1. Introdução.
A década de 60 do século XX, representou um dos grandes momentos de transformação da sociedade contemporânea. Nesse sentido, o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, possibilitou que o modelo de capitalismo americano, focado no consumo em larga escala, se espalhasse por praticamente todo o globo. Contudo, não somente no âmbito internacional, porém, igualmente, na esfera doméstica dos EUA, as mudanças exigidas pela sociedade, moldada pelo pós-guerra, pressionavam o mundo político a adotar medidas de maior proteção social, em diversos aspectos.
Nesse contexto, em particular, a noção de que determinados grupos sociais seriam mais vulneráveis passa a possuir reais efeitos jurídicos no contexto americano, com o julgamento pela Suprema Corte dos EUA do celebrado caso Brown v. Board of Education (1954), que proibiu a segregação racial em escolas públicas, impactando principalmente os estados sulistas.
Diante desse cenário, a eleição do presidente John F. Kennedy, em 1960, impulsionou a representação política de grupos minoritários e vulneráveis. Assim, em 1962, Kennedy realizou um discurso histórico, no qual ressaltou a importância da proteção ao consumidor, como um grupo carente de especial atenção e cuidado. Por certo, com todo o movimento por direitos civis nos EUA, os consumidores foram gradualmente recebendo maior e melhor proteção estatal.
Desse modo, no século XXI, como o fim da Guerra Fria e o desenvolvimento de blocos econômicos e acordos comerciais transnacionais, o direito consumerista passa a ganhar uma relevância singular, mesmo em nações emergentes, como o Brasil. De fato, o advento da Constituição Federal de 1988 estabeleceu um marco quanto ao reconhecimento de grupos sociais mais vulneráveis e, por isso, carentes de uma tutela jurídica especial. Especificamente, quanto ao âmbito do consumidor, a Constituição Cidadã assegurou a sua proteção, de modo expresso, em seus arts. 5º, XXXII, e 170, V.
Todavia, dentre a ampla esfera de indivíduos que podem ser qualificados como consumidores, alguns segmentos específicos são mais vulneráveis, como por exemplo, idosos, crianças, adolescentes, pessoas de menor renda. Assim, especialmente, quanto ao público infanto-juvenil, cabe observar importante cautela, visto que, nesse faixa etária, a capacidade de discernimento e julgamento da informação recebida tende a ser menor, ocasionando a fácil manipulação por meio da publicidade.
Por conseguinte, o objetivo principal não está em diminuir a relevância da criança no campo das relações de consumo, porém sim propiciar um ambiente saudável e seguro, no qual o desenvolvimento intelectual, psíquico, emocional do ser humano possa ocorrer plenamente.
Nesse cenário, a decisão proferida no Recurso Especial 1.613.561-SP reforça a jurisprudência do STJ, quanto à proteção do público infantil, em face de publicidade potencialmente danosa e que oportuniza situação de marketing abusivo. Tal decisão seguiu o entendimento já proferido no Recurso Especial 1.558.086-SP, que foi um marco no direito consumerista.
2. Contexto do Caso.
Durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro em 2007, uma empresa de produtos embutidos realizou propaganda incentivando as crianças a colecionar bonecos das mascotes da competição esportiva. Dessa forma, para a aquisição dos bonecos seria necessário juntar selos anexados aos produtos da fornecedora, assim como, pagar a quantia de R$ 3,00 reais ao final.
3. Entendimento do Tribunal de Origem.
Inicialmente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) considerou não haver ilegalidade na conduta da empresa fornecedora. Em primeiro lugar, a Corte ressaltou que os alimentos não eram diretamente adquiridos por menores de idade, contudo, a decisão de compra caberia a seus pais ou responsáveis. Diante disso, a Corte assentou: “Enfraquecido, então, o argumento de que a publicidade em foco aproveita-se ‘da deficiência de julgamento e experiência da criança’ (art. 37, §2º, do CDC)”.
