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Relendo o Documento n° 319 do Banco Mundial sobre o Judiciário após quase 3 décadas

Agenda 12/07/2023 às 18:10

Muitas das recomendações feitas pelo Banco Mundial ao Judiciário brasileiro foram incorporadas nessas quase três décadas, embora outras não tenham sido.

Reler e analisar o Documento n° 319 do Banco Mundial sobre o Setor Judiciário na América Latina e no Caribe, em que se defendeu a reforma do Judiciário nesta região, significa nos depararmos com uma perspectiva da década de 1990 (o documento é de 1996), auge do Neoliberalismo, acerca das reformas propostas. Qual a relevância de tal releitura e análise, portanto, após quase 3 décadas?

A relevância existe, porém, pois as mesmas críticas presentes no documento - assim como parte não implementada de suas propostas - seguem circulando no imaginário político-social, quando se reitera que, quase 30 anos após esta publicação, o Judiciário ainda é considerado, nas palavras do documento, incapaz de assegurar a resolução de conflitos de forma previsível e eficaz, garantindo assim os direitos individuais e de propriedade, sem satisfazer as demandas do setor privado e da população em geral, especialmente as de baixa renda.

Ao relê-lo, contudo, percebe-se que o documento possuía forte viés economicista, defendendo um processo de redefinição do Estado e suas relações com a sociedade, alegando que o desenvolvimento econômico não poderia continuar sem um efetivo reforço, definição e interpretação dos direitos e garantias sobre a propriedade, no centro da preocupação.

Foi este desenvolvimento do setor privado o que o documento defendeu, criticando o Poder Judiciário, dizendo que o tempo de tramitação de processos era muito excessivo, e que o Judiciário deveria passar por uma reforma, nos termos do que o grande capital desejava.

Segundo o documento, os juízes usavam até 70% de seu tempo com questões administrativas e tinham pouco treinamento antes de assumir suas responsabilidades administrativas ou judicantes.

Na introdução e nos pontos “Os objetivos da Reforma do Judiciário” e “Reforma do Judiciário na América Latina e no Caribe”, fica explícito que a preocupação se dava com uma reforma econômica que requereria "um bom funcionamento do judiciário” (pág. 18), pois, segundo o documento, com a emergência da abertura dos mercados aumentava a necessidade de um sistema jurídico. Dizia o documento que

Com a transição de uma economia familiar - que não se baseava em leis e mecanismos formais para resolução de conflitos - para um aumento nas transações entre atores desconhecidos cria-se a necessidade de maneiras de resolução de conflitos de modo formal. As novas relações comerciais demandam decisões imparciais com a maior participação de instituições formais. Todavia, o atual sistema jurídico é incapaz de satisfazer esta demanda, forçando, consequentemente, as partes a continuar dependendo de mecanismos informais, relações familiares ou laços pessoais para desenvolver os negócios. Algumas vezes isto desestimula as transações comerciais com atores desconhecidos possivelmente mais eficientes gerando uma distribuição ineficiente de recursos. Esta situação adiciona custos e riscos as transações comerciais e assim reduz o tamanho dos mercados, e consequentemente, a competitividade do mercado. (pág. 18)

Vemos a terminologia usada: relações comerciais, mercados, competitividade, ineficiência de recursos, etc. Esta era a preocupação e não a PROMOÇÃO DA JUSTIÇA, menos ainda da JUSTIÇA SOCIAL com diminuição das desigualdades sociais. Este é o ponto que deve merecer nossa reflexão diante deste tipo de crítica alicerçada em preocupações do mercado.

Na defesa de relações comerciais, mercados, competitividade, eficiência de recursos, o que o Banco Mundial queria era um JUDICIÁRIO IDEAL, que aplicasse e interpretasse as leis de forma previsível, mecânica, “eficiente”,  sem admitir muitos recursos. 

O Banco Mundial queria um Judiciário que tivesse amarras na legislação, alegando que a população não confiava no Judiciário devido à morosidade, mas sem tratar da importância de mais CONCURSOS para os jurisdicionados serem melhor atendidos, com o tempo excessivo para a resolução de um processo diminuindo. O documento, não à toa, citava uma preocupação com os danos aos EMPRESÁRIOS.

Seguindo a leitura desse documento que buscava enquadrar o Judiciário nos ditames econômicos do capitalismo financeiro internacional, nas páginas em que se voltava para a independência judicial, a nomeação e sistema de avaliação, o sistema disciplinar e suas recomendações a respeito, vemos mais um apanhado de uma lógica economicista neoliberal.

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Inicialmente, o documento citava que existiam tipos de “independência” (substantiva, decisória, pessoal, coletiva e interna), reiterando que sustentava que a falta de independência do Judiciário na América Latina poderia ser necessária para o desenvolvimento econômico da região (pág. 21), dentro da tensão entre democracia e reforma econômica, contra políticas sociais. O documento defendia um Executivo forte que atuasse de modo “eficiente” com maior poder de editar decretos. E dizia que o sistema jurídico seria incapaz de obstar o abuso de poder por parte do Executivo com um controle judicial efetivo ou fiscalização legislativa.

