-se de uma visão geral do assunto para chegar às suas particularidades. Assim, é de bom alvitre investigar o seu conceito, a sua natureza, as suas espécies e o seu passado. Previamente, porém, é preciso ter noções sobre o conceito jurídico de responsabilidade.
Dias (1997, p. 1) observa que “toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade”. De fato, toda atuação do homem invade ou, ao menos, tangencia, o campo deste instituto. Originada do vocábulo latim spondeo, responsabilidade significa que alguém deve assumir as consequências jurídicas de suas ações. A acepção que se faz está ligada ao surgimento de uma obrigação derivada, de um dever jurídico sucessivo, em função da ocorrência de um fato jurídico lato sensu. O respaldo de tal obrigação está no princípio fundamental da proibição de ofender. Gonçalves (2010) distingue a responsabilidade jurídica da responsabilidade moral. Segundo o autor, a responsabilidade pode resultar da violação tanto de normas morais como jurídicas, separada ou concomitantemente, dependendo do fato que configura a infração, que pode ser proibido pela lei moral ou pelo direito. A responsabilidade jurídica só existe quando há prejuízo e quando a norma jurídica é violada, sendo o autor do dano obrigado a repará-lo. A responsabilidade moral, por sua vez, reside no campo da consciência individual, não havendo sujeição jurídica do autor do dano a qualquer obrigação.
Outra distinção importante a ser feita ocorre entre obrigação e responsabilidade. Aquela é o vínculo jurídico que confere ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação, sendo uma relação de natureza pessoal, devendo ser adimplida livre e espontaneamente. Quando isto não acontece, surge a responsabilidade, caracterizada como a consequência jurídica patrimonial do descumprimento da obrigação. Inobstante a correlação, uma pode existir sem a outra, como no caso de dívidas prescritas e de jogo, onde há obrigação sem responsabilidade, pois o devedor não pode ser compelido a cumpri-la, e do fiador, onde há responsabilidade sem obrigação.
Sobre a diferença apontada leciona Cavalieri Filho (2000, p. 20):
Obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro. Se alguém se compromete a prestar serviços profissionais a outrem, assume uma obrigação, um dever jurídico originário. Se não cumprir a obrigação (deixar de prestar os serviços), violará o dever jurídico originário, surgindo daí a responsabilidade, o dever de compor o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação. Em síntese, em toda obrigação há um dever jurídico originário, enquanto na responsabilidade há um dever jurídico sucessivo. E, sendo a responsabilidade uma espécie de sombra da obrigação (a imagem é de Larenz), sempre que quisermos saber quem é o responsável, teremos de observar a quem a lei imputou a obrigação ou dever originário.
A partir destas premissas é possível afirmar que a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente, legal ou contratual, devendo subordinar-se às consequências de seus atos. Trazendo, portanto, este conceito para o âmbito do Direito Privado, pode-se dizer que a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando o infrator ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor o status quo ante, ou seja, a uma sanção.
Segundo Gonçalves (2010), cabe indagar se esta sanção que o ordenamento jurídico aplica como resposta destina-se a castigar o autor do evento danoso ou ressarcir a vítima do injusto. O autor afirma que durante séculos entendeu-se que não podia haver responsabilidade sem um ato voluntário e culpável ou seja, não podia haver responsabilização sem culpa, porém esse enfoque encontra-se hoje superado, em face das necessidades decorrentes dos novos tempos, que exigem respostas mais eficientes e condizentes com o senso de justiça e com a segurança das pessoas. Assim, em regra, todo dano deve ser indenizado, buscando-se o fundamento da responsabilidade civil também no fato da coisa e no exercício de atividades perigosas. Passou-se da preocupação em julgar a conduta do agente e sua culpa, à preocupação em julgar o dano em si mesmo.
Em relação a esta noção de culpa, ainda de acordo com o autor citado, o Código Civil francês, em que se inspirou o legislador pátrio na elaboração dos artigos 159 e 1518 do diploma civil de 1916, correspondentes, respectivamente, aos artigos 186 e 942 do novo digesto, alude à faute (falta ou erro) como fundamento do dever de reparar o dano. Este termo gerou muita discussão entre os franceses sobre a dificuldade em definir a culpa. O legislador brasileiro, contornando a polêmica, valeu-se da noção de ato ilícito como causa da responsabilização civil: ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência.