De forma semelhante, os magistrados entenderam que não se poderia classificar os alimentos distribuídos pela empresa ré como patológicos, porquanto, em um mundo cada vez mais industrializado, seria inevitável o consumo de embutidos, sendo assim, considerado fato normal da vida urbana.
4. Posição do Superior Tribunal de Justiça.
O Min. Herman Benjamin, relator do caso, que foi acompanhado por todos os demais integrantes da Turma, afirmou a existência de violação ao art. 37, §2º, do CDC. Portanto, como argumento inicial, o magistrado enfatizou que a decisão sobre a aquisição ou não de um produto cabe aos pais ou responsáveis, especialmente em tempos de altos índices de obesidade infantil.
Similarmente, o magistrado destacou a vedação do art. 37, §2º, CDC, a marketing que utilize ou manipule a mentalidade infantil. Diante disso, acrescentou-se que, segundo o art. 104 do Código Civil, a validade de um contrato de consumo depende de um sujeito capaz. Assim, se uma criança não possui poder de consentimento, seria incondizente que ela fosse a destinatária final da publicidade. Nesse contexto, faz-se oportuno transcrever trecho do voto do relator:
“ Na ótica do Direito do Consumidor, publicidade é oferta e, como tal, ato precursor da celebração de contrato de consumo, negócio jurídico cuja validade depende da existência de sujeito capaz (art. 104, do Código Civil). Em outras palavras, se criança, no mercado de consumo, não exerce atos jurídicos em seu nome e por vontade própria, por lhe faltar poder de consentimento, tampouco deve ser destinatária de publicidade que, fazendo tábula rasa da realidade notória, a incita a agir como se plenamente capaz fosse”.
De igual modo, a Min. Assusete Magalhães registrou seu voto, destacando que a propaganda exibida incentiva o público infanto-juvenil a adquirir os produtos embutidos, havendo assim um foco nesse segmento.
Por derradeiro, o recurso interposto pelo PROCON-SP foi provido a fim de condenar a empresa ré, em razão da ofensa ao art. 37, §2º, CDC, por publicidade abusiva, ao se valer da vulnerabilidade de discernimento de menores de idade.
5. Reflexão.
Nos séculos XV e XVI, com a primeira grande expansão do comércio ocidental, pouco se debatia sobre os consumidores finais dos produtos comercializados. O mercantilismo, então, fazia-se o modelo econômico hegemônico, impulsionado pelas grandes navegações portuguesas e espanholas. Contudo, a figura do destinatário final dos produtos era praticamente ignorada no desenrolar da organização social.
Especialmente, na vigência de regimes coloniais nas Américas, a extração de matéria-prima ganha a primazia da organização sociopolítica do comércio, havendo pouquíssima regulação sobre a atividade mercantil. Essa excessiva liberdade colocava os fornecedores em uma posição altamente privilegiada, em detrimento dos compradores.
Essa realidade ainda permaneceu evidente mesmo com a especialização de determinados segmentos e a formação dos primeiros grupos econômicos de relevância transfronteiriça, como a Companhia de Comércio das índias Ocidentais, oriunda da parceria de mercadores holandeses.
Nesse cenário, principalmente na Europa Ocidental, a formação dos Estados nacionais absolutistas contribuiu, de forma significativa, para o fortalecimento das grandes companhias comerciais. Assim, nasce a gênese do Estado Liberal, que possui por objetivo primordial assegurar um espaço privado, particular, livre da interferência estatal. O lema, em tal período, foi a máxima francesa: “Laissez faire, laissez passer”, que significa “deixe fazer, deixe passar”. Logo, o advento da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, possibilitou o fomento ao liberalismo, em larga escala, em variadas nações europeias.
Em consequência, os movimentos trabalhistas gradativamente ganharam força, reivindicando condições de trabalho mais dignas, como redução das jornadas, remunerações suficientes ao sustento da família, proibição do trabalho infantil. Diante disso, o desenvolvimento da luta dos trabalhadores industriais ocasionou perceptíveis mudanças na estrutura jurídico-social.
