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Direitos e conflitos de vizinhança

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Agenda 28/09/2024 às 14:30

7. LIMITES ENTRE PRÉDIOS E DIREITO DE CERCAR OU MURAR

O proprietário ou possuidor pode demarcar e cercar o imóvel, nos seus limites com os dos vizinhos confinantes. O fim social da norma legal é prevenir os conflitos que as incertezas dos limites provocam e de estabelecer critérios para a solução desses conflitos. Cerca é conceito amplo, abrangente de outros termos utilizados pela lei, como muro, vala, valado, tapagem, sebe, intervalos, banquetas, além de outras expressões regionais. O Código Civil alude a “tapagem”, termo de escasso uso linguístico, e que, segundo os antigos significava exatamente cerca. Nas Ordenações Filipinas (Liv. II, Tít. 48, § 4º) há referência a “tapamento de suas herdades”, com significado de cerca. O direito de cercar assenta-se na necessidade, não sendo cabível para fins de maior comodidade ou de estética.

A demarcação tem por finalidade evitar a confusão de limites, ou por fim à confusão já ocorrida. São legitimados a promover e a responder a ação, que é declaratória, o proprietário, ou o possuidor, ou o titular de direito real limitado, pois a lei (CC, art. 1.297) alude a confinante.

O direito à demarcação importa o de constrangimento aos vizinhos confinantes de procedê-la amigável ou judicialmente, quando os rumos ou marcos estejam destruídos, apagados ou confusos. Intenta-se, com a demarcação, aviventar e tornar indiscutíveis os marcos e rumos. As despesas da demarcação amigável ou judicial, inclusive com os serviços de técnicos ou peritos, são repartidas entre os vizinhos confrontantes. O direito de cercar é dependente da definição precisa dos limites, operada pela demarcação. A lei (CC, art. 1.298) estabelece três critérios sucessivos para a demarcação, quando os limites estiverem confusos e os marcos indefinidos ou desaparecidos:

As cercas já existentes, em qualquer de suas modalidades (muros de alvenaria ou concreto, sebes vivas, cercas de arame ou madeira, valas) têm a presunção legal de pertencerem em comum aos vizinhos confinantes. A presunção de condomínio é relativa (juris tantum), pois podem ter sido feitas por um dos vizinhos dentro dos limites de seu imóvel, pertencendo-lhe inteiramente. Podem ter sido feitas sobre a precisa linha divisória por um dos vizinhos, com seus próprios recursos; nesta hipótese, pode cobrar do outro vizinho a meação das despesas, uma vez que a cerca passa à titularidade de ambos. Cercar é direito e não obrigação, disse Darci Bessone12, “razão por que pode o proprietário abster-se de tapar, cercar, ou murar o seu imóvel”. Porém, a obrigação do confinante de concorrer com as despesas de construção e conservação das divisórias resulta diretamente da lei, não se condicionando a que haja prévio consentimento; cumpre a quem as realize demonstrar que se faziam necessárias, no momento em que foram efetuadas. É direito e dever de vizinhança decorrente da limitação ao conteúdo do direito de propriedade: cada confinante é obrigado a concorrer em partes iguais para as despesas de construção e conservação. Essa obrigação, de natureza objetiva, prevaleceu nos tribunais, antes mesmo do Código Civil de 2002, a exemplo do STJ (REsp 20.315 e REsp 238.559). Qual o meio que vai ser empregado (tipo de cerca, muro, sebe) depende dos usos locais, ou da natureza da construção limítrofe.

A demarcação é cabível, mesmo quando definidos os limites divisórios, quando ainda restem dúvidas sobre sua precisão, notadamente havendo divergência entre o título de propriedade e as divisas. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 759.018) que havendo divergência entre a verdadeira linha de confrontação dos imóveis e os correspondentes limites fixados no título dominial, é cabível a ação demarcatória para eventual estabelecimento de novos limites.

Em áreas rurais, é comum constar em escrituras públicas e registros imobiliários determinadas plantas, especialmente árvores e sebes vivas, como marcos naturais divisórios dos imóveis, quando não há cerca, ou quando o rumo desta é questionado. Cada uma dessas plantas não pode ser cortada ou arrancada, salvo se houver acordo de ambos os confinantes. Se for arrancada por um deles, o outro poderá provar em juízo sua exata localização, prevalecendo esta contra a que indicar o que arrancou a planta, por pesar-lhe a ilicitude da conduta.