Sobre o assunto ensina Dias (1997, p. 375):
Parece-nos sem sentido, em nosso direito, qualquer discussão semelhante à que lavrou ardente na França, sobre se o texto indicado exigia ou não a culpa para o estabelecimento da responsabilidade. E isto se deve a que o nosso legislador, em lugar de usar de palavra vaga, como é, em francês, a expressão faute, foi suficientemente preciso ao subordinar o dever de reparar a ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência. [...] Outra controvérsia evitada pelo Código, já o dissemos, é a que se trava em outros países a respeito da clássica distinção entre delitos e quase delitos, cuja utilidade, tanto como a da gradação da culpa (lata, leve e levíssima), é sumamente discutível. O Código engloba o objeto dessas classificações obsoletas na denominação genérica dos atos ilícitos porque, à lei civil, não interessa de maneira nenhuma essa casuística.
Visto que a responsabilidade civil decorre, em regra, da prática de um ato ilícito, gerando desequilíbrio social, tem-se que a consequência lógico-normativa de qualquer ato desse tipo é uma sanção, podendo esta ser definida como o efeito jurídico produzido pelo descumprimento de um dever. Sendo assim, segundo Gagliano e Pamplona Filho (2008), a natureza jurídica da responsabilidade somente pode ser sancionadora, independentemente de se materializar como pena, indenização ou compensação pecuniária.
Neste sentido, Bittar (1993, p. 16):
Havendo dano, produzido injustamente na esfera alheia, surge a necessidade de reparação, como imposição natural da vida em sociedade e, exatamente, para a sua própria existência e o desenvolvimento normal das potencialidades de cada ente personalizado. É que investidas ilícitas ou antijurídicas no circuito de bens ou de valores alheios perturbam o fluxo tranquilo das relações sociais, exigindo, em contraponto, as reações que o Direito engendra e formula para a restauração do equilíbrio rompido. [...] Na satisfação dos interesses lesados é que, em última análise, reside a linha diretiva da teoria em questão, impulsionada, ab origine, por forte colaboração humanista, tendente a propiciar ao lesado a restauração do patrimônio ou a compensação pelos sofrimentos experimentados, ou ambos, conforme a hipótese, cumprindo-se assim os objetivos próprios.
Na vereda de tais idéias, é possível visualizar que, ao gerar o dano, o ofensor receberá a sanção correspondente consistente na repreensão social, tantas vezes quantas forem suas ações ilícitas, até conscientizar-se da obrigação em respeitar os direitos das pessoas. Por seu turno, a repreensão contida na norma legal tem como pressuposto conduzir pessoas a uma compreensão dos fundamentos que regem o equilíbrio social. Por isso, a lei possui um sentido tríplice: reparar (compensação do dano à vítima), punir e educar (desmotivação social da conduta lesiva). Na primeira função, encontra-se o objetivo básico e finalidade da reparação civil: retornar as coisas ao status quo ante, ou, não sendo possível, estabelecer um quantum indenizatório. Na segunda, observa-se que a prestação imposta ao ofensor gera um efeito punitivo pela ausência de cautela na prática de seus atos, persuadindo-o a não mais lesionar. E essa persuasão não se limita à figura do ofensor, acabando por incidir na terceira função, de cunho socioeducativo, tornando público que condutas semelhantes não serão toleradas.
2.1. Momentos Históricos
Não se pode prescindir, no presente trabalho, de uma análise histórica, embora breve, sobre a responsabilidade civil, de forma a permitir o conhecimento de suas raízes e o seu desenvolvimento ao longo dos tempos. A importância desta abordagem reside em desvendar o berço em que nasceu instituto estudado e a sua estruturação, tendo em vista que as suas características atuais são resultado do somatório das experiências passadas.
Nas primeiras formas organizadas de sociedade, a origem da responsabilidade civil está relacionada à concepção de vingança privada. Desta visão parte o Direito Romano para, regulando-a, intervir na sociedade de modo a permiti-la ou excluí-la quando injustificada. Trata-se da Pena de Talião, da qual se encontram traços na Lei das XII Tábuas. Contudo, mesmo nesta lei, é possível visualizar perspectivas da evolução do instituto, ao conceber a possibilidade de composição entre a vítima e o ofensor, evitando a aplicação do “olho por olho, dente por dente”, fixando-se, em seu lugar, uma importância em dinheiro ou bens. Segundo Lima (1999), este período sucede o da composição tarifada, imposto pela Lei das XII Tábuas, que fixava, em casos concretos, o valor da pena a ser paga pelo ofensor, como uma reação à vingança privada.
Um marco na evolução histórica do instituto se dá com a edição da Lex Aquilia. Este diploma regulava o damnum injuri datum, consistente na destruição ou deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido coisa corpórea ou incorpórea, sem justificativa legal. Embora sua finalidade original fosse limitada ao proprietário de coisa lesada, a influência da jurisprudência e as extensões concedidas pelo pretor fizeram com que se construísse uma efetiva doutrina romana da responsabilidade extracontratual.
