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O quão realista seria a prisão de Putin

Agenda 22/07/2023 às 10:31

A aplicação de ações legais contra líderes políticos dependem da soberania e da vontade dos Estados.

1. Introdução

Em 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia dando início ao maior conflito armado em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O saldo até então é de dezenas de milhares de mortos e feridos, além de 8 milhões de refugiados ucranianos, que buscam proteção em outros países europeus1. As consequências da guerra são, também, econômicas e políticas, pois o conflito interfere na geopolítica, nos acordos diplomáticos e no comércio internacional2. A invasão desafiou a ordem mundial pós-guerra fria e levantou questões urgentes sobre a segurança e a soberania dos países, o que levou a uma resposta internacional à invasão, que incluiu uma combinação de condenação diplomática, sanções econômicas e apoio militar à Ucrânia, refletindo a gravidade com que a situação é vista3.

À medida que o conflito continua e as ações de líderes políticos são analisadas, a possibilidade de um líder como o presidente russo, Vladimir Putin, ser preso por suas ações na Ucrânia é uma questão complexa e sujeita a considerações legais e políticas. O Direito Internacional, através de tratados e convenções, estabelece que líderes podem ser responsabilizados por crimes de guerra e contra a humanidade. O Estatuto de Roma, por exemplo, criou o Tribunal Penal Internacional, que busca julgar indivíduos por esses tipos de crimes, independentemente de sua posição de liderança. No entanto, a aplicação dessas leis e ações legais contra líderes políticos envolvem diversos fatores, como a soberania dos Estados e a vontade política dos países em cooperar com tais processos4. Portanto, a possibilidade de um líder como Putin ser preso depende de vários elementos e é objeto de discussões internacionais sobre justiça e responsabilidade em face de conflitos violentos.


2. Contexto Histórico

As tensões entre a Rússia e a Ucrânia, que culminaram no conflito armado de 2022, têm suas raízes em uma série de eventos e disputas que se desenrolaram ao longo de vários anos. Em 2014, a anexação da Crimeia pela Rússia marcou um ponto de virada significativo nas relações entre os dois países5. Esta ação unilateral, amplamente condenada pela comunidade internacional, foi vista como uma violação flagrante da soberania ucraniana e do direito internacional. Paralelamente à crise da Crimeia, a situação no leste da Ucrânia também se deteriorou, com o início de uma rebelião em Donbass por parte de grupos separatistas apoiados pela Rússia. Este conflito prolongado, muitas vezes referido como a Guerra em Donbass, resultou em milhares de mortes e deslocou muitos mais6. Outro fator que contribuiu para a escalada das tensões foi a perspectiva da Ucrânia se juntar à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A possível entrada da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tem sido um ponto de tensão significativo nas relações entre a Rússia e o Ocidente. A OTAN, uma aliança militar intergovernamental entre 30 países da América do Norte e Europa, foi criada em 1949 como um sistema de defesa coletiva, onde um ataque a um membro é considerado um ataque a todos7. A perspectiva da Ucrânia se juntar a esta aliança foi vista pela Rússia como uma ameaça direta à sua segurança e influência na região. A Rússia se opôs firmemente à adesão da Ucrânia à OTAN, argumentando que isso colocaria uma aliança militar hostil diretamente em sua fronteira8. A Rússia vê a Ucrânia como parte de sua esfera de influência e teme que a adesão da Ucrânia à OTAN possa ser usada como uma plataforma para atividades hostis contra a Rússia. Além disso, a Rússia argumenta que a expansão da OTAN para o leste viola os acordos feitos no final da Guerra Fria, embora essas alegações sejam contestadas por muitos no Ocidente9.

A Rússia tem demonstrado persistentemente um desejo de manter a Ucrânia sob sua esfera de influência, buscando exercer controle sobre o país e estabelecer uma relação de dependência. Essa ambição da Rússia pode ser atribuída a várias razões estratégicas, políticas e econômicas10.

