3. Jerônimo Barreto, o tabelião de Graciliano Ramos
No Modernismo, há duas imagens de tabelião a que me referirei. A primeira é aquela construída por Graciliano Ramos no conto "Jerônimo Barreto" do livro autobiográfico "Infância" de 1945. Neste conto, Graciliano narra sua dificuldade na infância de conseguir livros: "eu precisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas aventuras, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconhecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas."
Sua prima, Emília, lhe tenta auxiliar, pensando nos possuidores prováveis de bibliotecas na cidade, embora fossem "sisudos, inacessíveis": Dr. Mota Lima, Professor Rijo, Padre Loureiro e, mais próximo, o tabelião Jerônimo Barreto. Graciliano conta que diariamente, percorrendo a Ladeira da Matriz, ficava em frente a seu cartório, enfiava os "olhos famintos" pela janela:
Via numa estante, em fileiras densas, bonitas encadernações de cores vivas. À mesa larga, em mangas de camisa, o funcionário manejava instrumentos jurídicos. E um respeito cheio de inveja me detinha na calçada. Atribuí àquele rapaz moreno ciência poderosa, estranhei vê-lo, simples e calmo, juntar-se aos freqüentadores da loja, onde metia na conversa Robespierre e Marat, dois tipos que venerei antes de me chegar qualquer notícia de revolução e da França.
(Graciliano Ramos. "Jerônimo Barreto" In: "Infância")
O escritor alagoano conta que esperou sua prima falar com o tabelião, mas ela se recusou. Encorajado por um interlocutor, José Batista, foi então o menino Graciliano bater porta do notário, com o qual conseguiu o primeiro empréstimo, de um exemplar de "O Guarani" de José de Alencar.
E bati à porta. Um minuto depois estava na sala, explicando meu infortúnio, solicitando o empréstimo de uma daquelas maravilhas. Mais tarde me assombrou o arranco de energia, que em horas de tormento se reproduziu. Como veio semelhante desígnio? De fato não houve desígnio. Foi uma inexplicável desaparição da timidez, quase a desaparição de mim mesmo. Expressei-me claro, exibi os gadanhos limpos, assegurei que não dobraria as folhas, não as estragaria com saliva. Jerônimo abriu a estante, entregou-me sorrindo O Guarani, convidou-me a voltar, franqueou-me as coleções todas.
Retirei-me enlevado, vesti em papel de embrulho a percalina vermelha, entretive-me com D. Antônio de Mariz, Cecília, Peri, fidalgos, aventureiros, o Paquequer. Certas expressões me recordaram a seleta e a linguagem de meu pai em lances de entusiasmo. Vi o retrato de José de Alencar, barbado, semelhante ao Barão de Macaúbas, e achei notável usarem os dois uma prosa fofa. Vencidos o incêndio e a cheia, dois elementos de resistência na literatura nacional, examinei os volumes, desencapei-os, restituí-os ao dono.
Jerônimo Barreto me desviou para as obras de carregação. Viajei bastante, abeirei-me de condessas. Mas permaneci no desalinho, esgueirando-me pelos cantos, e o juízo severo da família se agravava. Apenas meu primo José, ouvindo-me descrever uma casa queimada, resmungou:
— Falante como o diabo.
(Graciliano Ramos, "Jerônimo Barreto" In: "Infância")
Depois, Graciliano conta os percalços que passou na escola (como um de seus trrabalhos ser considerado "incorrigível" ou ele ser compreendido como "um imbecil"), ao concentrar seu interesse na literatura em vez das tarefas escolares.
Jerônimo Barreto me fazia percorrer diversos caminhos: revelara-me Joaquim Manuel de Macedo, Júlio Verne, afinal Ponson du Terrail, em folhetos devorados na escola, debaixo das laranjeiras do quintal, nas pedras do Paraíba, em cima do caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandeiras e figuras.
Os meus colegas se afastavam de mim, declamavam as capitais, os rios da Europa. E eu mascava os prolegômenos: vinte e quatro horas, trezentos e sessenta e cinco dias, raça branca, raça negra. Quando tomei pé na Europa, eles exploravam outras partes do mundo.
Surdo às explicações do mestre, alheio aos remoques dos garotos, embrenhava-me na leitura do precioso fascículo, escondido entre as folhas de um atlas. Às vezes procurava na carta os lugares que o ladrão terrível percorrera. E o mapa crescia, povoava-se, riscava-se de estradas por onde rodavam caleças e diligências.
Conheci desse jeito várias cidades, vivi nelas, enquanto os pequenos em redor se esgoelavam, num barulho de feira. O rumor não me atingia. Em vão me falavam. Sacudido, sobressaltava-me, as idéias ausentes, como se me arrancassem do sono. Olhavam-me estupefatos, devagar me inteirava da realidade.
