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Seleção e formação de juízes.

O caso espanhol em perspectiva histórica

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Agenda 20/10/2007 às 00:00

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Criação do sistema de seleção e seus vínculos com o modelo napoleônico de Poder Judiciário. 3. O desenvolvimento do sistema de seleção e formação até a Constituição de 1978. 4. A Constituição de 1978 e as novas exigências ao Juiz. 5. A legislação infraconstitucional do Poder Judiciário e suas características. 6. Conclusões 7. Referências das fontes citadas.

Resumo: O artigo discute o tema da seleção e formação dos juízes, apresentando a experiência histórica da Espanha desde a criação do sistema de concursos públicos, no século XIX, até os dias atuais. Analisa, ainda que sucintamente, a inclusão da experiência espanhola na categoria dos sistemas de seleção denominados de burocráticos ou do "juiz profissional" e apresenta as principais críticas que se podem ser feitas ao sistema historicamente engendrado.

Palavras-Chave: seleção e formação de juízes – Poder Judiciário – Espanha.


1. Considerações Iniciais

O presente artigo versa sobre um tema pouco discutido na bibliografia jurídica e das ciências sociais no Brasil – os mecanismos de seleção e de formação dos magistrados –, partindo da observação do caso espanhol. O objetivo principal é verificar como se deu a criação do mecanismo atual de seleção, o concurso público denominado de "oposición", cujas origens históricas remontam ao século XIX, e como ao longo do período chegou-se ao desenho institucional atual, com uma combinação do concurso público e de iniciativas de formação inicial.

A bibliografia internacional tem dado destaque, ainda que seja um destaque relativo e recente, a esse tema. Uma explicação acerca do fato pode ser tomada a partir da constatação da visibilidade política e social que o Poder Judiciário assumiu nas últimas décadas, trazendo consigo um debate importante sobre a função judicial e seus limites e provocando uma série de indagações de caráter prático: Quem são os juízes? Como são recrutados? Quais os mecanismos de avaliação e controle de sua atividade jurisdicional? Como medimos a qualidade dos "serviços" prestados pelos órgãos judiciais? [01]

Como resume Guarnieri (2001), a relação entre qualidade da prestação jurisdicional e as modalidades de seleção ou a formação que recebem os juízes pode ser vista de pelo menos três importantes ângulos. Em primeiro lugar, as modalidades pelas quais se escolhem e formam os membros do Poder Judiciário revestem-se de uma especial importância para o funcionamento do sistema jurídico e refletem-se na qualidade global da justiça, o que significa dizer que, para melhorar a prestação jurisdicional, não basta que pensemos em como organizar melhor os tribunais, se não incluirmos nessa reflexão a necessária qualificação profissional dos juízes que os compõem.

Em segundo lugar, se pensamos de um ponto de vista macro, o modo pelo qual são selecionados os membros do Poder Judiciário atua diretamente sobre o perfil de juiz que se produzirá e, a partir daí, sobre a concepção do Direito, do seu papel como juiz, da natureza e dos limites da sua função, que terá não apenas o juiz em sua dimensão singular, mas o próprio corpo judicial. [02]

Em terceiro lugar, as modalidades de recrutamento interferem diretamente na independência e imparcialidade dos juízes, as quais condicionam a qualidade da prestação jurisdicional, especialmente em circunstâncias como as atuais, nas quais uma parte considerável da atividade judicial desenvolve-se controlando a constitucionalidade e a legalidade da administração pública e da produção legislativa. Assim, sistemas de recrutamento que privilegiam a capacidade profissional reforçam a independência, ao produzir uma maior identificação com a função profissional exercida, e diminuem o papel de influências impróprias de caráter externo. (GUARNIERI, 2001).