Lima (1999, p. 26-27) sintetiza essa visão da responsabilidade civil no Direito da Antiguidade:
Partimos, como diz Ihering, do período em que o sentimento de paixão predomina no direito; a reação violenta perde de vista a culpabilidade, para alcançar tão-somente a satisfação do dano e infligir um castigo ao autor do ato lesivo. Pena e reparação se confundem; responsabilidade penal e civil não se distinguem. A evolução operou-se, consequentemente, no sentido de se introduzir o elemento subjetivo da culpa e diferençar a responsabilidade civil da penal. E muito embora não tivesse conseguido o direito romano libertar-se inteiramente da ideia da pena, no fixar a responsabilidade aquiliana, a verdade é que a ideia de delito privado, engendrando uma ação penal, viu o domínio da sua aplicação diminuir, à vista da admissão, cada vez mais crescente, de obrigações delituais, criando uma ação mista ou simplesmente reipersecutória.
Esta inserção da culpa como elemento básico da responsabilidade civil aquiliana foi incorporada, ainda, no Código Civil de Napoleão. Porém, tal teoria não foi suficiente para satisfazer todas as necessidades da vida em comum, na imensa gama de casos concretos existentes e, muitas vezes, pela impossibilidade de comprovação do elemento anímico. Assim, começou-se a vislumbrar novas soluções, com a ampliação do conceito de culpa e até mesmo com a responsabilização prescindindo de sua existência.
Gonçalves (2010) observa que, no direito francês, estabeleceu-se um princípio geral da responsabilidade civil, por abandono da enumeração casuística do direito romano. Generalizava-se, portanto, o princípio aquiliano, consignando que a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar. No direito português, as Ordenações do Reino, que vigoraram no Brasil colonial, confundiam reparação, pena e multa. Somente com o Código Civil de 1966 fez-se a adaptação aos modernos rumos da responsabilidade civil.
Ainda segundo o autor, no Brasil imperial a reparação era condicionada à condenação criminal. Posteriormente, foi adotado o princípio da independência da jurisdição civil e da criminal. O Código Civil de 1916 filiou-se à teoria subjetiva, que exige prova de culpa ou de dolo causador do dano, presumindo a culpa do lesante em pouquíssimos casos. Nos últimos tempos ganhou terreno a teoria do risco, que, sem substituir a teoria da culpa, solucionou diversos casos impossíveis de comprovação do elemento subjetivo, encarando-se a responsabilidade sob o seu aspecto objetivo. Nesta teoria, o exercício de atividade perigosa é fundamento para a responsabilidade civil. Assim é que o Código Civil Brasileiro de 2002 mantém o princípio da responsabilidade com base na culpa, mas estabelece a possibilidade de imputação independentemente desta nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos das outras pessoas.
2.2. Espécies de Responsabilidade Civil
Para melhor compreensão do instituto abordado, é de bom alvitre conhecer as diversas faces que ele assume, ou seja, as suas peculiaridades dogmáticas, os modos como se apresenta, mediante a análise de suas espécies. Antes, porém, de classificar os tipos de responsabilidade civil, é importante distinguir entre esta e a responsabilidade penal. Discorrendo sobre esta diferenciação, ensina Dias (1997, p. 8):
Para efeito de punição ou da reparação, isto é, para aplicar uma ou outra forma de restauração da ordem social é que se distingue: a sociedade toma à sua conta aquilo que a atinge diretamente, deixando ao particular a ação para restabelecer-se, à custa do ofensor, no statu quo anterior à ofensa. Deixa, não porque se não impressione com ele, mas porque o Estado ainda mantém um regime político que explica a sua não intervenção. Restabelecida a vítima na situação anterior, está desfeito o desequilíbrio experimentado. [...] Assim, certos fatos põem em ação somente o mecanismo recuperatório da responsabilidade civil; outros movimentam tão somente o sistema repressivo ou preventivo da responsabilidade penal; outros, enfim, acarretam, a um tempo, a responsabilidade civil e a penal, pelo fato de apresentarem, em relação a ambos os campos, incidência equivalente, conforme os diferentes critérios sob que entram em função os órgãos encarregados de fazer valer a norma respectiva.
A partir destas premissas é possível afirmar que, no caso da responsabilidade penal, o agente infringe uma norma de direito público, sendo da sociedade o interesse lesado. Na civil, o interesse diretamente lesado é o privado, podendo o prejudicado pleitear ou não a reparação. Ainda, enquanto a penal é pessoal, intransferível, respondendo o agente com a privação de sua liberdade, a civil é patrimonial, respondendo pela reparação os bens do autor do dano.