Excepcionalmente, há dever e obrigação de cercar do proprietário de animais. Não está obrigado a concorrer com as despesas o proprietário vizinho, que exigir a realização de cerca especial para impedir a passagem de animais ao seu imóvel. A cerca é especial em razão dos tipos de animais. Assim, a cerca para animais de maior porte, como gado vacum, é distinta da que se exige para animais de pequeno porte, como os galináceos. As despesas são de responsabilidade do proprietário desses animais, os quais provocaram a necessidade de cerca especial.


8. DIREITO DE CONSTRUIR

Sob o título “direito de construir” tem-se a regulação do direito do possuidor e do proprietário de edificar em seu terreno, observados os limites em relação aos vizinhos, que também estão a ela sujeitos, e as normas instituídas pela administração pública, principalmente o plano diretor, nas áreas urbanas. O direito de construir diz respeito não apenas à edificação nova, como a reforma ou reconstrução de edificações antigas.

O direito de construir não se confina ao direito civil, sendo matéria com incidência transversal não apenas do direito urbanístico, como do direito ambiental, do direito de defesa do patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e cultural, do direito aeronáutico e outros direitos assemelhados, de ordem pública. Exemplo de limitação administrativa ao direito de construir encontra-se na Súmula 142 do antigo Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual a faixa non aedificandi imposta aos terrenos marginais das estradas de rodagem, em zona rural, não afeta o domínio do proprietário, nem obriga a qualquer indenização. Com efeito, o proprietário pode plantar nessa faixa, mas não pode edificar, em razão da segurança das pessoas nessas vias. Para além das normas de direito público, interessam ao direito civil as interferências do direito de construir nas relações de vizinhança.

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Seguindo a tradição arquitetônica portuguesa, as casas e sobrados construídos em áreas centrais das cidades brasileiras eram contíguos ou com recuos estreitos. Daí que se justifique a permanência da regra do art. 1.300. do Código Civil, segundo a qual o proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas diretamente no imóvel vizinho, que se incluía na actio de effusis et dejectis dos romanos. Ou do Código de Águas (art. 105), de que o proprietário edificará de maneira que o beiral de seu telhado não despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando por outro modo não o possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de modo que as águas se escoem. Quando a legislação municipal admitir que a edificação possa ir até o limite do terreno, terá de ser feita de modo a que as águas pluviais, correntes ou servidas não vertam ou sejam despejadas no imóvel vizinho.

As janelas, os terraços cobertos ou descobertos, as sacadas, as varandas, as portas devem distar, ao menos, um metro e meio da linha divisória dos terrenos. Essa regra tem por fito a preservação mínima do direito à privacidade do vizinho, que é constitucionalmente garantida (CF, art. 5º, X) e alcança qualquer abertura superior a dez por vinte centímetros. Admite-se que as janelas ou terraços que não se abram com visão direta do imóvel vizinho, mas sim para dentro do próprio imóvel, possam ser feitos com a distância de setenta e cinco centímetros da linha divisória dos terrenos, o que corresponde à metade da distância anterior, tendo o Código Civil tornado sem efeito a Súmula 414 do STF que não distinguia a visão direta da indireta ou oblíqua. Estima-se que essa redução não prejudicará a privacidade do vizinho, pois a linha de visão não é direta. Na zona rural, amplia-se a distância para três metros, até a linha divisória. O conceito adotado pelo Código Civil é o de zona (urbana ou rural), e não o de destinação, que é preferido pelo direito agrário; assim, ao imóvel com destinação agrícola ou pecuária, mas situado dentro do perímetro urbano fixado pelo Município, aplica-se o recuo menor de metro e meio.

O vizinho tem o prazo de um ano e dia, após a conclusão da obra, para exigir que se desfaça a janela, ou o terraço, ou a varanda, ou a sacada, construídos com distância menor que um metro e meio da linha divisória, se tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou de três metros se na zona rural, ou de setenta e cinco centímetros da linha divisória, se não tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou do despejo de águas sobre seu imóvel. No âmbito processual, esse embargo é denominado nunciação de obra nova. Esse prazo é preclusivo ou decadencial, não podendo ser interrompido ou suspenso. Considera-se conclusão da obra, para fins de contagem do prazo, a data do habite-se concedido pelo Município, salvo se o vizinho construtor tiver como provar a data efetiva da conclusão e sua ciência pelo vizinho. Conta-se a partir da conclusão de toda a obra e não da construção da janela ou outra abertura. Não se exige a comprovação do devassamento, bastando a construção da janela – terraço, sacada ou varanda - com distância menor que a legal.