Governadores-gerais, holandeses e franceses começavam a importunar-me. Esquartejavam-se períodos, subdividiam-se e rotulavam-se as peças em medonha algazarra. Os meus novos amigos guardavam maquinalmente façanhas portuguesas, francesas e holandesas, regras de sintaxe — e brilhavam nas sabatinas. Segunda-feira estavam esquecidos, e no fim da semana precisavam repetir o exercício, decorar provisoriamente toda a matéria. À medida que avançavam, a tarefa se ia tornando mais penosa: ficavam apenas, algum tempo, as últimas lições.
Eu achava estupidez pretenderem obrigar-me a papaguear de oitiva. Desonestidade falar de semelhante maneira, fingindo sabedoria. Ainda que tivesse de cor um texto incompreensível, calava-me diante do professor — e a minha reputação era lastimosa.
(Graciliano Ramos. "Jerônimo Barreto" In: "Infância")
Vemos a riqueza de experiências proporcionada pela apresentação da literatura - através de empréstimos de livros pelo tabelião Jerônimo Barreto, figura que é descrita, pelas circunstâncias, como um indivíduo culto e afável - ao rapaz, que se tornaria um dos mais célebres escritores brasileiros do Século XX.
Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência. E Jovino Xavier [da escola] também se impacientou, porque às vezes eu revelava progresso considerável, outras vezes manifestava ignorância de selvagem. Os caixeiros do estabelecimento deixaram de afligir-me e, pelos modos, entraram a considerar-me um indivíduo esquisito.
Minha mãe, Jovino Xavier e os caixeiros evaporavam-se. A única pessoa real e próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos, me falava na poeira de Ajácio, no trono de S. Luís, em Robespierre, em Marat.
(Graciliano Ramos. "Jerônimo Barreto" In: "Infância")
4. Tonico Bastos, o tabelião de Jorge Amado
Finalmente, chegamos à mais iconoclasta das imagens de tabelião de nossa literatura a que tive acesso até escrever este artigo. Refiro-me ao personagem do tabelião Tonico Bastos do romance "Gabriela, Cravo Canela" de Jorge Amado, publicado em 1958, possuindo mais de 50 edições nas duas décadas seguintes.
Jorge Amado, tal qual José de Alencar, também era bacharel em Direito. Mas o ilustre romancista baiano, nascido em Itabuna e filho de um fazendeiro de Cacau, cursou Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Faculdade de Direito da UFRJ, concluindo o curso em 1935. Escreveu, portanto, sobre cartórios e tabeliães tendo conhecido o ordenamento jurídico que fundamentava sua existência.
Neste livro, Jorge Amado - à época recentemente desfiliado (em 1956) do Partido Comunista, pelo qual havia sido deputado federal entre 1946 e 1948, depois de quase 25 anos de atuação partidária - narra a história de Gabriela na Ilhéus dos anos 1920, em uma sociedade em transformação, com os coronéis já em decadência, como Ramiro Bastos, pai do tabelião Tonico Bastos.
Embora o notário não seja tão central na obra quanto outros personagens, possui papel relevante na narrativa, que é voltada para a relação de Nacib, o sírio dono do Bar Vesúvio, com Gabriela, uma retirante que surge na cidade e vai trabalhar em seu bar, e para a relação entre Mundinho Falcão, representando um empreendedor moderno, se opondo aos coronéis, especialmente a Ramiro Bastos. Em ambos enfoques, Tonico Bastos se faz notar, seja por ser filho de Ramiro Bastos ou pela sua relação de proximidade com Nacib e Gabriela, que se relaciona até com o desfecho da história.
Além disso, diferente das demais obras de literatura de que tratamos neste artigo, este romance de Jorge Amado já teve três adaptações para séries de TV (em 1960, 1975 e 2012) e uma adaptação para filme, em 1983, com diferentes atores interpretando o tabelião, como Paulo Autran, Fulvio Stefanini, Antonio Cantafora e, o mais recente, Marcelo Serrado. Isso o torna um dos tabeliães de nossa literatura mais populares.
Nacib havia chegado criança na Bahia: "sua terra era Ilhéus, a cidade alegre ante o mar, as roças de cacau, aquela zona ubérrima onde se fizera homem. Seu pai e seus tios, seguindo o exemplo dos Askar, vieram primeiro, deixando as famílias. Ele embarcara depois, com a mãe e a irmã mais velha, de seis anos, Nacib ainda não completara os quatro." Não possuía lembranças da Síria. Além disso, era um ilheense de direito, pois seu pai, Aziz, logo que os filhos chegam a Ilhéus, os leva ao cartório de registro civil "do velho Segismundo" para registrá-los brasileiros:
Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava, com a perfeita consciência do dever cumprido, por uns quantos mil-réis. Não tendo alma de explorador, cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não dos próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo-lhes boas e válidas certidões de nascimento.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Jorge Amado faz crítica social contundente à participação dos cartórios nas "lutas pela conquista da terra", que não diz respeito ao cartório de Tonico Bastos, mas merece maior atenção pela descrição de fatos que, infelizmente, não existiram apenas na ficção:
Acontece ter sido o antigo cartório incendiado, numa daquelas lutas pela conquista da terra, para que o fogo devorasse indiscretas medições e escrituras da mata do Sequeiro Grande - isso está até contado num livro. Não era culpa de ninguém, portanto, muito menos do velho Segismundo, se os livros de registro de nascimentos e óbitos, todos eles, tinham sido consumidos no incêndio, obrigando a novo registro centenas de ilheenses (naquele tempo Itabuna ainda era distrito do município de Ilhéus). Livros de registros não existiam, mas existiam idôneas testemunhas a afirmar que o pequeno Nacib e a tímida Salma, filhos de Aziz e de Zoraia, haviam nascido no arraial de Ferradas e tinham sido anteriormente registrados no cartório, antes do incêndio. Como poderia Segismundo, sem cometer grave descortesia, duvidar da palavra do coronel José Antunes, rico fazendeiro, ou do comerciante Fadel, estabelecido com loja de fazendas, gozando de crédito na praça? Ou mesmo da palavra mais modesta do sacristão Bonifácio, pronto sempre a aumentar seu parco salário servindo em casos assim como fidedigna testemunha?