Passando-se, agora, às espécies da responsabilidade civil, primeira importante diferenciação ocorre entre a responsabilidade contratual e a extracontratual. Aquela é derivada, por óbvio, de um contrato, de uma relação jurídica negocial. Quando não oriunda de um vínculo prévio, a responsabilidade é extracontratual ou aquiliana, obrigando a indenizar todo aquele que causa dano a outrem.
Na responsabilidade aquiliana, o agente infringe um dever legal, não havendo nenhum vínculo jurídico preexistente entre este e a vítima, enquanto que, na contratual, descumpre o avençado, tornando-se inadimplente. Assim, o Código Civil Brasileiro de 2002 distinguiu as duas espécies, disciplinando genericamente a primeira nos artigos 186 a 188 e 927 a 954, e a segunda nos artigos 389 e seguintes e 395 e seguintes.
Além das hipóteses previstas no diploma mencionado sobre a responsabilidade pelas perdas e danos por inadimplemento e pelos prejuízos que eventual mora der causa, a contratual abrange também o inadimplemento ou mora relativos a qualquer obrigação, ainda que proveniente de um negócio unilateral (testamento, mandato, promessa de recompensa) ou da lei (obrigação de prestar alimentos). E a aquiliana compreende, por sua vez, a violação dos deveres gerais de abstenção ou omissão.
Críticas a esta diferenciação existem e sobre elas ensina Gonçalves (2010, p. 45):
Há quem critique essa dualidade de tratamento. São os adeptos da tese unitária ou monista, que entendem pouco importar os aspectos sob os quais se apresente a responsabilidade civil no cenário jurídico, pois uniformes são sés efeitos. De fato, basicamente as soluções são idênticas para os dois aspectos. Tanto em um como em outro caso, o que se requer, em essência, para a configuração da responsabilidade são estas três condições: o dano, o ato ilícito e a causalidade, isto é, o nexo de causa e efeito entre os primeiros elementos. Esta convicção é, hoje, dominante na doutrina. Nos códigos de diversos países, inclusive no Brasil, tem sido, contudo, acolhida a tese dualista ou clássica, embora largamente combatida.
Apesar das objeções, o autor mencionado ressalta que há aspectos privativos de ambos os tipos que exigem regulamentação própria. É o caso típico da exceção de contrato não cumprido, da condição resolutiva tácita, as omissões e os casos de responsabilidade pelo fato de outrem. Dessa maneira, aponta Gonçalves (2010) as diferenciações mais comumente apontadas entre ambas as espécies.
A primeira diz respeito ao ônus da prova. Se a responsabilidade é contratual, o credor somente está obrigado a comprovar que a prestação foi descumprida e o devedor apenas não será condenado se provar a ocorrência de alguma excludente. No entanto, se a responsabilidade é extracontratual, o lesado tem a obrigação de demonstrar que o evento ocorreu por culpa do agente, prova que encontra maior dificuldade de produção que aquela da responsabilidade contratual.
Outro elemento de distinção se relaciona com a capacidade do agente causador do dano. No campo contratual, a convenção exige que as partes sejam plenamente capazes ao tempo de sua celebração, sob pena de nulidade e não produzir efeitos indenizatórios, o que limita a responsabilidade. Já no campo aquiliano, o ato do incapaz pode gerar o dever de reparação de seus responsáveis, como no caso da obrigação derivada de um delito, sendo mais abrangente a possibilidade de responsabilização.
As demais espécies de responsabilidade civil se contrapõem em subjetiva e objetiva. Aquela é decorrente de dano causado em função de ato doloso ou culposo, caracterizado por negligência ou imprudência. Por se caracterizar em fato constitutivo do direito à pretensão reparatória, caberá ao autor, sempre, o ônus da prova de tal culpa do réu. Todavia, há situações em que o ordenamento jurídico atribui a responsabilidade a alguém por dano que não foi diretamente causado por ele, mas sim por um terceiro com quem mantém algum tipo de relação jurídica, caracterizando-se como uma responsabilidade civil indireta, em que o elemento culpa não é desprezado, mas sim presumido, em função do dever de vigilância a que está obrigado o agente.
Entretanto, conforme ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2008), há hipóteses em que sequer é necessária a configuração da culpa, sendo esta desprezada, tratando-se, assim, da responsabilidade civil objetiva. Nesta, o dolo ou a culpa são irrelevantes juridicamente, somente sendo preciso a existência do elo de causalidade entre o dano e a conduta do agente para que surja o dever de indenizar, fundado imediatamente no risco da atividade exercida.