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Os tabeliães e seus cartórios de notas em três fases da literatura brasileira

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Agenda 06/09/2023 às 16:56

O papel do tabelião na literatura brasileira é explorado em obras de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Jorge Amado. O artigo analisa a imagem construída sobre o tabelião na literatura brasileira, desde o Romantismo até o Modernismo.

Do tabelião Sebastião Ferreira Freire no “O Garatuja” (1873) no Romantismo de José de Alencar e do tabelião Vaz Nunes no “O Empréstimo” (1882) no Realismo de Machado de Assis ao tabelião Jerônimo Barreto em “Infância” (1945) no Modernismo de Graciliano Ramos e ao tabelião Tonico Bastos em “Gabriela, Cravo e Canela” (1958) no Modernismo de Jorge Amado.

Buscando por escrituras e serviços notariais, como autenticações e apostilamentos, em meados deste ano precisei ir a diversos cartórios de notas e entrar em contato com alguns – sempre solícitos! – tabeliães do Rio de Janeiro e de São Paulo, tomando o fôlego que me faltava para finalmente escrever este artigo, sobre este profissional que, no Brasil, pode ser encontrado em milhares de cartórios extrajudiciais, devendo ser bacharel em Direito e, depois da Constituição de 1988, ser aprovado em concurso público, para desempenhar sua função conforme a Lei 8.935/1994 e outros marcos normativos.

Os tabeliães vez por outra foram tratados na Literatura Brasileira, por exemplo: 

(a) no Romantismo, no romance "O Garatuja" (1873) de José de Alencar, no personagem do tabelião Sebastião Ferreira Freire;

(b) no Realismo, no conto "O Empréstimo" do livro “Papéis Avulsos” (1882) de Machado de Assis, no personagem do tabelião Vaz Nunes; 

(c) no Modernismo, no conto "Jerônimo Barreto" do livro “Infância” (1945) de Graciliano Ramos, no personagem-título, e no romance "Gabriela, Cravo e Canela" (1958) de Jorge Amado, no personagem do tabelião Tonico Bastos. 

E o que dizem tais imagens de tabeliães em nossa literatura? Como filho de um tabelião - como foram filhos de tabeliães também figuras tão ilustres como Leonardo Da Vinci (este, dizem biógrafos como Walter Isaacson1, nascido do adultério de seu pai, Piero, com uma camponesa local solteira) e Voltaire2 - sempre que me deparei com tabeliães entre os personagens de romances ou contos lidos, além de pensar em meu saudoso pai, busquei responder a tal questão: que imagem é essa, construída sobre tal jurista, no nosso país? 

Trata-se de uma imagem que se assemelha ao tabelião representado na clássica pintura a óleo do alemão Max Volkhart, "O tabelião" ("Beim Notar"), de 1924, que também pode render tantas reflexões ao lhe observarmos, assim como a pintura "O tabelião" ("The Notary") do norte-americano Walter MacEwen ou "A reunião no cartório do tabelião" ("La réunion chez le notair") do belga Franz Meerts? Curiosamente, em que pese a importância dos cartórios na cultura jurídica, política e social luso-brasileira, não me ocorre um artista plástico português ou brasileiro que tenha buscado representar um tabelião como o fizeram com outros tipos sociais o português José Malhoa ou o brasileiro (e paulista, daí tanto ter se dedicado aos tipos do interior deste Estado) Almeida Júnior. 

Coube, portanto, no Brasil, à literatura deixar alguma representação deste profissional, cuja função ultrapassa os 450 anos no nosso país, segundo um autor como Deoclécio Macedo em "Tabeliães do Rio de Janeiro", que considera o primeiro deles Pero da Costa, nomeado tabelião público do Judicial e das Notas da cidade do Rio de Janeiro em 1565, depois assumindo a escrivania de sesmarias. Enfim, vejamos, pois, como os contemporâneos José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908), no Século XIX, e Graciliano Ramos (1892-1953) e Jorge Amado (1912-2001), no Século XX, constroem suas representações do tabelião na Literatura Brasileira. 