(...) O velho Segismundo morrera cercado da estima geral e ainda hoje seu enterro é recordado. Toda a população comparecera, de há muito ele não tinha inimigos, nem mesmo os que lhe haviam incendiado o cartório.
No seu túmulo falaram oradores, celebraram suas virtudes. Fora afirmaram - um servidor admirável da justiça, exemplo para as gerações futuras.
Registrava ele facilmente como nascidos no município de Ilhéus, estado da Bahia, Brasil, a quanta criança lhe chegasse, sem maiores investigações, mesmo quando parecia evidente ter-se dado o nascimento bem depois do incêndio. Não era cético nem formalista nem o podia ser no Ilhéus dos começos do cacau. Campeava o caxixe, a falsificação de escrituras e medições de terras, as hipotecas inventadas, os cartórios e tabeliães eram peças importantes na luta pelo desbravamento e plantio das matas, como distinguir um documento falso de um verdadeiro? Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exata do nascimento de uma criança, quando se vivia perigosamente em meio aos tiroteios, aos bandos de jagunços armados, às tocaias mortais? A vida era bela e variada, como iria o velho Segismundo esmiuçar sobrenomes de localidades? Que importava em realidade onde nascera o brasileiro a registrar, aldeia Síria ou Ferradas, sul da Itália ou Pirangi, Trás-os-Montes ou Rio do Braço? O velho Segismundo já tinha demasiadas complicações com os documentos de posse da terra, por que havia de dificultar a vida de honrados cidadãos que desejavam apenas cumprir a lei, registrando os filhos? Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idôneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais que qualquer documento legal.
E, se alguma dúvida perdurava-lhe no espírito por acaso, não era o pagamento mais elevado do registro e da certidão, o corte de fazenda para sua esposa, a galinha ou o peru para o quintal, que o punham em paz com sua consciência. Era que ele, como a maioria da população, não media pelo nascimento o verdadeiro grapiúna, e, sim, pelo seu trabalho em benefício da terra, pela sua coragem de entrar na selva e afrontar a morte, pelos pés de cacau plantados ou pelo número de portas das lojas e armazéns, pela sua contribuição ao desenvolvimento da zona. Essa era a mentalidade de Ilhéus, era também a do velho Segismundo, homem de larga experiência da vida, de ampla compreensão humana e de poucos escrúpulos. Experiência e compreensão colocadas a serviço da região cacaueira.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Jorge Amado acaba por analisar um fenômeno jurídico, político, social e econômico que perpassa a história de nosso país. Com a sensibilidade de um escritor, de um intelectual, que, sem abrir mão da crítica, não faz um julgamento moral oco, à medida que busca ser parentético, abrindo parênteses na situação para observá-la de fora e compreendê-la melhor, inclusive com o seu conhecimento jurídico de bacharel em Direito. É isso que faz ao discutir as motivações do tabelião Segismundo para sua ausência de escrúpulos, parte de um contexto político, social e econômico mais amplo:
Quanto aos escrúpulos, não foram com eles que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores, com sangue e coragem. Uma vez Segismundo lembrara-se de seus escrúpulos. Tratava se da medição da mata de Sequeiro Grande e lhe ofereciam pouco para o vulto do caxixe: cresceram-lhe subitamente os escrúpulos. Em vista disso queimaram-lhe o cartório e meteram-lhe uma bala na perna. A bala, por engano, isto é: por engano na perna pois destinava-se ela ao peito de Segismundo. Desde então ficou ele menos escrupuloso e mais barateiro, mais grapiúna ainda, graças a Deus. Por isso, quando morreu octogenário, seu enterro transformou-se em verdadeira manifestação de homenagem a quem fora, naquelas paragens, exemplo de civismo e devoção à justiça.
Por essa mão veneranda fizera-se Nacib brasileiro nato em certa tarde distante de sua primeira infância, vestido com verde bombacho de veludo francês.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Quando se refere ao tabelião Tonico Bastos, Jorge Amado já se preocupa sobretudo em construir um personagem. Acaba por construir uma das mais vibrantes imagens de tabelião da nossa literatura, imortalizada no imaginário social através das interpretações de atores nas adaptações desse romance para TV e cinema.