Em primeiro lugar, a Rússia vê a Ucrânia como parte integrante de sua esfera tradicional de segurança e influência geopolítica. Geograficamente, a Ucrânia faz fronteira com a Rússia e está localizada na região da Europa Oriental, que historicamente foi considerada uma área de grande importância estratégica para a Rússia. A manutenção de uma Ucrânia alinhada ou sob sua influência permite à Rússia manter uma posição favorável na região e garantir que seus interesses de segurança sejam protegidos. Além disso, a Ucrânia possui uma vantagem geográfica significativa em relação à Rússia: acesso a águas quentes e navegáveis11. Enquanto a Rússia tem uma extensa costa ártica com águas geladas, a Ucrânia possui acesso ao Mar Negro e ao Mar de Azov, que são cruciais para o comércio marítimo e a projeção de poder naval. O controle dessas rotas marítimas é de grande importância para a Rússia, tanto do ponto de vista econômico quanto militar12.

Ademais, a Ucrânia possui recursos naturais valiosos, como gás natural e carvão, que são essenciais para a economia russa13. A Rússia depende do fornecimento desses recursos da Ucrânia para atender às suas necessidades energéticas internas e para exportação. Manter a Ucrânia sob sua influência permite à Rússia garantir o acesso contínuo a esses recursos e exercer controle sobre sua produção e distribuição. Do ponto de vista político, a Rússia também busca manter a Ucrânia sob seu domínio para exercer influência sobre as decisões políticas do país14. A Ucrânia tem sido historicamente um país dividido entre influências russas e ocidentais, e a Rússia procura garantir que a Ucrânia permaneça alinhada com seus interesses políticos e estratégicos. A Rússia teme a perspectiva da Ucrânia se aproximar do Ocidente, aderindo a instituições como a União Europeia e a OTAN, pois isso poderia enfraquecer sua própria influência na região.

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3. A Guerra na Ucrânia e o Papel de Putin

O Presidente russo, Vladimir Putin, tem desempenhado um papel central na invasão russa à Ucrânia. Suas ações e motivações são complexas e multifacetadas, refletindo tanto a política interna da Rússia quanto as tensões geopolíticas mais amplas15. Isso porque Putin tem uma visão de mundo que vê a Rússia como uma grande potência global, e os países do leste europeu, em sua visão, são integrantes da esfera de influência da Rússia, assim como na antiga União Soviética. Diante disso, ele tem resistido firmemente aos esforços da Ucrânia para se alinhar mais estreitamente com o Ocidente. Logo, a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 foi vista por muitos como uma tentativa de Putin de limitar o arbítrio da Ucrânia de tomar decisões como um país independente16.

Além do mais, Putin tem usado a guerra como uma forma de consolidar seu poder interno, apresentando-se como um líder forte e decisivo. No entanto, as ações de Putin na Ucrânia também têm sido controversas e têm levantado questões significativas sobre a legalidade de suas ações sob o direito internacional17. Os ataques russos na Ucrânia têm tido um impacto significativo na população ucraniana, resultando em dezenas de milhares de mortos e feridos e milhões de refugiados. Os crimes de guerra cometidos na Ucrânia têm sido uma preocupação crescente para a comunidade internacional18.

Em 23 de junho de 2023, o chefe de um órgão de investigação da ONU afirmou que crimes de guerra, incluindo estupro, tortura e confinamento de crianças, foram cometidos em áreas da Ucrânia ocupadas pelos russos. A Comissão de Inquérito Independente sobre a Ucrânia, criada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em março de 2023, visitou 27 locais e entrevistou mais de 150 vítimas e testemunhas. Eles encontraram evidências de muitas execuções, incluindo corpos com as mãos amarradas, gargantas cortadas e tiros na cabeça. Além disso, os investigadores identificaram vítimas de violência sexual com idades entre quatro e 82 anos19.