Pode-se conceber, ainda que seja uma generalização, dois modelos básicos de recrutamento dos membros do Poder Judiciário nas Sociedades democráticas ocidentais: o do juiz "profissional" [03], recrutado dentre membros bem-sucedidos de carreiras jurídicas e detentor de uma experiência profissional que abaliza a sua nomeação ao cargo e legitima o exercício da função jurisdicional, presente nos países vinculados à tradição da common law [04]; e o do juiz "funcionário" que, mais característico dos países vinculados à tradição romano-germânica, trabalha com sistemas de recrutamento baseados em concursos públicos e aposta em um aprendizado da função no próprio exercício desta, dentro da organização judicial, pois o perfil geral do juiz recrutado é o de um jovem bacharel em Direito, cuja experiência profissional é pequena ou inexistente. (GUARNIERI, 2001).

O sistema espanhol de seleção e formação dos juízes encaixa-se no modelo de juiz "funcionário", que acima caracterizamos brevemente, e tem suas origens no século XIX, sob forte influência do modelo napoleônico. Conta basicamente com uma seleção pública, aberta aos bacharéis em Direito, que se costuma chamar de "oposiciones". Esse concurso público versa sobre conhecimentos técnico-jurídicos e consiste atualmente em uma prova escrita, de tipo teste, seguida de provas orais nas quais os candidatos recitam textos preparados a partir da legislação e de alguma referencia doutrinária, perante uma banca examinadora. Os aprovados nessa fase são então integrados à Escuela Judicial, que os preparará, com uma série de atividades práticas e teóricas, para o efetivo exercício da função judicial.

Além de partilharmos com a Espanha a inclusão no sistema de recrutamento denominado acima de "juiz funcionário", a experiência espanhola oferece ao estudioso brasileiro do Poder Judiciário algumas peculiaridades que a tornam um excelente objeto de reflexão na busca por um sistema de formação adequado à magistratura brasileira, objetivo que vem sendo buscado de modo mais incisivo, por determinação constitucional, desde a EC 45/2004.

Dentre essas peculiaridades, podemos resumidamente mencionar a semelhança existente entre nosso sistema jurídico, de origem romano-germânica, e o deles, bem como a presença de uma forte cultura jurídica legalista, cuja aplicabilidade prática entra em crise com a promulgação de uma constituição dirigente e com grande carga principiológica após a redemocratização do país. Além disso, as iniciativas de formação para os magistrados espanhóis contam com uma experiência significativamente mais longa do que a brasileira, o que serve também como uma espécie de laboratório de testes, útil para que evitemos cometer alguns erros facilmente identificados em sua experiência.

Observe-se, nesse sentido, que a Escola Nacional da Magistratura Trabalhista, implantada pelo Tribunal Superior do Trabalho em atendimento ao exigido pela EC 45/2004, realizou convênio com o governo espanhol e mais especificamente com a Escuela Judicial, a fim de aproveitar a experiência espanhola que mencionamos.

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Por derradeiro, deve-se mencionar também o fato de que há, especialmente se compararmos com o Brasil, uma bibliografia relativamente consolidada que discute a temática e cuja qualidade é bastante significativa.

Para cumprir com o objetivo proposto, o artigo é dividido em quatro partes: na primeira, apresenta-se a formulação histórica do sistema de concurso público, evidenciando a sua vinculação com o modelo napoleônico de Poder Judiciário; na segunda, acompanham-se as alterações nesse modelo até a promulgação da Constituição de 1978; a terceira parte é destinada à análise das modificações efetivadas pela Constituição de 1978 no papel exigido do juiz, enquanto que a quarta parte analisa como essas novas exigências foram trabalhadas na legislação infraconstitucional subseqüente.


2. Criação do sistema de seleção e seus vínculos com o modelo napoleônico de Poder Judiciário

O sistema de seleção por oposiciones foi criado pela Ley orgánica provisional sobre organización del Poder Judicial de 15/09/1870. Essa lei, como a própria indicação de sua época pode nos evidenciar, continha grandes influências do que se convenciona chamar de modelo napoleônico de Poder Judiciário.