1. Sebastião Ferreira Freire, o tabelião de José de Alencar 

José de Alencar era bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, formado em 1851, tendo estudado um período também na Faculdade de Direito de Olinda, ou seja, escreveu sobre um tabelião conhecendo o campo do Direito. Em “O Garatuja” (romance do início da década de 1870, aliás, completando 150 anos agora em 2023), ele conta, de certa forma, a história de um tabelião no Rio de Janeiro do Século XVII, que reclama com o Ouvidor sobre o comportamento de seminaristas, terminando o notário por enfrentar o Prelado, na defesa de seus seminaristas.

Há quem, por esta oposição entre o tabelião/Ouvidor e o Prelado, ressalte o conflito entre Estado e Igreja na obra. Mas o protagonista é Ivo do Val, o "garatuja" (expressão que seria como, hoje, "grafiteiro" ou "caricaturista", pois o rapaz desenhava caricaturas, inclusive à carvão, pelas paredes da cidade, a "trocar as pernas pelas ruas de São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caia debaixo do carvão; donde veio chamar-lhe a gente o 'Garatuja'", conforme escreve Alencar), que, ao fim, se casa com a filha do tabelião, Marta, após vir a ser funcionário do cartório, por intermédio da sogra do notário, Romana, a quem a mãe adotiva de Ivo, Rosalina, procura buscando por sua intersecção para que o rapaz lá trabalhasse. 

Antes de se casar com Marta, porém, Ivo chega a ser demitido do cartório, mas segue enamorado da moça e se opondo aos religiosos que atazanavam a família do tabelião, até que este recorre ao Ouvidor, deflagrando a crise entre o Estado (Ouvidor) e a Igreja (o Prelado Almada), a partir da excomunhão do Ouvidor, que reclama com o rei, enquanto Ivo encabeça uma rebelião de estudantes, em meio à qual beija Marta, levando o tabelião a querer casá-los, desde que Ivo abandonasse a caricatura e se dedicasse ao cartório.

José de Alencar, já no terceiro capítulo, “Um tipo que já não se encontra no tempo d’agora”, surpreende o leitor ao começar a descrever a rua, no Século XVII, que se tornaria a Rua do Ouvidor:

A Rua do Aleixo Manuel, que só um século depois veio a chamar-se do Ouvidor, quando aí se estabeleceu a residência efetiva do primeiro magistrado da capitania, naquele tempo nem indícios dava da brilhante galeria do luxo e da moda, que se começou a formar com a vinda de El-Rei D. João VI, em 1808.

Muito lhe faltava ainda para merecer o nome de rua, que nem toda a gente lhe dava, dizendo simplesmente: 'Para as bandas do Aleixo Manuel'. Teria então meia dúzia de casas; o mais eram cercas ou quintais.

Próximo à Travessa do Sucussara, via-se ainda a antiga loja do mercador que primeiro ali morara e donde lhe viera o nome; e fronteiras umas casas de taipa com dois lanços, e quatro janelas de rótulas, como eram quase todas naquele tempo.

(José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo III)

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Na sequência, uma descrição do cartório:

Como não bastassem as paredes para acomodar toda a papelada, saiam do meio delas outros renques de prateleiras atravessados, formando uns cubículos estreitos, onde viam-se bancas apinhadas de rimas de processos. Por detrás dessas muralhas de autos arrumadas à guisa de torre, ouvia-se ranger a pena no papel, sinal infalível de que aí estava a rabiscar um escrevente do cartório.

Em uma espécie de nicho que havia para o fundo do aposento, contra a parede interior assentava uma longa banca de pau-santo, sobre seis pés torneados, cada qual mais grosso do que a viga da casa. Como as outras, servia esta mesa de sapata a um castelo de papelório; mas aqui as ameias eram feitas não só com muralhas de autos, mas com baterias de formidáveis bacamartes encadernados em camurça vermelha.

No meio da banca, dentro da cava aberta para acomodar o corpo, surgia um busto de homem, coberto de tabaco e poeira, com um chinó tão escandalosamente ruivo, que já frisava com o vermelho.