Mas imagem que destoa das anteriores, dos tabeliães de José de Alencar em "O Garatuja", de Machado de Assis em "O Empréstimo", de Graciliano Ramos em "Jerônimo Barreto". Todos eles apresentados como virtuosos, honestos, sérios, decentes. Nenhum desses adjetivos podendo ser atribuídos a Tonico Bastos, chamado de "simpático vilão" por Jorge Amado, que antes o descrevera ao lado de Nacib pelos bordéus de Ilhéus, o homem elegante da cidade, com seus cabelos de fios prateados, cuja fama de irresistível era sua razão de viver e de simpatia indiscutível, embora variassem as opiniões a seu respeito.
Tonico Bastos, o homem, por excelência, elegante da cidade, olheiras negras e romântica cabeleira de fios prateados, o paletó azul e a calça branca, os sapatos brilhando de lustro, um verdadeiro dândi, entrava no bar com seu passo despreocupado quando vinham de pronunciar seu nome. Fez-se um silêncio incômodo na roda, ele perguntou suspeitoso:
- De que falavam? Ouvi meu nome.
- De mulheres, de que havia de ser? - disse João Fulgêncio. - E, falando-se de mulheres, seu nome veio à baila. Como não podia deixar de acontecer...
Abriu-se o rosto de Tonico num sorriso, puxou uma cadeira, aquela fama de conquistador, de irresistível, era sua razão de viver. Enquanto o irmão Alfredo, médico e deputado, examinava crianças em seu consultório, em Ilhéus, fazia discursos na Câmara, na Bahia, ele trocava pernas pelas ruas, metendo-se com raparigas, corneando os fazendeiros nos leitos das concubinas. Mulher nova desembarcada na cidade, sendo bonita, logo encontrava Tonico Bastos rodando em torno de sua saia, dizendo-lhe galanteios, gentil e ousado. A verdade é que tinha sucesso, e multiplicava esse sucesso nas conversas sobre mulheres. Era amigo de Nacib e vinha, em geral, na hora da sesta, quando o bar cochilava vazio, espantar o árabe com suas histórias, suas conquistas, a ciumeira, das mulheres por sua causa. Não havia em Ilhéus pessoa a quem Nacib tanto admirasse.
As opiniões variavam sobre Tonico Bastos. Uns o consideravam bom rapaz, um pouco interesseiro e um pouco gabola, mas de agradável conversa e, no fundo, inofensivo. Outros achavam-no burro e cheio de si, incapaz e covarde, preguiçoso e suficiente. Mas sua simpatia era indiscutível: aquele sorriso de homem satisfeito com a vida, a conversa cativante. O próprio Capitão o dizia, quando falavam a seu respeito:
- É um canalha simpático, um irresistível mau-caráter.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Informação interessante é a de que Tonico não era formado em Direito. Aliás, nem era formado. Havia estudado Engenharia e não concluído. Seu pai, o Coronel Ramiro Bastos, lhe arranjou o cartório e o fez casar com Dona Olga, de quem o tabelião tinha medo, mas a quem traía com contumácia.
Não conseguira Tonico Bastos passar do terceiro ano de engenharia, nos sete levados a cursar a faculdade, no Rio, para onde o enviara o coronel Ramiro, farto dos seus escândalos na Bahia. Cansado de lhe remeter dinheiro, desiludido de ver aquele filho formado, exercendo a profissão com capricho, como Alfredo, o coronel fê-lo voltar a Ilhéus, arranjou-lhe o melhor cartório da cidade e a noiva mais rica.
Rica, filha única de viúva, órfã de um fazendeiro que deixara a pele no fim das lutas, dona Olga era sobretudo incômoda. Não herdara Tonico a coragem do pai, por mais de uma vez haviam-no visto empalidecer e gaguejar quando envolvido em complicações nas ruas de mulheres, mas nem mesmo isso podia explicar o medo que tinha da esposa. Medo, sem dúvida, de um escândalo a prejudicar o velho Ramiro, homem conceituado e respeitado. Pois dona Olga vivia ameaçando com escândalos, era uma boca de trapo, na sua opinião todas as mulheres andavam atrás de Tonico. A vizinhança ouvia diariamente as ameaças da gorda senhora, os sermões ao marido:
- Se um dia eu souber que você anda metido com mulher!...
Em sua casa não parava empregada: dona Olga suspeitava de todas, despedia-as ao menor pretexto, andavam certamente cobiçando seu belo esposo. Olhava com desconfiança as moças do colégio das freiras, as senhoras nos bailes do Clube Progresso, seu ciúme tornara-se lendário em Ilhéus. Seu ciúme e sua má-educação, seus modos brutos, suas gafes colossais.
Não que tivesse conhecimento das aventuras de Tonico, que suspeitasse estar ele em casa de mulheres quando saía à noite para tratar de política, como lhe explicava. O mundo viria abaixo se soubesse. Mas Tonico tinha lábia, encontrava sempre maneira de enganá-la, de acalmar seu ciúme. Não havia homem mais circunspecto do que ele, quando, após o jantar, dava uma volta com a esposa na avenida da praia, tomava um sorvete no Bar Vesúvio, ou a levava ao cinema.
