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Perspectiva histórica e paradigma atual do direito administrativo

Agenda 17/10/2023 às 19:10

No Brasil, fica evidente a tensão entre uma corrente de pensamento que, para compreender cientificamente o direito administrativo, invoca os direitos fundamentais como elemento principal, e outra, que o faz através do elemento de interesse público.

Resumo: No presente artigo se procura apresentar a conceituação do Direito Administrativo, desenvolvendo o significado do seu sentido histórico e a sua abordagem conceitual contemporânea, a fim de estabelecer o alcance e significado deste ramo do Direito. Dessa forma, apresenta-se uma breve explanação histórica (desde sua origem), suas definições e conceitos sob a perspectiva dos doutrinadores clássicos e proeminentes do Direito Administrativo, distinguindo-o dos demais ramos do Direito. Além disso, apresenta-se seu sentido atual como fenômeno jurídico, que orienta a atuação dos agentes administrativos, as decisões das autoridades administrativas e a interpretação dos juristas na realidade da Administração Pública. O presente artigo teve como metodologia a revisão bibliográfica realizada a partir do referencial teórico selecionado de acordo com as discussões sobre o contexto do tema, mormente sobre os sentidos históricos e hodiernos do Direito Administrativo.

Palavras Chaves: Direito Administrativo. Interesse Público. Estado de Direito. Direitos Fundamentais.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Sentido histórico do Direito Administrativo. 2. Abordagem contemporânea do Direito Administrativo Brasileiro. Conclusão. Referências.


Introdução

A compreensão dos paradigmas do Direito Administrativo é fundamental para a construção de uma sociedade de bem estar aos moldes preconizados pela Constituição Federal de 1988, uma vez que o Estado garantidor pode ser considerado o motor principal do desenvolvimento social, sendo seus conceitos e teorias relevantes na efetivação desse ideal.

Entretanto, a atuação estatal e suas ferramentas institucionais, historicamente, evoluíram da situação de subserviência à vontade do rei para a de promotoras do interesse social, a partir do primado da submissão do poder estatal ao Estado de Direito e, posteriormente, segundo o desenvolvimento da ciência jurídica no seu âmbito, consagou-se a necessidade de valorização dos direitos fundamentais do cidadão pelo próprio Estado.

1. Sentido histórico do Direito Administrativo

É costume situar o surgimento do Direito Administrativo na Europa continental no final do século XVIII, mais especificamente após a Revolução Francesa, de 1789.

Contudo, pode-se dizer que o impulso inicial para a formação do Direito Administrativo se deu com o desenvolvimento da Teoria dos Poderes de Montesquieu, a partir de 1748, com a publicação de “L’Espirit des Lois”.

Neste contexto, é verdade que, após a Revolução Francesa, a divisão das funções executivas, legislativas e judiciais deu origem à especialização das atividades governamentais e, consequentemente, conduziu à independência dos órgãos encarregados de exercer tais funções.

O Direito Administrativo nasceu, portanto, no contexto do Estado de Direito moderno e a ele está vinculado. Assim, suas bases evidenciam o cenário em que a vontade (objetiva) do Direito prevaleceu sobre a vontade (subjetiva) dos governantes.

Neste período inicial, na perspectiva do modelo europeu continental, procurou-se a sua afirmação científica como novo ramo do Direito, através da exploração do seu conceito, cuja identidade estava centrada na figura da Administração Pública.

Laferrière, autor francês, desenvolveu em 1839 o mais completo conceito do próprio Direito Administrativo, estabelecendo-o como a ciência da ação e competência do poder executivo, cuja relação está envolvida com os direitos ou interesses dos administrados e com o interesse geral do Estado.

Porém, na Alemanha, no mesmo período, Fritz Fleiner ensinou que no seu país o Direito Administrativo foi o resultado de uma lenta transformação ocorrida em cada um dos seus Territórios, diferentemente da França, que teria sido fruto de graves crises do país, estado e sociedade.

De qualquer forma, no final do século XIX, autores europeus afirmavam que o Direito Administrativo seria o Direito relativo à Administração, tendo em conta as relações entre o “Estado administrativo” e os súditos.