(José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo III)

É então que começa a descrever o tabelião Sebastião Ferreira Freire, este homem, como vimos acima, coberto de tabaco e poeira com um chinó ruivo:

Óculos de asas de estanho, trepados no respeitável cavalete, envidraçavam de verde uns olhinhos redondos, vivos, espertos, que pulavam das órbitas como a pupila do molusco. O queixo fino e agudo, à feição do gume de uma fouce revirada, bem como as faces chatas e batidas, pareciam chanfradas em carão de pau, coberto de velho pergaminho.

Constantemente sorvida certo indício de concentração do espírito, a boca não passava de uma ligeira comissura, que seria imperceptível, se a conformação do rosto não indicasse naquele ponto o hiato da gula.

Às orelhas que não invejariam as de um perdigueiro, no tamanho e nas ouças, serviam-lhes de ornato duas penas de ganso, que lançando as longas ramas sobre as espáduas, espetavam-lhe na testa os bicos rombos e cobertos com espessa crosta de tinta.

(José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo III)

Ao modo das descrições detalhadas típicas de José de Alencar e do Romantismo, prossegue em sua caracterização do tipo, "morador qualificado não só pela importância do cargo, como pelos predicados de sua pessoa":

A parte de mais nota era a mão, que poderia servir de bitola ao palmo craveiro, pois assentando o punho embaixo da página, alcançava-lhe o tope com os bicos da pena encravada nos três dedos, que a apertavam como os dentes de uma tenaz de aço. Encolhendo-se à medida que desciam as regras da escrita, a tal mão de tarracha só levantava-se da banca para virar a folha com um piparote, enxumbrado da saliva, que o dedo mínimo furtava à boca, mas com a rapidez de um tiro de bodoque. Nestas ocasiões o beiço em constante sinalefa, desabrochava da cesura, graciosamente estofado, como a fava de um chichá.

Era este o dono do cartório, Sebastião Ferreira Freire, tabelião do público, judicial e notas, da cidade de São Sebastião, morador qualificado não só pela importância do cargo, como pelos mais predicados de sua pessoa.

(José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo III)

No capítulo seguinte, a caracterização do tabelião continua, com uma construção psicológica do personagem, que corresponde talvez à mais elaborada imagem de tabelião que tivemos na Literatura Brasileira durante o Romantismo, sem sair de cima do livro das notas, atento aos escreventes, autenticando as escrituras lavradas: 

Cada dia que Deus dava, invariavelmente às oito horas de Inverno e sete de verão, escanhoado, almoçado e tabaqueado, sentava-se o Sebastião Freire à carteira, e desunhava-se em borrar papel até meio-dia.

A última badalada das doze trocava a banca de escrita pelo bufete onde o esperava o jantar. Terminado este, deitava-se em um catre de couro de veado, que tinha na varanda, e aí fazia o quilo, dormindo a sua sesta.

Despertava da sonata com tal exatidão, que se o relógio da torre do Mosteiro de São Bento, o regulador do horário da cidade naquele tempo, se desconsertasse, não seria preciso tomar-se a meridiana; porque a cabeça pontuda do tabelião espirrava da almofada infalivelmente no momento em que a sombra do ponteiro caía sobre as duas.

Voltava então à banca, e esgrimia de pena até que se fizesse noite na casa do cartório, o que sucedia meia hora mais cedo do que na rua, por causa dos grandes armários que interceptavam a luz.

Concluída a tarefa do dia com desencargo de consciência por estar cumprida a obrigação, dava o Sebastião Freire sua hora à devoção. Depois de rezar trindades, saía pela vizinhança a desenferrujar a língua e as pernas, que lhe ficavam um tanto perras. Outras vezes acompanhava a dona e a filha, que iam de visita em casa d’alguma comadre; porém mais freqüentemente à casa da Srª. Romana, sogra do nosso tabelião, e uma das matronas respeitáveis da cidade de São Sebastião, que as tinha outrora de veneranda trunfa.

Esta faina diária somente se alterava nos dias de guarda, que o Sebastião Freire como bom católico reservava ao repouso depois da missa conventual; e nos dias de audiência, em que pela acumulação do judicial estava ele obrigado a assistir ao despacho do ouvidor. Afora estes dias era mais fácil desaparecer da baía o nariz do Corcovado, do que o nariz do tabelião de cima do livro das notas.