(...) Era outro homem minutos depois, após conduzi-la de volta à casa da rua dos Paralelepípedos, onde também ficava o cartório, quando saía para conversar com os amigos e fazer política. Ia dançar nos cabarés, cear em casas de mulheres, muito requestado; por ele se engalfinhavam raparigas, trocavam insultos, chegavam a agarrar-se pelos cabelos.
- Um dia a casa cai... - comentavam. - Dona Olga sabe, vai ser um fim de mundo.
Várias vezes estivera para acontecer. Mas Tonico Bastos envolvia a esposa numa rede de mentiras, aplacava-lhe as suspeitas. Não era barato o preço a pagar pela posição de homem irresistível, de conquistador número um da cidade.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Tal fama de conquistador, rende uma passagem, no romance, que ocorre dentro se seu cartório, quando um coronel procura por ele para lhe advertir que não se envolva com sua concubina, o ameaçando veladamente.
Havia um silêncio aflito no cartório. Tonico, gaguejou:
- Mas, coronel...
Coriolano continuava, sem alterar a voz, brincando com o rebenque:
- Vosmicê é moço bonito e lorde, tem muita mulher, é o que não lhe falta. Eu tou gasto e velho, minha mulher verdadeira já macheou, coitada dela!, só tenho mesmo a Glória. Gosto dessa moça e quero ela só pra mim. Esse negócio de pagar mulher pros outros nunca foi de minha devoção.
Sorriu para Tonico Bastos:
- Sou seu amigo e por isso tou lhe avisando: deixe de andar por aquelas bandas.
O tabelião estava pálido, o silêncio era tumular no cartório. Os presentes entreolhavam-se, Manuel das Onças, que fora lavrar uma escritura, afirmava depois ter sentido no ar cheiro de defunto e ele possuía bom olfato para esse odor, responsável por uns quantos cadáveres nos tempos dos barulhos. Tonico começou a explicar-se: eram calúnias, miseráveis calúnias de seus inimigos e dos inimigos de Coriolano. Ele apenas
aparecera em casa de Glória para oferecer seus préstimos à protegida do coronel, diariamente desfeiteada por todos. Essa mesma gente que criticava Coriolano por tê-la hospedado na praça São Sebastião, numa casa onde residira sua família, gente que virava a cara para a moça, que cuspia à sua passagem, era essa mesma gente que agora fazia intriga. Ele só tinha querido demonstrar publicamente sua estima e solidariedade ao coronel. Nada tivera com a rapariga, nem mesmo intenção. Língua de mel, esse Tonico.
- Que vosmicê não teve nada eu sei. Se tivesse tido, eu não tava aqui pra conversar, a conversa era outra. Mas se teve intenção, aí eu já não boto minha mão no fogo. Mas intenção não tira pedaço nem põe chifre em ninguém... O melhor é vosmicê fazer como os outros: virar a cara para ela. É assim mesmo que eu gosto. E, agora que vosmicê já está avisado, não vamos falar mais nisso.
Imediatamente começou a falar de negócios, como se nada houvesse dito, entrou pela casa adentro, foi dar bom dia a dona Olga, beliscar as faces das crianças. Tonico Bastos deixou até de passar na calçada de Glória, desde então ela viveu ainda mais melancólica e solitária. A cidade glosara o assunto: a cama caiu antes dele se deitar, diziam, e caiu fazendo barulho, acrescentavam, uma gente sem dó nem piedade essa de Ilhéus.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Outra passagem de relevo é aquela em que Tonico Bastos convence Nacib a se casar com Gabriela e, ciente de que a moça não possuía documentos, se presta a conseguir documentação falsa.
- Ela não tem papéis, tive sondando. Nem registro de nascimento, nem sabe quando nasceu. Nem sobrenome de pai. Morreram quando ela era pequena, não sabe nada. Seu tio era Silva, mas era irmão da mãe. Não sabe idade, não sabe nada. Como fazer?
Tonico aproximou a cabeça:
- Sou seu amigo, Nacib. Vou lhe ajudar. Pelos papéis, não se preocupe. Arranjo tudo no cartório. Certidão de nascimento, nome inventado pra ela, pro pai e pra mãe. Só tem uma coisa: quero ser o padrinho do casório...
- Já está convidado... - e de repente Nacib viu-se liberto, toda sua alegria voltava, sentia o calor do sol, a doce brisa do mar.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
O casamento ocorre, mas o padrinho Tonico Bastos não resiste a buscar com a própria afilhada de casamento ter uma relação extraconjugal. E, assim, a história chega a um final surpreendente, quando Nacib flagra o tabelião com Gabriela. Na passagem, chama a atenção a naturalização que a sociedade dava ao feminicídio e à tese da defesa da honra por parte do assassino. Apesar se agredir Gabriela, o que também hoje é inadmissível, Nacib não a mata, mas, através de sua pena, Jorge Amado aborda a temática, jogando uma luz para tal exemplificação de violência contra a mulher, entre várias outras presentes em sua obra, denunciando tais práticas comuns naquele tempo.