Sobre a nomeação, o documento dizia que o cargo de juiz não deveria oferecer "incentivos indevidos" que reforçassem "interesses pessoais”, propunha “salários suficientes” e um sistema de avaliação e monitoramento da atividade judicial, tratando como mercado os serviços judiciais.

Sobre o sistema disciplinar, era dito que um sistema disciplinar efetivo seria essencial na manutenção de altos padrões de qualidade do Judiciário. Já no que diz respeito à administração do Judiciário, administração das contas, orçamento, administração dos processos e recomendações, dizia que uma revisão do número de servidores deveria ser realizada, com  gerenciamento de processo, sistema de promoções baseado em avaliações e exames técnico-jurídicos para estimular os magistrados a delegar as responsabilidades administrativas.

Na lógica bancária, deveriam ser desenvolvidos padrões de desempenho para o Judiciário, com redução da morosidade e sistemas em rede. 

As recomendações apostavam na tecnologia, sem uma discussão sobre o problema do uso de robôs pensando nas garantias fundamentais e em construções algorítmicas ainda pouco conhecidas, com datasets (bancos de dados) viciados; opacidade de atuação e machine learning e deep learning levando a discriminações, etc

Segundo o documento, o importante seria o treinamento com a educação (!) do quadro de juízes e escrivães e um aprimoramento da mentalidade (!) do quadro de pessoal, especialmente nas Cortes de 1ª Instância. 

O Banco Mundial fazia lembrar Tom Zé em seu disco “Com defeito de fabricação", em que o compositor baiano critserva a visão neoliberal de que o ser humano seria o “defeito” do sistema. 

Sobre os Códigos de Processo, no documento, de 1996, de pouco depois do Consenso de Washington, e de 20 anos antes de nosso CPC de 2015, era dito que os programas de reforma do Judiciário deveriam dar ênfase em garantir e implementar as normas e procedimentos existentes, mas se identificando quais procedimentos causavam os maiores atrasos, possibilitando sua revisão durante o processo de reforma.

A preocupação do documento era que os procedimentos orais e imediatos, para minimizar o tempo despendido nos processos, viessem a ser incorporados nos Códigos de Processo da região, ao atropelo da ampla defesa e do contraditório. 

Isso se evidenciava ao dizerem que procedimentos orais vinham permitindo julgamentos públicos, expondo mais os juízes, que segundo o documento não teriam treinamento suficiente para instituição dos procedimentos orais. 

O Brasil foi citado como exemplo de excesso de formalidades processuais e uma administração da justiça ineficiente devido a grande número de recursos. Por isso, o documento recomenda a imposição de pressupostos recursais estritos como uma opção.

Ademais, o documento propunha a revisão dos códigos de processo para basicamente se diminuir “atrasos e acúmulos processuais” (pág. 37), pela “eficiência” e não pela promoção de Justiça. e mecanismos alternativos de resolução de conflitos, dentro da agenda neoliberal.

No tocante ao acesso à justiça e aos Mecanismos Alternativos de Resolução de Conflitos (MARC), o documento técnico nº 319 do Banco Mundial sobre a reforma do Judiciário na América Latina e no Caribe dizia que um dos maiores problemas da reforma do Judiciário correspondia ao acesso da população à justiça.

Para tanto, o documento citava a percepção pública do Judiciário como fator determinante de busca dos serviços judiciais. 

As Cortes, segundo o documento, prestavam um serviço público que deveria ser estruturado para que todos, independente da renda, pudessem acessá-las, levando em consideração as fontes de recursos disponíveis (pág. 38), mas tendo o acesso à Justiça que ser medido segundo vetores como tempo de julgamento, custos direitos e indiretos das partes com a litigância (despesas com requerimentos, custas processuais, cauções, honorários advocatícios, perdas salariais com o tempo despendido, etc.), acesso físico às Cortes e a capacidade dos potenciais usuários, de ter acesso à informação e possibilidade de acompanhamento das fases processuais.

Dito isso, o documento dizia que os sistemas jurídicos poderiam apresentar barreiras psicológicas, informacionais e físicas aos indivíduos que necessitassem desses serviços. 

Neste sentido, para se superar ou diminuir determinadas barreiras econômicas à justiça, incluindo a redução dos custos da litigância, o documento propunha programas de assistência jurídica e a criação de formas alternativas de resolução de conflitos, supostamente “menos onerosas”, defendendo os MARC.

Na sequência da defesa dos MARC feita no documento, o documento abordava custos de litigância, assessoria jurídica, juizados de Pequenas Causas, barreiras de acesso à justiça, questões de gênero e traz recomendações. 