Estirando o gregotim pelo papel, não perdia o Sebastião de vista o cartório, e ora um, ora outro, dos olhinhos de azougue, enfrestava-se pela aberta das cangalhas à espreita dos escreventes, que trabalhavam na rasa, cada um em sua banca, atravancada de autos.

Era especialmente quando se preparava para pôr o sinal, que o tabelião aproveitava para a rápida pesquisa do cartório.

O sinal, historiado e vistoso, tinha seu quê de hieróglifo; e para o nosso homem era como um brasão de ofício ou timbre, de que ele se desvanecia. Se lhe coubesse também alguma vez a mercê de hábito, como a estavam dando os governadores por graça de El-Rei, sem dúvida que as armas da família haviam de ser a cópia do sinal público, que autenticava as escrituras lavradas nas notas.

(José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo IV)

Eis a imagem construída por José de Alencar, ícone do nosso Romantismo, sobre o tabelião brasileiro de dois séculos antes do momento histórico em que este ilustre cearense, neto de Bárbara de Alencar, escreveu estas linhas sobre o notário que acabava precisamente sua refeição matinal "e esgravatava metodicamente a dentuça com uma pena de galo, esperando que pingassem as sete para encaminhar-se ao cartório". (José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo IX)

Ler as citações diretas nos ajuda a conhecer o estilo do autor e a riqueza de detalhes com que construía cenários e personagens em seus livros. Como quando nos conta que "era a escrita do Sebastião Ferreira a mais tabelioa que se pode imaginar; dificilmente conseguiam os velhos escreventes meter-lhe o dente. Uma linha tremida estendendo-se horizontalmente, e com umas pontas que lhe saíam para cima e para baixo, tal era o aspecto desse gregotim indecifrável." (José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo XII)

E, ao fim do romance, Alencar conta o quanto Ivo esqueceu dos seus pincéis "para tornar-se um escrevente de cartório, ao gosto do futuro sogro, a quem devia suceder. Viveu feliz; e se alguma vez lhe perpassavam pela mente os sonhos de glória, que haviam embalado sua juventude, era nuvem passageira." (José de Alencar, “O Garatuja”, Capítulo XXVIII)

Os descendentes de Ivo do Val3 e Marta seriam os tabeliães do Século XVIII (“O Garatuja” se passa em 1659), cujas imagens ninguém, até onde sei, se aventurou a construir em nossa Literatura, sobre os notários em um século tão rico de acontecimentos políticos (basta citar a Inconfidência Mineira de 1789, entre outras revoltas desde a Guerra dos Emboabas no início deste século, em 1708), sociais (crescimento populacional, especialmente nas regiões onde hoje estão Estados como Minas Gerais e Goiás) e econômicos (com os efeitos do chamado Ciclo do Ouro e do Diamante), antes do Século XIX, que traria consigo a chegada da Família Real (1808) e a Independência do Brasil (1822) acompanhada de uma transformação administrativa do país (de que o Visconde do Uruguai talvez seja um dos maiores pensadores políticos), o movimento abolicionista, o fim da escravidão (1888), além da própria proclamação da República (1889).

Um livro historiográfico, aliás, sobre a atuação de tabeliães neste período do Século XVIII, publicado em 2020, é “Libertos, patronos e tabeliães: a escrita da escravidão e da liberdade em alforrias notariais” de Douglas Lima. Mas da Literatura Brasileira, nenhum expoente se aventurou a escrever a respeito. No próprio Século XIX, quando José de Alencar escreveu “O Garatuja”, Machado de Assis teve em um tabelião um personagem de um de seus contos, mas ocorrido naquele mesmo século.


2. Vaz Nunes, o tabelião de Machado de Assis 

No conto, Machado de Assis apresenta o tabelião Vaz Nunes, com seu cartório à Rua do Rosário, no Centro do Rio de Janeiro, em um final de expediente, quando já está sozinho: 

Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspeto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.