Nua, estendida na cama de casal, Gabriela a sorrir. Nu, sentado à beira do leito, Tonico, os olhos espessos de desejo. Por que não os matara Nacib? Não era a lei, a antiga lei cruel e indiscutida? Escrupulosamente cumprida sempre que se apresentava ocasião e necessidade? Honra de marido enganado lava-se com o sangue dos culpados. Não fazia ainda um ano que o coronel Jesuíno Mendonça a pusera em execução... Por que não os matara? Não pensara fazê-lo, à noite, na cama, quando sentia a anca em fogo de Gabriela a queimar-lhe a perna? Não jurara fazê-lo? Por que não o fizera? Não trazia o revólver na cinta, não o tomara da gaveta do balcão? Não desejava poder olhar de cabeça erguida seus amigos de Ilhéus? Não o fizera, no entanto.
Engano, se pensaram ser covardia. Não era covarde, várias vezes provara. Engano, se pensaram não ter dado tempo. Tonico saíra correndo para o quintal, pulara o muro baixo, enfiara as calças sem cuecas pelo corredor de dona Arminda escandalizada, depois de ter balbuciado a gaguejar:
- Não me mate, Nacib! Estava só dando uns conselhos...
Nacib nem se lembrou do revólver, estendeu a mão pesada e ofendida, Tonico rolou da borda do leito, para logo pôr-se de pé num salto, arrebanhar suas coisas de uma cadeira e sumir. Tempo de sobra para atirar e não havia perigo de erro. Por que não o fizera? (...)
(...) Sentia doer o coração como se alguém lhe enfiasse devagar um punhal. Não sentia ódio nem amor. Uma dor tão somente.
Não matara porque não era de sua natureza matar. Todas aquelas histórias terríveis da Síria, que ele contava, eram da boca para fora. Com raiva, podia bater. E batia sem dó, como se cobrasse uma dívida, uma conta atrasada. Matar não podia.
Obedeceu silencioso, quando João Fulgêncio chegou, segurou-lhe o braço e lhe disse:
- Basta, Nacib. Venha comigo.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
João Fulgêncio, diante de Nacib transtornado com a desmoralização que dizia temer na cidade, sugeriu ao sírio que o casamento celebrado com documentos falsos seria nulo e anulável. Como em um livro de doutrina de Direito Civil, Jorge Amado explica ao leitor porque de tal instituto, enquanto João Fulgêncio explicava a Nacib.
- Seu casamento é nulo e anulável, Nacib. Basta você querer e não só deixa de ser casado, é como se nunca tivesse sido. Como se tivesse sido só amigado.
- Como é isso, explique direito - interessou-se o árabe.
- Escute - leu: - Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge o que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado. Eu me lembro que quando você me anunciou o casamento, contou que ela nem sabia o nome de família, nem data de nascimento...
- Nada. Não sabia nada...
- E Tonico se ofereceu para arranjar os papéis necessários.
- Fabricou tudo no cartório dele.
- E então? Seu casamento é nulo, houve erro essencial de pessoa. (...) É só você provar que os documentos eram falsos e já não está mais casado. Nem nunca foi casado. Não passou de amigação.
- E como vou provar?
- É preciso falar com Tonico, com o juiz.
- Nunca mais vou falar com esse tipo.
- Quer que eu me ocupe disso? De falar, quero dizer. Da parte jurídica, Ezequiel pode se ocupar, se você quiser. Até se ofereceu.
- Ele já sabe?
- Não se preocupe com isso. Quer que eu trate do caso?
- Não sei como lhe agradecer.
- Então, até logo. Fique aqui mesmo, leia um livro - bateu no ombro do árabe. - Ou chore, se tiver vontade. Não é vergonha nenhuma.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo Canela")
Não foi tão fácil assim para João Fulgêncio. O advogado Ezequiel queria que Tonico Bastos fosse demitido como falsário ("quero é botar esse sujeito na cadeia. Vou fazer ele ser demitido como falsário. Ele, o irmão e o pai andaram dizendo horrores de mim. Vai ter de sair de Ilhéus. Vai ser um escândalo..."). Depois, Ezequiel aceitando Nacib como seu constituinte, no cartório de Tonico Bastos, foi o tabelião quem se opôs a acordo, logo convencido por Ezequiel e João Fulgêncio e topando ir com eles ao juiz. Posteriormente, vemos a submissão de Gabriela na estrutura patriarcal, quando em nada se opõe ao processo de anulação do casamento e sequer reclama das agressões físicas sofridas por parte de Nacib. Ao relatar tal reação, Jorge Amado mais uma vez termina por denunciar tal estrutura da sociedade brasileira do início do Século XX.
Não era caso, dizia, de anulação. Os documentos, mesmo falsos, tinham sido aceitos como verdadeiros. Nacib estava casado há uns cinco meses sem reclamar. E como iria ele, Tonico, confessar de público ter falsificado papéis? Não se estava mais no tempo do velho Segismundo que vendia certidões de nascimento e escrituras de terras. Ezequiel suspendeu os ombros, exclamou para João Fulgêncio:
- Não lhe disse?