4. A Possibilidade de Prisão de Putin

Diante dos fatos anteriormente apresentados, ocorre um questionamento grande por parte de cidadãos de diversos países a respeito da possibilidade de uma prisão de Putin. Essa questão levanta debates sobre a aplicação das normas relevantes do direito internacional e a busca por justiça diante das alegações de crimes de guerra e violações dos direitos humanos. É necessário abordar as normas relevantes que regem a responsabilização de líderes por crimes internacionais. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), por exemplo, estabelece a jurisdição do tribunal para julgar indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de agressão. No entanto, é importante ressaltar que a Rússia não é parte do Estatuto de Roma, o que torna a possibilidade de julgamento de Putin pelo TPI mais complexa20.

A jurisdição do TPI é complementar à jurisdição penal nacional, o que significa que o tribunal só pode exercer sua jurisdição se os tribunais nacionais forem incapazes ou não estiverem dispostos a julgar. Isso cria outra camada de complexidade, pois a Rússia, como muitos países, tem leis que protegem seus líderes de serem processados por atos realizados no exercício de suas funções21. No entanto, apesar dessas complexidades, existe uma possibilidade de Putin ser preso e julgado pelo TPI se ele visitar um país que é membro do tribunal. Os países que são partes do Estatuto de Roma têm a obrigação de cooperar com o TPI, o que inclui a execução de mandados de prisão emitidos pelo tribunal22. As normas aplicáveis a presente situação seriam:

· O artigo 3.º, comum às quatro Convenções de Genebra, proíbe a violência contra a vida e a pessoa, nomeadamente o homicídio de qualquer tipo, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura, a tomada de reféns e os atentados à dignidade pessoal, nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes.

· Com relação ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, o Artigo 5 estabelece que a jurisdição do Tribunal será limitada aos crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional como um todo, o que inclui o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. De forma semelhante, o Artigo 7 define crimes contra a humanidade como atos cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque. Ainda, o Artigo 8 define crimes de guerra com base se foram cometidos em um conflito armado internacional ou não internacional. Estes incluem graves violações das Convenções de Genebra e outras violações graves das leis e costumes aplicáveis a conflitos armados internacionais

Portanto, se Putin visitasse um desses países, ele poderia, em teoria, ser preso e entregue ao TPI para julgamento. No entanto, a prática é muitas vezes mais complicada do que a teoria. A execução de um mandado de prisão contra um líder em exercício seria um ato altamente politizado que poderia ter sérias repercussões diplomáticas. Ainda, muitos países têm leis que concedem imunidade a líderes estrangeiros em visita, o que poderia impedir a prisão de Putin.

Todavia, apesar de ser pouco provável que Putin seja preso devido a todo o contexto geopolítico internacional e por se tratar de um país que tem alto poder nuclear, podendo gerar uma guerra devastadora, existem alguns exemplos que lideres internacionais podem ser presos.

Slobodan Milošević, ex-presidente da Sérvia e da Iugoslávia, foi um dos principais atores nas guerras iugoslavas dos anos 1990, um período marcado por conflitos étnicos e violência em grande escala. Milošević foi acusado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII). As acusações incluíam a deportação de milhares de kosovares albaneses e o assassinato de milhares de civis. Milošević foi preso em 2001 e levado a julgamento, mas morreu na prisão antes que seu julgamento pudesse ser concluído23.

Radovan Karadžić, por outro lado, foi presidente da República Srpska durante a Guerra da Bósnia. Ele foi um dos principais responsáveis pelo Cerco de Sarajevo, que durou mais de três anos e resultou na morte de milhares de civis, e pelo Massacre de Srebrenica, onde milhares de homens e meninos bósnios muçulmanos foram mortos. Karadžić foi acusado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio pelo TPII. Após vários anos foragido, ele foi preso em 2008 e levado a julgamento. Em 2016, Karadžić foi condenado e está atualmente cumprindo uma sentença de prisão perpétua24. Estes casos demonstram que, apesar das complexidades e desafios associados ao julgamento de líderes por crimes internacionais, é possível responsabilizá-los por suas ações. No entanto, também destacam a necessidade de vontade política e cooperação internacional para garantir que esses processos sejam realizados de forma justa e eficaz.