Portanto, a partir da produção administrativa do século XIX, o conceito de Direito Administrativo - embora varie acidentalmente de acordo com as peculiaridades de cada país - tem como substância a noção de Administração, no contexto político-institucional do Estado de Direito, isto é, da sujeição da Administração e dos governantes ao Estado de Direito, que passa a orientar as suas relações internas e, em particular, as suas relações com os indivíduos.

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2. Paradigma contemporâneo do Direito Administrativo Brasileiro

No final do século XIX, com o reconhecimento da existência do Direito Administrativo e a pacificação do significado da Administração como função estatal, superou-se a fase de discussão sobre o conceito de Direito Administrativo na produção científica.

A partir de então, o seu paradigma conceitual passa a ser naturalmente o enfoque de uma abordagem que o entende como um fenômeno jurídico, a partir de uma perspectiva do conteúdo do Direito Administrativo.

No início do século XX, o espaço do direito administrativo já estava consolidado no campo da ciência jurídica, quer externamente, em contraste com a ciência da administração, quer internamente, em contraste com o direito constitucional ou o direito civil.

Assim, de acordo com a produção científica, a ciência do Direito Administrativo surge em torno da noção de Administração Pública, o que levou ao desenvolvimento da percepção da Administração Pública também como fenômeno jurídico.

Nessa altura, assistiu-se à consolidação da noção de serviço público – acompanhando a evolução do Estado, que passa do modelo liberal para o modelo de bem-estar social – o que marcara uma nova etapa no desenvolvimento científico do Direito Administrativo.

Nota-se, assim, o adensamento do tratamento jurídico-regulatório das atividades da Administração, impulsionado pela função administrativa, que se torna mais complexa. Além disso, a organização social exigiu que o Direito Administrativo ampliasse o seu âmbito regulatório, disciplinando aspectos que antes eram mais livres para uma atuação mais puramente política.

Acompanhando esta expansão na complexidade e densidade do Direito Administrativo, o início do século XX trouxe consigo uma importante mudança de perspectiva sobre a forma de compreender a Administração pública.

Isso foi resultado principalmente da contribuição trazida pelo pensamento positivista da Escola de Viena, que concebe a Administração como uma função jurídica estatal merecedora de tratamento próprio pela ciência do Direito, consoante as lições de Adolf Merkl, em seu "Allgemeines Verwaltungsrecht", de 1927.

Merkl ensinou que, nos estados de Direito, a atividade da Administração foi progressivamente acompanhada pelo desenvolvimento da teoria do Direito Administrativo, estabelecendo que a administração do Estado, bem como o próprio Estado, como uma função estatal que teria que ser fundada como teoria jurídica.

Além disso, a doutrina do século XX discutiu a questão do conceito de Direito Administrativo para qualificá-lo como autônomo do ponto de vista jurídico (sem praticamente fazer mais referências à ciência da Administração). Nesse sentido, eventualmente poderia se utilizar do elemento fundamental da administração, apenas numa perspectiva orgânica, ou numa perspectiva funcional, mas enquadrada na lei.

O Direito Público, em geral, a partir de então, deixa de ser marcado pelas relações entre pessoas desiguais, soberanas e sujeitas, para se tornar um conjunto de regras que determinam a organização dos serviços públicos e asseguram o seu funcionamento regular e ininterrupto.

Assim, o Direito Administrativo, na perspectiva da chamada Escola do Serviço Público, passa a ser compreendido conceitualmente numa visão funcional, focada em suas finalidades, sintetizadas na noção de serviço público.

Em suma, para melhor compreender os aspectos que envolvem o fenômeno do direito administrativo, tem-se, por um lado, uma perspectiva estrutural, que toma a Administração pública pelo estabelecido em seu regime jurídico. Por outro lado, uma perspectiva funcional, que concebe a Administração Pública pela sua função social e pelos fins que persegue (promotora de serviço público), aos quais devem ser adaptados os elementos do seu regime jurídico.

Hoje, no Brasil, fica evidente uma tensão entre uma corrente de pensamento que, para compreender cientificamente o Direito Administrativo, invoca os “direitos fundamentais” como elemento principal, e outra que o faz através do elemento de “interesse público”. Assim, pode-se argumentar que existe uma “Escola de Direitos Fundamentais” e uma “Escola de Interesse Público”, marcos de uma teoria brasileira de Direito Administrativo.