Esse modelo pode ser descrito, conforme aponta García Pascual (1997), como uma combinação da doutrina revolucionária francesa e da institucionalização de um quadro funcionarial técnico mais bem vinculado com a visão burocrática de Estado do que com as suas raízes revolucionárias e liberais. O juiz era entendido (e recrutado) para ser um funcionário do Estado encarregado da aplicação da legislação posta pelo Poder Legislativo. O controle de seu recrutamento e a administração da sua carreira vinha adstrita ao Poder Executivo, mostrando assim que, apesar da teoria de separação de poderes ser utilizada como lugar comum a designar a natureza e os vínculos entre os poderes do Estado, de fato o Poder Judiciário tinha pouco mais que o nome como poder efetivamente independente.

O quadro acima esboçado fica mais claro se observarmos que a experiência revolucionária francesa estava baseada em uma profunda desconfiança na atividade judicial, cuja arbitrariedade e venalidade procurará controlar de todos os modos [05], produzindo, quase paradoxalmente, uma dominação e um enfraquecimento do Poder Judicial em vão tentada pela monarquia absolutista. [06]

A caracterização de um juiz, portanto, seguia o que convencionalmente passou à tradição do pensamento jurídico como "juiz boca da lei", ou seja, um paradigma de atuação em tudo mecânico e subordinado à legalidade estrita, que garantiria a neutralidade e a apoliticidade (aparentes) necessárias ao bom funcionamento do Estado.

Se nos fixamos no modelo e nos perguntamos pelas causas que o explicam, teremos, como bem resume García Pascual (1997) um quadro que pode ser sinteticamente resumido como uma combinação dos seguintes fatores: a) a aparição dos códigos e das regras rígidas para a atividade interpretativa; b) a disseminação das categorias dogmáticas da doutrina, presentes, por exemplo, na Escola da Exegese; c) a subtração da atividade administrativa do Estado do âmbito de julgamento da jurisdição ordinária; d) a inclusão do Poder Judiciário no âmbito de controle do Poder Executivo.

A experiência espanhola de organização judicial é descrita pela doutrina espanhola como tendo um importante ponto de inflexão a partir da Constituição de Cádiz, de 1812, a qual, embora não tenha sido vigente, pode ser vista como o marco de ruptura com o sistema judicial do antigo regime [07] e cujas linhas mestras foram aproveitadas nas constituições seguintes de 1837, 1845 e 1869. (ANDRÉS IBAÑEZ; MOVILLA ALVAREZ, 1986).

A referida constituição trazia em si uma concepção liberal do Poder Judiciário e afirmava a jurisdição como produto da soberania, estabelecia o principio da separação de poderes, a unidade e a exclusividade da jurisdição, a predeterminação legal do juiz e a sua inamovibilidade.(ANDRÉS IBAÑEZ; MOVILLA ALVAREZ, 1986).

Mostrava-se, portanto, como uma tentativa de introduzir ordenação e racionalidade na administração da justiça, de acordo com um ideário bastante próximo ao que descrevemos acima quando nos referimos ao modelo francês, e embora não tenha tido vigência em função da reação absolutista que a ela se seguiu [08], seus princípios foram pouco a pouco sendo implementados na legislação esparsa que reformou o sistema de justiça. (ANDRÉS IBAÑEZ; MOVILLA ALVAREZ, 1986).

A realidade, no entanto, não parecia ser tão simplesmente reformada pela presença de uma regulação jurídica liberal [09]. Como aponta Sainz Guerra (1992), as legislações que foram realizadas durante o período liberal muitas vezes voltavam a exibir características que se não idênticas, ao menos bastante próximas das ostentadas pela organização judicial durante o regime absolutista. Um exemplo dessa dinâmica pode ser encontrado na exigência de que o juiz não tivesse outro cargo, função ou ocupação expressamente prevista na Constituição de 1812 e na legislação que se seguiu, mas com uma abertura semântica que permitia entender que isso era assim, desde que o cargo, função ou ocupação não impedisse ou dificultasse o exercício da função jurisdicional. [10]

Quanto à exigência de uma formação adequada para o desempenho da função judicial, aponta Sainz Guerra (1992) as tentativas ocorridas durante o regime liberal e antes da legislação de 1870 no sentido de tornar mais exigentes e precisas as condições a partir das quais se podia aceder ao cargo de juiz e progredir na carreira. A comprovação do cumprimento das exigências de conhecimento jurídico, contudo, se mostravam ainda bastante distantes do necessário e, podemos imaginar, estavam na base da preocupação que se consubstanciará na instituição do sistema de oposiciones.