(Machado de Assis. O Empréstimo. In: Papéis Avulsos)

Vemos a imagem do tabelião, assim como aquela construída por José de Alencar, como alguém honesto e perspicaz. No conto, a sós no cartório, recebe a visita de um homem desconhecido, Custódio, com "um ar de pedinte e general", que havia nascido, nas palavras do escritor, com a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho, "com o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros", etc mas sem dinheiro "nem aptidão ou pachorra de o ganhar", embora precisasse viver, sendo ainda desastrado nos negócios todos que já havia tentado realizar. 

Custódio tinha lido um anúncio, nos jornais, de alguém que pedia um sócio com cinco contos de réis para um negócio que renderia em apenas 6 meses de oitenta a cem contos de lucro: uma fábrica de agulhas. Sem nenhum amigo que pudesse ajudá-lo com tal quantia, de repente se viu em frente ao cartório do tabelião Vaz Nunes, que havia conhecido em uma festa há algum tempo, na casa de conhecido em comum, no bairro da Tijuca, e entrou, explicando a história e pedindo ao tabelião "uma escritura de gratidão", isto é, um empréstimo dos tais 5 contos, para pagar com juros.

Vaz Nunes disse não dispor da quantia. E completou dizendo: "quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?" Custódio ficou então esperando que o tabelião continuasse, mas o notário, percebendo ser essa a expectativa do homem, seguiu calado. "Tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas!" escreveu o bruxo do Cosme Velho. Até que Custódio teve ideia de pedir quantia menor, para saldar aluguéis atrasados, credores, etc, pedindo quinhentos mil-réis e ouvindo do tabelião novamente a negativa. 

— Não; não posso.

— Nem quinhentos mil-réis?

— Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga me, não está empregado?

— Não, senhor.

— Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao Ministro da Justiça, tenho relações com ele, e...

Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, — “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz (...). Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...

— Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...

— Não imagina os apuros em que estou!

— Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...

— Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.

— Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.

— Nem cem mil-réis!

— Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é a verdade. Nem cem mil-réis. (...)

(Machado de Assis, "O Empréstimo", In: "Papéis Avulsos")

Então Custódio tenta obter cinquenta mil-réis para aposentar o paletó que trazia. "Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; — não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso  tudo, tudo mentira" escreve Machado. 

Enquanto Custódio refletia, Vaz Nunes limpava o relógio calado, "transpirando por todos os poros impaciência e fastio". Ao ver o tabelião terminar de se arrumar para sair do cartório e ir embora, Custódio lhe pediu dez mil-réis e, já com o chapéu na cabeça, o notário desabotoou o paletó, pegou a carteira e mostrou duas notas de cinco mil-réis, dando uma nota para Custódio e ficando com a outra, dizendo não ter mais. "Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo."

O próprio Machado de Assis, no início do conto, estabelece uma analogia entre cena do conto - que transcorre em uma hora (entre as 4 horas e as 5 horas da tarde), podendo ser a representação de uma vida - e a entrada no mundo de um rapaz "com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral", mas que "aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça." Escreveu o escritor fluminense que "tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?"

E é assim que, em um conto breve e cheio de verve e reflexão, Machado de Assis nos brinda, entre outros aspectos notáveis, com esta imagem do tabelião Vaz Nunes, da Rua do Rosário, sendo uma das imagens mais fortes de nossa literatura acerca de um notário, e creio que a mais expressiva do Realismo (não encontrei referências a outros tabeliães nas obras desse período da literatura brasileira, nem me recordo de já ter me deparado com um tabelião nos livros dos demais autores dessa época e estilo aos quais já tenha lido). 

Outras duas imagens de tabeliães a que nos referiremos abaixo já serão construídas no Modernismo, uma pelo alagoano Graciliano Ramos e outra pelo baiano Jorge Amado, conflitantes entre si. Uma delas mais afinada com essa imagem do Século XIX, quando Graciliano apresenta o tabelião Jerônimo Barreto, e a outra absolutamente iconoclasta, ao tomarmos contato com o tabelião Tonico Bastos. Vejamos. 

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva Carvalho. Os tabeliães e seus cartórios de notas em três fases da literatura brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7371, 6 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105694. Acesso em: 23 dez. 2024.

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