Segundo o documento, os gastos incidentais criavam barreiras para todos os setores da população, mas  especialmente limitavam o acesso à justiça para as populações de baixa renda, apontando que os gastos incidentais da litigância incluiam honorários advocatícios e taxas notariais, morosidade do Judiciário (sempre o Judiciário apontado como o culpado e não a falta de servidores do Judiciário e a desigualdade social que leva a uma enormidade de litígios) e custas processuais. 

A própria exigência de um advogado para representar as partes, segundo o documento, obstaria o acesso à justiça.

Assim, o documento defendia programas de assistência jurídica e defensoria pública, juizados especiais para causas de até determinado valor, ações de classe e ações coletivas e materiais informativos para se superar barreiras, além de aumento do horário de atendimento, presença de tradutores e acessibilidade para deficientes. 

As questões de gênero trazidas no pertinente eram bastante pertinentes e o documento apontava a importância de uma reforma considerar a particularidade das mulheres no sistema de Justiça, pelo alto nível de pobreza na América Latina e Caribe sofrido pelas mulheres, carência educacional, etc. As recomendações, porém, giravam basicamente em torno da adoção de MARC. 

Chegando ao fim, o documento discutia o ensino jurídico e o treinamento, fazendo uma crítica interessante do ensino jurídico e da necessidade de conhecimentos jurídicos para a população em geral.

Segundo o documento, a qualidade dos cursos de Direito vinha se deteriorando com o passar dos anos, motivo pelo qual o documento se arvorava em defender uma revisão curricular e requisitos mais criteriosos para admissão e graduação.

Um ponto merece destaque, com o qual concordamos: faltavam métodos pedagógicos mais condizentes com a realidade da prática Jurídica e com as reflexões do campo educacional, que não pareciam ser de conhecimento dos professores dos cursos de Direito. 

O documento criticava, no entanto, mais a falta de disciplinas que tratassem de propriedade intelectual, economia, direito ambiental, transações comerciais seguras, finanças e contabilidade. 

A nosso ver, o válido da crítica seria a discussão sobre a metodologia de ensino concentrada predominantemente, porém, nos métodos tradicionais expositivos, que proporcionariam pouca oportunidade de interação professor-aluno, além de pouco treinamento prático e pouco estímulo à pesquisa.

Como último ponto do documento lido, discutia-se os conselhos profissionais de advogados, se trazia as últimas recomendações sobre este ponto e, finalmente, se abordava a implementação da reforma do Judiciário.

Primeiramente, sobre os conselhos profissionais de advogados, o documento propunha que estes regulassem a profissão, com requisitos necessários para o exercício profissional e um sistema disciplinar, devendo ser estimulados devido à sua importante função, embora se criticasse o fato de a prática da advocacia exigir, em geral, apenas diploma de graduação e associação ao conselho. Como recomendação sobre este ponto, sugeria-se basicamente que tais conselhos fossem atores ativos na busca de uma reforma do Judiciário.

Por fim, ao tratar da reforma do Judiciário em linhas gerais, o documento do Banco Mundial apresentava o próprio banco como um relativamente novo participante na reforma do Judiciário, voltado especialmente para América Latina e Caribe. 

Finalmente, o documento era encerrado dizendo o quanto a “economia de mercado demanda um sistema jurídico eficaz para governos e o setor privado, visando solver os conflitos e organizar as relações sociais. Ao passo que os mercados se tornam mais abertos e abrangentes, e as transações mais complexas as instituições jurídicas formais e imparciais são de fundamental importância” (pág. 61) demonstrando estar voltado para o desenvolvimento no setor privado, a eficiência e crescimento econômicos e uma reforma racional do Judiciário, “modernizando” o Estado, ou seja, o inserindo na lógica economicista do capitalismo internacional neoliberal. 

Hoje, relê-lo significa identificar que muitas das recomendações feitas foram incorporadas nessas quase três décadas, embora outras não tenham sido. Significa encontrarmos um retrato de uma época e de uma perspectiva econômica que decantou em transformações de instituições jurídicas. E significa, mesmo diante de todas as mudanças propostas e implementadas, ainda enfrentarmos muitos dos obstáculos citados para defender os benefícios de tais mudanças, sem que tenham sido superados, demonstrando que mais do que o conjunto de propostas feitas pelo Banco Mundial neste documento, seriam necessárias outras medidas para sua superação, provavelmente medidas que estivessem mais voltadas para soluções que encarassem a necessidade de ampliação do Judiciário e não para maior eficiência (naqueles termos) do Judiciário, em um ponto de vista marcadamente econômico.

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva Carvalho. Relendo o Documento n° 319 do Banco Mundial sobre o Judiciário após quase 3 décadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7315, 12 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105002. Acesso em: 21 nov. 2024.

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