Do mesmo modo, apesar da previsão constitucional da inamovibilidade e da independência já presentes na Constituição de 1812, a realidade do período liberal pode ser melhor descrita como uma situação na qual a permanência no cargo estava vinculada ao cumprimento de um requisito de adesão política que se traduzia, em termos práticos, em uma política de constantes depurações com o afastamento e o retorno às funções judiciais conforme as maiorias políticas iam e viam do poder. (JIMENEZ ASENSIO, 2001; SAINZ GUERRA, 1992). [11]

A Constituição de 1869, a seu turno, volta a mencionar explicitamente o principio de separação de poderes e manifesta preocupação explícita com o acesso à carreira judicial [12]. Sua regulamentação resultará na já mencionada lei de organização de 1870, estabelecerá o sistema de acesso por concurso público e desenhará o Poder Judiciário espanhol com as características que alcançarão a Constituição de 1978. (ANDRÉS IBAÑEZ; MOVILLA ALVAREZ, 1986).

De acordo com Jimenez Asensio (2001) a sociedade espanhola do século XIX se estava modificando e uma das conseqüências dessas modificações foi a implantação de sistemas mais eficientes de administração pública, a exemplo do que já ocorria em outros paises europeus. Desse modo, a criação do sistema de oposiciones para acesso à carreira judicial não foi um fato isolado, mas correspondeu à implantação de um modelo de acesso às funções públicas baseado na idéia de profissionalização e de maior estabilidade.

A Ley de 1870 pode ser descrita, conforme as opiniões expressas pela doutrina espanhola, como excelente e firmemente vinculada à idéia de um Poder Judiciário bem organizado, independente, técnico, responsável e dedicado de forma exclusiva e excludente à administração da Justiça, mas também como fielmente adstrita ao modelo napoleônico de Poder Judiciário, na medida em que apostou em uma estrutura hierárquica férrea e em um controle da política de nomeações pelo Poder Executivo. (ANDRÉS IBAÑEZ; MOVILLA ALVAREZ, 1986).

Quanto ao seu desenho especifico cabe dizer que a Ley estabelecia um ingresso no que denominava de Cuerpo de Aspirantes a la Judicatura após o candidato ter passado por um conjunto de provas públicas com exercícios teóricos e práticos, avaliados por uma Junta Qualificadora composta predominantemente por magistrados, advogados e professores catedráticos das universidades. O governo determinava o tipo de exercício, os programas de conteúdo a serem tematizados nos exercícios e nomeava a maioria dos membros da Junta Qualificadora. (JIMENEZ ASENSIO, 2001).

A Constituição de 1869 previa também a instituição da entrada lateral, que ficou conhecida como o cuarto turno e que consistia na nomeação de profissionais que não haviam passado pelo crivo do concurso público. Isso significou, de fato, uma continuidade com as práticas clientelistas existentes, embora, é claro, com sentido reduzido. A previsão dessa possibilidade na Ley de 1870 e especialmente sua ampliação em uma reforma legislativa ocorrida em 1882 e que aumentava significativamente o número de postos a que se acedia pelo cuarto turno não foi bem recebida e chegou a ser descrita como "um escândalo maiúsculo". Essa realidade fez com que em 1902 se extinguisse a entrada lateral, configurando-se assim a magistratura espanhola como um corpo cerrado a qualquer ingresso que não fosse pelo concurso público. (JIMENEZ ASENSIO, 2001)

A regulamentação do ingresso por concurso público e a lenta conformação do sistema, objeto de vários decretos regulamentadores é o objeto de nosso próximo item. Cabe, no entanto, ressaltar, conforme apontam Andrés Ibañez e Movilla Alvarez (1986) que essas adaptações, regulamentações e desenvolvimentos em momento nenhum significaram uma transformação em direção a um sistema diverso do concebido inicialmente, nem mesmo quando da instauração do regime franquista, demonstrando que o resultado prático obtido com sistema de inspiração napoleônica de um juiz técnico e apolítico teve grande êxito.