Se o prazo se escoar, sem ajuizamento da ação pelo vizinho prejudicado, este terá de suportar a obra invasiva, não podendo mais impedir ou dificultar o uso do prédio beneficiado, inclusive o escoamento das águas. O vizinho prejudicado terá, por sua vez, de recuar sua construção nova, de modo a que se mantenha o recuo de um metro e meio (ou três metros); supondo-se que a janela foi aberta com a distância de cinquenta centímetros da linha divisória, na zona urbana, o vizinho prejudicado terá que recuar a parede da edificação nova até um metro dentro de seu próprio terreno, na largura da janela, de modo a que esta mantenha um metro e meio de espaço aberto. O recuo calcula-se a partir da janela ou outra abertura e não da linha divisória. Essa orientação legal foi introduzida na segunda parte do art. 1.302. do Código Civil, contrariando o entendimento jurisprudencial que antes se tinha consolidado, no sentido de o proprietário prejudicado não poder exigir o fechamento, após o escoamento do prazo, mas não estando impedido de construir edificação vedando a abertura. A norma do Código Civil contempla a função social da propriedade, ao contrário do entendimento jurisprudencial anterior, que fazia prevalecer o interesse individual.

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A distância de três metros, ou de metro e meio, ou de setenta e cinco centímetros é contada a partir da construção irregular, e não da linha divisória. Segundo orientação doutrinária13, constituiria servidão específica ou direito real sobre coisa alheia; constituída a servidão, alcança-se esse objetivo, em detrimento do imóvel serviente, cujo dono, não tendo embargado oportunamente a construção irregular e não pretendendo, no prazo legal, que se desfizesse, teria de recuar sua própria edificação. Entendemos, todavia, não se tratar de servidão, mas sim de limitação à propriedade, que é o fundamento dos direitos de vizinhança, que independem, inclusive, de registro imobiliário. Também assim entende Pontes de Miranda14, para quem os direitos de construir nascem de limitação ao conteúdo do direito de propriedade; não nasce, com isso, servidão, pois o vizinho apenas perdeu a pretensão ao desfazimento da obra e o dono desta foi beneficiado pela inércia do titular da pretensão contrária a ela.

Permite-se que sejam feitas aberturas para luz ou ventilação, com dimensões pequenas, sem respeitar qualquer distância com a linha divisória dos terrenos. Diferentemente das janelas, terraços e varandas que facultam devassar o imóvel vizinho, essas pequenas aberturas não comprometeriam a privacidade dos que o habitam. Permite-se, assim, a iluminação ou a ventilação e, ao mesmo tempo, preserva-se o vizinho do devassamento. A metragem admitida para a abertura é de, no máximo, dez centímetros por vinte centímetros, desde que seja construída a partir da altura de dois metros do chão de cada piso, que supera a altura da quase totalidade das pessoas humanas e impede a visão sobre o vizinho. Não há impedimento para que sejam várias aberturas, para o lado ou para cima. A tecnologia da construção desenvolveu o que denomina de elementos vasados, de cerâmica, concreto, vidro ou madeira, alguns com visão indireta ou impedida, o que melhor contempla os fins sociais da lei. A Súmula 120 do STF já previa que os tijolos de vidro translúcido podiam ser levantados a menos de metro e meio do imóvel vizinho. Também não há impedimento para que as aberturas sejam construídas em paredes limítrofes, o que tem sido objeto de conflitos.

As aberturas de luz ou ventilação, contudo, não geram limitação permanente ao direito de propriedade do vizinho, ao contrário da construção de janelas, varandas e terraços. Ainda que tais aberturas existam por muito tempo, para além de ano e dia, pode o vizinho levantar edificação que as vede, uma vez que não há previsão legal de prazo preclusivo. Não pode o vizinho pretender a demolição ou fechamento de aberturas ou vãos de luz em parede limítrofe, mas ele não está impedido de construir parede que as vedes, sempre que desejar, sem justificação. Escola mantida por instituição considerada de utilidade pública abriu em parede limítrofe vãos de luz e ventilação, em duas salas de aula, utilizando elementos vasados, sem objeção dos vizinhos. Estes, após dez anos, resolveram edificar parede vedando os vãos, tendo a escola ingressado em juízo para impedi-los. Em grau de recurso extraordinário, decidiu o STF (RE 211.385-9) que a garantia da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII) não afeta as normas de composição do conflito de vizinhança previstas no Código Civil, “não se podendo impor gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública”.