A Escola dos Direitos Fundamentais conecta-se com a mesma lógica dos objetivos da Escola da Função Pública, embora difere do seu elemento final – valora os direitos fundamentais e não a função pública. A referida escola concebe o direito administrativo como meio para a concretização dos direitos fundamentais, resultando num regime jurídico aplicável às relações em que intervém a administração pública, sobretudo quando se relaciona com particulares.

A Escola do Interesse Público, por sua vez, entende o Direito Administrativo como um regime jurídico de prerrogativas e restrições aos demais, resultantes do modo de ser da Administração como sujeito de direito a ostentar superioridade em suas relações jurídicas. Desse modo, defende a ideia de que o Direito Administrativo se identifica por possuir um regime jurídico específico, inerente à Administração Pública, na medida em que tal regime está essencialmente ligado à própria compreensão do que é o interesse público – o fim – regime jurídico administrativo este que deve fornecer os meios para sua consecução.

Contudo, com a evolução e estabelecimento do neoconstitucionalismo no mundo ocidental, cujas premissas defendem a difusão e o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais e da força normativa da Constituição, verifica-se a transformação de um Estado de Direito em Estado constitucional.

Nesse sentido, para ilustrar, a seguir o conceito de direitos fundamentais, segundo Luigi Ferrajoli:

“Direitos fundamentais são todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a 'todos' os seres humanos como dotados da condição-status- de pessoas, cidadãos ou pessoas com capacidade de agir” (1999, p. 37).

Vale ressaltar que direito subjetivo significa qualquer expectativa positiva (de benefícios) ou negativa (de não sofrer danos) vinculada a um indivíduo por uma norma jurídica; e por ‘status’ a condição de sujeito, também prevista em norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que constituem o exercício destas.

Assim, partindo desta premissa da proeminência dos direitos fundamentais sobre outros aspectos da ordem jurídica, mesmo no domínio do Direito Administrativo, especificamente no que diz respeito às relações da Administração com os particulares, verifica-se que eventuais interesses materiais específicos das instituições públicas devem ser classificados como de prioridade posterior ou secundários, em relação aos direitos fundamentais.

Como se vê, o conteúdo do Direito Administrativo contemporâneo expressa a tendência (necessidade) de valorização dos direitos fundamentais, nas relações entre a Administração e os particulares, o que é essencial para a sua compreensão, pois acrescenta um referencial teórico (de natureza axiomática), o que influencia substancialmente nas decisões da Administração em geral.

CONCLUSÃO

Nesse breve estudo, foram (re) visitados alguns dos pontos mais relevantes do Direito Administrativo, por meio de um percurso teórico, através da análise de sua origem conceitual e de seu significado atual como fenômeno jurídico.

Assim, conclui-se que o Direito Administrativo se apresenta como uma disciplina teórica que historicamente se firmou como independente no âmbito da ciência do Direito, por meio do estabelecimento da sujeição da Administração pública ao Estado de Direito, destacando-se que sua diretriz axiológica hodierna estabelece ainda um plus, no sentido da efetivação e valorização dos direitos fundamentais pela Administração.


Referências

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FLEINER, Fritz. Instituciones de derecho administrativo. Trad. por Sabino A. Gendin. Barcelona/Madrid/Buenos Aires: Editorial Labor, 1933, p.25.

MERKL, Adolf. Teoría general del derecho administrativo. Edição a cargo de José Luis Monereo Pérez). Granada: Comares, 2004 (texto original de 1927);p 1.

SOARES, Ricardo.H.S. A discricionariedade nas decisões administrativas: análise crítica dos poderes sancionatórios do Exército Brasileiro sobre seus agentes. Tese (Doutorado em Direito) – UNMDP. Mar Del Plata. Argentina. 2023.

Sobre o autor
Ricardo Soares

Graduado em Direito (concluída em 2009). Especialista em Direito Administrativo e gestão pública. Especialista em Direito Militar. Especialista em Direito do Trabalho. Doutor em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Ricardo. Perspectiva histórica e paradigma atual do direito administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7412, 17 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105857. Acesso em: 22 dez. 2024.

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