De modo bastante veemente, Jimenez Asensio (2001) comenta essa adaptação perfeita ou quase perfeita do Poder Judiciário aos distintos momentos políticos da história recente espanhola afirmando a sua identificação com o modelo funcionarial de juiz, caracterizado por uma submissão acrítica à legislação, um forte sentido corporativista, uma falsa apoliticidade, uma mentalidade conservadora e boas conexões com o poder. Um juiz, assim, que administrava justiça aos particulares e que era bastante obediente aos distintos governos que se sucediam no poder, especialmente se fossem autoritários e de caráter conservador.


3. O desenvolvimento do sistema de seleção e formação até a Constituição de 1978

Comentando o modo de realização do concurso público para acesso à magistratura, Beceña (1928) afirma que a partir dos instrumentos normativos de regulamentação da oposición realizados entre 1883 e 1921, o desenho das provas a que estavam submetidos os candidatos denunciava uma profunda desconfiança na comissão que julgava as provas, pois o governo estabelecia o programa, o número e a duração dos exercícios e a maneira de tomar decisões, consubstanciada em uma valoração aritmética de cada um dos exercícios que, segundo ele, fazia com que as listas de aprovados se parecessem muito com as listas nas quais constavam a altura dos recrutas do exército.

Ainda segundo autor, a comissão não podia perguntar, propor questões, pedir esclarecimentos nem tomar qualquer iniciativa que lhe permitisse avaliar a solidez da preparação do candidato, limitando-se a ouvir o que o candidato recitava e julgá-lo pelo que dissesse dentro do prazo regulamentar. A capacidade de memorização e a tranqüilidade para recitar os conhecimentos armazenados eram, portanto, os requisitos para a aprovação no concurso. Tendo uma duração de uma hora para responder sobre onze temas, o julgamento era, evidentemente, sobre a capacidade de memorização. (BECEÑA, 1928).

Iniciando uma série de críticas de teor muito semelhante que são praticamente aplicáveis ao modo como se desenvolvem as oposiciones hoje, já em 1928 Beceña afirmava não ver qual a vantagem que o sistema podia apresentar, pois nem servia para preparar o candidato aprovado para o exercício de sua atividade profissional (que não requer improvisação e rapidez como o exame) nem para fazer com que aprenda os conteúdos jurídicos de fato, por seu próprio labor, eis que uma bibliografia de apoio, com resumos feitos à medida dos minutos que o expositor teria para recitar os temas, era (e é) vendida de modo habitual.

Uma medida paliativa ao apontado acima foi prevista na reforma de 1921, a qual previa um exercício escrito constante de três dissertações científicas sobre temas de direito civil privado, comum e foral, direito mercantil e teoria do conhecimento. Essas dissertações seriam realizadas em um tempo de quatro horas, sem consulta a qualquer tipo de material de apoio. De novo, como aponta Beceña (1928), a suposição é avaliar a memória do candidato, razão pela qual pode ser qualificada como uma variante acidental do exercício oral. Deve-se dizer que quando da implantação do exercício escrito, a prova oral deixou de ser eliminatória e seria realizada após o candidato ter passado pela prova escrita. [13]

Deve-se aduzir também que uma peça-chave do sistema era e é a presença do preparador. Este, normalmente um juiz ou fiscal [14], com maior ou menor experiência, mas sempre alguém que já enfrentou o concurso, dedica-se a auxiliar o candidato em sua preparação. A sua tarefa, nesses termos, é a de corrigir sua postura diante do tribunal e tomar-lhe os temas de memória até o momento em que esteja dizendo correta e tranquilamente os conteúdos possíveis de serem objeto do sorteio dos temas. A relação entre preparador e preparado, sempre individual, era e é remunerada e constitui, sem dúvida, um vínculo importante de socialização e de espelhamento para o futuro juiz. Sua natureza e o momento preciso em que surgiu não são evidentes ao observador externo, pois é uma prática absolutamente informal, sobre a qual se faz menção como tivesse existido sempre e por isso parece remontar às origens do sistema das oposiciones e que ademais não vem discutida explicitamente na bibliografia que trata desses temas.