- Tonico, isso pode se arranjar - falou João Fulgêncio. - Vamos conversar com o juiz. Encontra-se um caminho para contornar a situação, para que a falsificação de papéis não venha a público. Ou, pelo menos, para você não aparecer como culpado. Pode-se dizer que você agiu de boa fé, que foi enganado por Gabriela. Inventa-se uma história qualquer. Afinal, isso, que se chama de civilização ilheense, foi construído a base de documentos falsos.
Mas Tonico ainda resistia. Não desejava seu nome misturado naquilo.
- Misturado você está, meu caro - disse Ezequiel. - Enterrado de cabeça. De duas uma: ou você concorda, vai conosco ao juiz para arranjarmos tudo amigável e rapidamente, ou hoje mesmo inicio o processo, em nome de Nacib. De anulação de casamento. Por erro essencial de pessoa, devido a documentos forjados por você. Forjados para casar sua amante, de quem continuou a gozar dos favores depois, com um homem bom e ingênuo de quem você se dizia amigo. Você entra no caso por duas portas: a da falsificação e a do adultério. E, em ambas, com premeditação. É um caso bonito.
Tonico quase perdia a fala:
- Ezequiel, por favor, quer me desgraçar?
João Fulgêncio completava:
- Que dirá dona Olga? E seu pai, o coronel Ramiro? Você já pensou? Ele não resistirá ao escândalo, morrerá de vergonha, você será o culpado. Estou lhe avisando porque não quero que aconteça.
- Por que me meti nisso, meu Deus? Só arranjei os papéis para ajudar. Ainda não tinha nada com ela...
- Venha conosco ao juiz, é melhor para todo mundo. Senão, quero lhe avisar lealmente, a história sai todinha amanhã no Diário de Ilhéus. Escrita por mim para você não aparecer como galã. Por mim, João Fulgêncio...
- Mas, João, sempre fomos amigos...
- Eu sei. Mas você abusou de Nacib. Se fosse com a mulher de outro, não me importava. Sou amigo dele e também de Gabriela. Você abusou dos dois. Ou você concorda, ou vou lhe cobrir de vergonha, botá-lo no ridículo. Com a situação política como está, você nem poderá continuar em Ilhéus.
Toda a empáfia de Tonico vinha abaixo. O escândalo o horrorizava. Medo de dona Olga saber, do pai tomar conhecimento. O melhor era mesmo engolir a pílula, ir ao juiz, contar a falsificação dos papéis.
- Faço o que quiserem. Mas, pelo amor de Deus, vamos arranjar essa história dos papéis da melhor maneira possível. Afinal, somos amigos.
O juiz divertiu-se imensamente com tudo aquilo:
- Então, seu Tonico, tão amigo do árabe e, por detrás, a botar-lhe os cornos? Eu também andei interessado por ela, mas, depois que casou, nem pensei mais. Mulher casada, eu respeito.
No fundo, como se passava com Ezequiel, era um pouco a contragosto que concordava em conceder a anulação discretamente, sem processar Tonico, deixando-o como funcionário honesto e de boa fé, enganado por Gabriela, aparecendo como vítima. Não simpatizava com ele, desconfiado de haver-lhe o galante tabelião ornamentado também a cabeça, nos tempos de Prudência, quase dois anos manceba do magistrado. Em compensação gostava de Nacib, e queria ajudá-lo. Quando estavam saindo, o juiz indagou:
- E ela? Que irá fazer, hein? Agora está livre e sem compromisso. Se eu não estivesse tão bem servido. Aliás, ela deve vir me falar. Agora tudo depende dela. Porque, se ela não concordar.
João Fulgêncio, antes de voltar para casa, foi procurar Gabriela. Dona Arminda a recolhera. Ela concordava com tudo, nada queria, sem se queixar sequer das pancadas, elogiando Nacib:
- Seu Nacib é tão bom... Eu não queria ofender seu Nacib.
Foi assim que, com um processo de anulação de casamento cujos trâmites correram velozes da petição inicial à sentença, em pouquíssimo tempo, o árabe Nacib encontrou-se novamente solteiro, tendo sido casado sem o ser realmente, tendo pertencido à Confraria de São Cornélio sem realmente a ela pertencer, ludibriada a benemérita sociedade dos maridos conformados. Foi assim que a senhora Saad voltou a ser Gabriela.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
Finalmente, Jorge Amado, ainda traz no romance o tabelião após o ocorrido. Andando por Ilhéus discretamente, com a esposa, desejoso que a cidade esquecesse o que se passou, que lhe rendeu ridicularização pública na cidade, sendo chamado de Tonico Penico.
Tonico andava pela Bahia com a esposa, a passeio. Esperando que a cidade esquecesse por completo sua triste aventura. Não queria envolver-se na campanha eleitoral. Os adversários podiam explorar seu caso com Nacib. Não haviam pregado na parede de sua casa um desenho a lápis de cor, onde ele era visto correndo em cuecas - infâmia, saíra de calças! -, a gritar socorro? Com versos sujos, de pé-quebrado, embaixo:
O Tônico Penico
dom Juan de puteiro
se fudeu por inteiro.