5. Conclusão

Diante dos fatos e contextos apresentados, a possibilidade de prisão de Vladimir Putin por suas ações na Ucrânia é um assunto complexo e sujeito a múltiplos fatores legais, políticos e diplomáticos. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional estabelece a jurisdição para julgar indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de agressão. No entanto, a Rússia não é parte desse Estatuto, o que torna o processo de responsabilização de Putin mais desafiador. A aplicação das normas internacionais e a cooperação entre países para levar líderes políticos a julgamento por crimes internacionais são processos complexos e embora existam exemplos de líderes sendo presos e julgados por seus crimes, como Slobodan Milošević e Radovan Karadžić, cada caso é único e depende de circunstâncias específicas.

No caso de Putin, a situação é ainda mais delicada devido à sua posição como presidente da Rússia e ao poder nuclear do país. A prisão de um líder em exercício seria altamente politizada e poderia ter consequências significativas nas relações diplomáticas e geopolíticas. Portanto, embora a responsabilização de Putin por suas ações na Ucrânia seja desejada por muitos, é improvável que ocorra no curto prazo. A busca pela justiça e responsabilidade em face de crimes internacionais é um desafio contínuo que requer esforços conjuntos da comunidade internacional para garantir que as normas e tratados internacionais sejam respeitados e aplicados de maneira justa e eficaz.


REFERÊNCIAS

1 Um ano após invasão russa, insegurança dificulta intenções de retorno de ucranianos, diz ACNUR – UNHCR ACNUR Brasil

2 A guerra na Ucrânia e a nova ordem mundial | Ciência Hoje ( cienciahoje.org.br )

3 Sanções da UE contra a Rússia na sequência da invasão da Ucrânia ( europa.eu )

4 estatuto_roma_tpi.pdf ( ministeriopublico.pt )

5 Por que a invasão da Crimeia em 2014 é relevante agora - BBC News Brasil

6 Entenda a importância da região de Donbass para a Rússia ( poder360.com.br )

7 Entenda o que é a Otan e o seu papel na origem da crise entre Rússia e Ucrânia ( cnnbrasil.com.br )

8 Análise: Por que o apelo da Ucrânia para ingressar na Otan é um dilema profundo? ( cnnbrasil.com.br )

9 Para Putin, Ocidente descumpriu promessa de Otan não expandir, diz especialista ( cnnbrasil.com.br )

10 Por que a Rússia invadiu a Ucrânia? - Mundo Educação ( uol.com.br )

11 Entendendo o conflito entre Rússia e Ucrânia - Conjur

12 O Mar Negro, um teatro de Guerra e importância geopolítica – Observador

13 4 produtos exportados por Rússia e Ucrânia que devem ficar mais caros no mundo - BBC News Brasil

14 Um ano depois de fugir da Ucrânia, presidente deposto fala em retorno - notícias em Mundo ( globo.com )

15 Rússia invade a Ucrânia: veja quem condena Putin, quem está do lado dele e quem está 'em cima do muro' | Mundo | G1 ( globo.com )

16 Por que a Rússia não quer a Ucrânia na Otan | Ucrânia e Rússia | G1 ( globo.com )

17 Rússia, Ucrânia e Direito Internacional: sobre ocupação, conflito armado e direitos humanos | Human Rights Watch ( hrw.org )

18 Um ano após invasão russa, insegurança dificulta intenções de retorno de ucranianos, diz ACNUR – UNHCR ACNUR Brasil

19 Investigação da ONU conclui que crimes de guerra foram cometidos na Ucrânia ( cnnbrasil.com.br )

20 Rússia abandona tratado que estabelece Tribunal Penal Internacional | Europa | PÚBLICO ( publico.pt )

21 Tribunal Penal Internacional e o Princípio da Complementariedade – SEDEP

22 estatuto_roma_tpi.pdf ( ministeriopublico.pt )

23 Guerra Civil na Iugoslávia | Guerra Civil na Iugoslávia | memoriaglobo

24 Haia condena Karadzic a 40 anos de prisão por massacre de Srebrenica | Internacional | EL PAÍS Brasil ( elpais.com )

Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Pedro Vitor Serodio. O quão realista seria a prisão de Putin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7325, 22 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105204. Acesso em: 22 nov. 2024.

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