Portanto, logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), surge o chamado Estado Social, focado na proeminência do papel do Estado nas relações interpessoais, formando na sociedade uma expansiva corporação estatal. No entanto, a ascensão de regimes políticos totalitários, nesse período, especialmente na Itália e Alemanha, levou à ocorrência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Em seguida, após 1945, nasce o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), com o intuito de realizar compensações sociais para amenizar as desigualdades sociais decorrentes da guerra. Diante disso, os serviços públicos são ampliados e democratizados; similarmente, passa-se a garantir um sistema de direitos sociais bastante significativo para grupos minoritários. Nesse cenário, o Presidente americano John F. Kennedy realiza seu célebre discurso sobre a importância da proteção ao consumidor.
Entretanto, a partir da década de 80 do século XX, o Welfare State começa a se enfraquecer, com o aumento dos custos dos serviços sociais e a ampliação do comércio global, principalmente durante os governos do americano Ronald Reagan e da britânica Margaret Thatcher. Nesse sentido, com a queda do Muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991), nasceu um novo modelo sociopolítico, conhecido como Estado Democrático de Direito, o qual reuniu características diversas dos outros paradigmas, como a primazia da dignidade da pessoa humana, a liberdade política, econômica e de expressão, a redução de desigualdades sociais. Assim, corretamente observou Luiz Otávio de Oliveira Amaral:
“De efeito, a concorrência individual do liberalismo clássico vem cedendo espaço para formas mais equânimes da colaboração social. Daí a exigência de um verdadeiro sistema jurídico (e não uma variedade de providências desarticuladas) que renda ensejo ao ideal da plena organização e participação social (associativismo)”. (AMARAL, 1989, pg. 32).
Nesse contexto, nasceu a Constituição Federal de 1988, inspirada na Constituição portuguesa de 1976, redigida após a Revolução dos Cravos. Logo, o caráter contemporâneo do atual texto constitucional, fortemente inserido no âmbito do Estado Democrático de Direito, incluiu a proteção ao direito do consumidor, no rol de direitos e garantias fundamentais, no art. 5º, XXXII, assim como, nos princípios gerais da atividade econômica no art. 170, V. Dentro dessa noção, Fábio Konder Comparato acrescenta: “A meu ver, a declaração contida no art. 5º, XXXII da Constituição Federal de 1988 deve ser interpretada de forma vinculada ao princípio constante do art. 170, V, ou seja, como um elemento diretor da ordem constitucional objetiva”. (COMPARATO, 1990, pg. 69).
Outrossim, a Carta Magna nacional, em seu art. 6º, caput, inclui como direito social a proteção à infância; já, no art. 227, caput, estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à alimentação e à saúde, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nesse contexto, igualmente ressaltou Adalberto Pasqualotto: “Percebeu-se a necessidade de proteger o fraco frente ao forte, assim como já ocorrera no surgimento do Direito do Trabalho” (PASQUALOTTO, 1991, pg. 48).
Diante desse cenário, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.613.561-SP representou uma importante reafirmação da jurisprudência pátria em consonância com os ditames da Constituição Federal, que certamente possuirá repercussões jurídicas e sociais em todo o país.
Referências Bibliográficas.
1. AMARAL. Luiz Otávio de Oliveira. História e Fundamentos do Direito do Consumidor. RT 648. 1989.
2. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial 1.613.561/SP. PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR. AUTO DE INFRAÇÃO E MULTA DO PROCON. PUBLICIDADE DESTINADA ÀS CRIANÇAS. GÊNEROS ALIMENTÍCIOS DE BAIXA QUALIDADE NUTRICIONAL. PUBLICIDADE ABUSIVA. ART. 37, §2º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Recorrente: Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo. Recorrido: Sadia S/A. Relator: Min. Herman Benjamin, 25 de abril de 2017. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em: 27 de agosto de 2023.
3. COMPARATO, Fábio Konder. A Proteção ao Consumidor na Constituição de 1988. Revista de Direito Mercantil (Industrial, Econômico e Financeiro). 1990.
4. PASQUALOTTO. Adalberto. Conceitos Fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. RT 666. 1991.