Parece-nos, no entanto, que a regra permissiva do art. 1.302, parágrafo único do Código Civil, da desconsideração das aberturas de luz e ventilação, há de ser interpretada em harmonia com o art. 1.278. do Código Civil, o qual estabelece que, se as interferências prejudiciais ao vizinho forem justificadas por interesse público o causador pagar-lhe-á indenização cabal; essa prescrição é geral, não estando adstrita às situações específicas do uso anormal da propriedade. Assim, justificando-se o interesse público, que é o caso da escola referida na decisão do STF - anterior ao início da vigência do atual Código Civil - não pode prevalecer o interesse particular do vizinho. Interesse público, para os fins da norma legal, não é o estatal, mas o social, expressado no direito dos alunos de utilizar adequadamente as salas de aula. Para compensar o dever de suportar a interferência, confere-se ao titular do imóvel o direito, a pretensão e a ação da indenização cabal, harmonizando-se direito de propriedade e função social.

O Código Civil de 2002 manteve as regras advindas da legislação anterior sobre o uso pelos vizinhos da mesma parede divisória, ou o condomínio da parede-meia, em homenagem às edificações de casas conjugadas, vindas das tradições coloniais, ainda existentes em muitas cidades brasileiras, de acordo com as respectivas legislações urbanísticas. A matéria retomou sua importância com a proliferação dos condomínios edilícios, em cujos pisos ou andares as paredes divisórias são comuns das unidades imobiliárias. As regras podem ser assim ordenadas:

  1. O proprietário ou possuidor tem direito de utilizar a parede divisória, se ela suportar a nova edificação ou reforma, reembolsando ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondente. O vizinho pode travejar na parede-meia, cuja metade foi edificada em seu imóvel, pois, por metade é sua, mas antes há de pagar o meio valor dela. Se o proprietário faz a sua parede só no seu terreno, toda ela é sua. Para Orlando Gomes15, o direito de madeirar ou travejar condiciona-se à conjugação dos seguintes requisitos: a) que o prédio seja urbano; b) que esteja sujeito a alinhamento; c) que a parede divisória pertença ao vizinho; d) que aguente a nova construção; e) que o dono do terreno vago pague meio valor da parede divisória.

  2. Quem primeiro construir a parede divisória tem direito de fazê-la por sobre a linha que divide os dois imóveis, ocupando meia espessura do terreno contíguo. O vizinho não perde a titularidade sobre a parte ocupada pela parede, mas, se também a utilizar em edificação sua, terá de pagar a metade do valor da parede ao que a construiu.

  3. O vizinho apenas poderá utilizar a parede se ela suportar a nova edificação; se dúvida ou risco houver, poderá quem a construiu exigir do outro que preste garantia;

  4. Qualquer dos dois condôminos da parede-meia tem o dever de informar ao outro das obras que desejar fazer, e o dever de segurança, de modo a não por em risco a parede, com tais obras;

  5. Qualquer dos condôminos de parede-meia não pode, sem o consentimento do outro, utilizar a parede para armários ou assemelhados, ou encostar chaminés, fogões (salvo os fogões de cozinha, desde que não sejam prejudiciais ao vizinho), fornos ou aparelhos que possam produzir infiltrações ou interferências prejudiciais. O consentimento não necessita de ser expresso, bastando a aquiescência duradoura ou renúncia do direito. A infiltração ou interferência gera dever de indenizar sem culpa, podendo o prejudicado, ainda, exigir a demolição. Se o dano é provável e iminente, cabe caução de dano infecto;

  6. O condômino pode alterar a parede divisória, desde que não prejudique o vizinho e assuma as despesas correspondentes, salvo se o vizinho adquirir meação, com utilização da parte acrescida.

Não há condomínio de parede-meia quando a parede é própria do confinante, que a levantou justaposta à do vizinho. Nessa hipótese, salienta Hely Lopes Meyrelles16, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou encostados quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem possibilidade de embargo ou caução prévia para prosseguimento das obras. Somente a posteriori poderá o confrontante obter a demolição e a reparação dos danos que tais obras lhe venham a causar, como resultado do uso anormal da propriedade.

Com relação às águas de poço e de nascente, proíbe-se que a construção seja causa de sua poluição, se (CC, art. 1.309) forem a ela preexistentes. Esclareça-se que não se extrai dessa norma que haja um bill of indemnity, um poder para poluir, se o poço ou a fonte do vizinho forem posteriores à construção, pois, de acordo com o § 3º do art. 225. da Constituição, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, em qualquer dimensão, sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados, cuja responsabilidade civil é objetiva. Além da indenização pelos danos, o causador tem o dever legal de demolir a edificação ou a parte dela que os tiver provocado.