- Tu és bem casada?
- Eu sou é amigada.
E levou bofetada
o Tonico Penico.
(Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela")
E assim, vemos a variedade que, na Literatura Brasileira, vai tendo a imagem dos tabeliães, da pessoa cheia de predicados do personagem de Sebastião Freire Ferreira de José de Alencar ao sujeito dissoluto do personagem de Tonico Bastos de Jorge Amado, passando pelo simpático Jerônimo Barreto da infância de Graciliano Ramos e pelo honesto Vaz Nunes de Machado de Assis, um dos homens mais perspicazes do século.
Perspicazes, aliás, pareceram todos eles, sempre apresentados com agudeza de espírito, grande capacidade de observação, talento e habilidade no trato, qualidades sem dúvida indispensáveis às funções de um tabelião até os dias de hoje, em que merecem novas imagens surgidas na literatura contemporânea.
Notas
-
Segundo o biógrafo, “Leonardo da Vinci teve a boa sorte de nascer fora do casamento. Caso contrário, provavelmente teria se tornado tabelião (...). Como a guilda de tabeliães de Florença barrava os ‘non legittimo’, Leonardo pôde se beneficiar do instinto de fazer anotações entranhado em sua herança familiar ao mesmo tempo que desfrutava de liberdade para correr atrás das próprias paixões criativas. Isso foi um golpe de sorte. Leonardo teria sido um péssimo tabelião.” (ISAACSON, W. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017) O autor explica que, “com o crescimento da economia mercantil italiana, os tabeliães cumpriam um importante papel ao legitimar acordos comerciais, vendas de terras, testamentos e elaborar outros documentos jurídicos em latim, frequentemente enfeitando o texto com referências históricas e floreios literários.” (op.cit.) E, sobre a mãe de Leonardo da Vinci, diz que “a mãe de Leonardo não foi considerada digna de ser mencionada no registro feito por Antonio [avô de Leonardo da Vinci] nem em nenhuma certidão de nascimento ou batismo. Em um documento fiscal emitido cinco anos depois, há apenas o seu primeiro nome: Caterina. Por muito tempo sua identidade foi um mistério para os especialistas modernos. Acreditava-se que ela tivesse vinte e poucos anos, e alguns pesquisadores chegaram a especular que seria uma escrava árabe ou, talvez, chinesa. Na verdade, ela era uma menina pobre e órfã de dezesseis anos chamada Caterina Lippi, que morava na região de Vinci.” (op.cit.) Sobre a relação entre a profissão de seu pai e o fato de Leonardo da Vinci não ter sido reconhecido, diz Isaacson que “teria sido muito fácil para um tabelião tão bem relacionado encaminhar o processo de legitimação de Leonardo. Isso poderia ter sido feito pela apresentação do pai e seu filho a um oficial local conhecido como ‘conde palatino’, em geral um dignitário a quem se tinha dado poderes para arbitrar nesse tipo de caso, e apresentar uma petição (...). [Mas] a guilda dos tabeliães tinha uma regra, provavelmente difícil de ser contornada, que negava a filiação mesmo a filhos nascidos fora do casamento que tivessem sido legitimados. Assim, Piero aparentemente não viu nenhum motivo para enfrentar o processo.” (op.cit.) Sequer herança foi deixada ao artista: “Ele trouxera Leonardo para este mundo como ‘illegitimo’, não o legitimou na infância e, na morte, o deslegitimou mais uma vez [ao não incluí-lo em testamento]” (op.cit.). Sobre algumas características do artista e a relação com sua ascendência paterna, diz Isaacson que “por ser descendente de uma longa linhagem de tabeliães, Leonardo da Vinci tinha talento inato para manter registros. Rascunhar observações, listas, ideias e desenhos foi algo que aflorou naturalmente. (...) Nas raras ocasiões em que registrava um evento familiar nos cadernos, Leonardo às vezes exibia um tique de tabelião ao repetir a data. Foi assim que anotou a chegada da mãe, Caterina — então uma viúva de cerca de sessenta anos —, para morar com ele em Milão” (op.cit.). São, de fato, informações muito interessantes acerca da relação de Leonardo da Vinci com seu pai tabelião, que li com especial atenção.
Soube que Voltaire, esse grande defensor da liberdade de crença e consciência, inclusive um anticlerical, era também filho de tabelião através de Roger Bastide, na introdução escrita por este sociólogo para o volume de contos e novelas de Voltaire publicada no Brasil pela Globo Livros com tradução de Mário Quintana.
A respeito de “O Garatuja” e do personagem Ivo do Val, vale a leitura do ensaio crítico “DE COMO UM ARTISTA BASTARDO ENTRA NA CASA DA LEI E SE TRANSFORMA EM VERME DE CARTÓRIO” de Maria Cristina Franco Ferraz, publicado na edição da obra pela Biblioteca Carioca da Prefeitura do Rio de Janeiro.