Passada a fase da oposición, o candidato era designado para um posto onde estaria como auxiliar e no qual teria de cumprir tarefas sob a supervisão de um juiz ou magistrado. Essa fórmula fazia com que a socialização do futuro juiz fosse realizada em primeiro lugar na preparação da oposición e em segundo lugar, no próprio exercício das tarefas profissionais, ou seja, mirando-se no exemplos dos membros mais experientes da carreira.

A modificação mais notável no sistema de seleção foi, sem dúvida, a instituição de uma Escola Judicial em 1944. Essa escola, uma das primeiras das que se tem notícia, veio justificada como um complemento necessário ao sistema de concurso público (VALLS GOMBAU, 2006). O candidato aprovado na oposición seria a ela conduzido para um período de práticas que lhe permitissem desenvolver as aptidões necessárias ao bom exercício das atividades requeridas pela profissão.

Apesar de sua instituição em 1944, a Escola não foi implantada até 1950 e mesmo então, como admite a literatura especializada, não cumpriu com as sua funções precípuas. (VALLS GOMBAU, 2006).

As razões desse fracasso ou dessa falta de efetividade são explicadas recorrendo-se a uma série de fatores: a ausência de uma avaliação de desempenho dos ingressantes e a ausência de uma repercussão prática de sua passagem pela Escola, pois não havia nenhuma modificação da ordem obtida na oposición, bem como a repetição dos conteúdos vistos na Faculdade de Direito e preparados para as provas da oposición, com algum matiz mais prático, mas mesmo assim pouco motivador para os ingressantes na carreira. (GARCIA VALDÉS, 1987)

O período obrigatório na Escola Judicial a partir de sua implementação em 1950, resultou, mais bem, em um momento de descompressão, quase de férias, para então iniciar a verdadeira carreira. A dureza e o caráter traumático da preparação das oposiciones que exigiam do candidato uma vida quase monástica por longos anos [15], dedicando-se a aprender de memória centenas de temas, provavelmente jogava um papel bastante relevante na ocorrência desse caráter de "quase-férias" que a Escola acabou representando para os que nela ingressavam. (JIMENEZ ASENSIO, 2001).

O resultado final do processo de seleção se generalizado, poderia ser descrito, portanto, como atendendo a prevalência do resultado obtido nas provas da oposición, cujo caráter memorístico e acrítico é o traço marcante.

A história espanhola e seus traços clientelistas, apontados no item anterior, levavam, por outra parte, a uma profunda resistência a qualquer forma de crítica ou de transformação no sistema de seleção, visto como o único apto a garantir a qualidade técnica dos membros do Poder Judiciário. [16]

Questionamentos sobre a modificação no sistema de oposiciones levantam de seus túmulos velhos fantasmas e levam, até hoje, a uma discussão bastante maniqueísta entre o sistema corrente (que conserva em grande medida as características até aqui vistas) e uma modificação possível, como, por exemplo, a atribuição de um papel mais importante à Escola Judicial.

O próximo item descreve como a Constituição de 1978, fruto final do período de transição democrática iniciado após a morte de Franco em 1975, concebeu o papel do juiz espanhol.

Sobre a autora
Claudia Rosane Roesler

doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade de Alicante (Espanha), professora dos cursos de Graduação em Direito, Mestrado Acadêmico em Ciência Jurídica e Mestrado Profissionalizante em Gestão de Políticas Públicas da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI/SC) e da Graduação em Direito do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESLER, Claudia Rosane. Seleção e formação de juízes.: O caso espanhol em perspectiva histórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1571, 20 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10536. Acesso em: 23 dez. 2024.

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