Igualmente, são proibidas as obras que tirem ao poço ou à nascente a água indispensável às suas necessidades normais. O direito de vizinhança, por parte do que tem a água para suas necessidades, consiste em que ela não seja tirada ou reduzida, de modo a torná-la insuficiente para o uso normal. Vizinho não é necessariamente o contíguo, pois se há o mesmo lençol de água em vários imóveis, todos são legitimados. Note-se, todavia, que o particular tem, apenas, o direito de exploração das águas subterrâneas mediante autorização do Poder Público, cobrada a devida contraprestação, na forma da Lei nº 9.433, de 1997; se não houver autorização, não terá direito contra quem a tenha obtido. Como lembrou o STJ (REsp 1.276.689), a necessidade de outorga para a extração da água do subterrâneo é justificada pela problemática mundial de escassez da água e se coaduna com o advento da

C onstituição, que passou a considerar a água um recurso limitado, de domínio público.

São proibidas as obras que possam provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometam a segurança dos imóveis vizinhos. Nesses casos, a construção depende da realização de obras acautelatórias, que possam reduzir ou impedir, substancialmente, os riscos de danos. Se, apesar das obras acautelatórias, os danos ocorrerem, o vizinho prejudicado poderá exigir indenização correspondente. A responsabilidade do dono da edificação é objetiva, independentemente de culpa, não sendo atenuantes ou compensatórias as providências que tiver adotado para evitar os danos. É ainda responsável pela demolição da construção, naquilo que tiver provocado os danos. Até à conclusão da obra, cabe a nunciação de obra nova; após a conclusão, é cabível a ação demolitória, dentro do prazo de um ano e dia.

A responsabilidade do direito de vizinhança não decorre da ilicitude do ato de construir, e sim da lesividade da construção. Em consequência, investe-se no direito de regresso contra o empreiteiro, projetista, construtor que tenha contratado para execução da obra. Nesse sentido, decidiu o STJ (AgRg no REsp 473.107) que o contrato firmado entre o proprietário da obra e o empreiteiro, quanto à responsabilidade por eventuais danos, não produz efeitos contra terceiros, entretanto assegura o direito de regresso contra o empreiteiro.

O possuidor ou o proprietário tem o dever de tolerância do ingresso em seu imóvel do vizinho, quando este, após comunicação prévia, necessitar reparar, manter, limpar ou reconstruir o prédio, ou instalações deste, ou cerca divisória de qualquer espécie. O ingresso é devido quando for indispensável para tais providências, que não poderão ser executadas a partir do próprio imóvel, salvo com custos muito elevados. Nos condomínios edilícios, por exemplo, as instalações hidrossanitárias, situadas por baixo do piso, apenas podem ser consertadas a partir do teto da unidade inferior. O direito de ingresso é também assegurado quando o proprietário ou possuidor necessitar retirar suas coisas, inclusive animais, que eventualmente tenham ido ou caído no imóvel vizinho. O direito de ingresso não é indiscriminado e deve ser exercido de modo mais cômodo possível, preferentemente em horários combinados, ou fora dos horários de repouso e alimentação habituais. O direito de ingresso pode ser impedido se o vizinho tomar a iniciativa de entregar as coisas buscadas, pois não se admite o abuso do direito subjetivo. Em qualquer hipótese, se o exercício do direito de ingresso causar danos ao vizinho, este tem pretensão à indenização correspondente.

O direito de ingresso, em qualquer circunstância, é dependente de consentimento de quem habite o imóvel onde as obras devam ser feitas ou onde as coisas devam ser retiradas. Se houver recusa, o ingresso dependerá de decisão judicial. Assim é, porque a Constituição (art. 5º, XI) assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.


Notas

  1. ...

  2. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 449.

  3. GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 221.

  4. DANTAS, F. C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 264.

  5. FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.

  6. CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 22.

  7. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 485.

  8. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 526.

  9. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. IV, p. 186.

  10. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 517.

  11. FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116.

  12. BESSONE, Darci. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254.

  13. CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 23.

  14. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 546. e 569.

  15. GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 232.

  16. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo: RT, 1992, p. 49

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direitos e conflitos de vizinhança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7759, 28 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105906. Acesso em: 29 set. 2024.

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