6. O MODO DE AQUISIÇÃO DA POSSE DETERMINA SUA NATUREZA
Uma das características essenciais do modelo brasileiro da posse é a manutenção de sua natureza, de acordo como foi adquirida, notadamente quanto a suas qualidades e vícios. Essa regra está expressamente determinada no Código Civil (art. 1.203).
A posse que foi adquirida de boa-fé permanece de boa-fé, assim como a posse que foi adquirida de má-fé permanece de má-fé. A que foi adquirida clandestinamente ou por meio de violência, permanece assim, mas a lei admite que cessada a clandestinidade ou a violência, converta-se em posse justa, que tem direito à proteção possessória. Enquanto perdurar o vício, a posse é desconsiderada pelo direito. Cessado o vício, inicia-se o tempo levado em conta para os efeitos jurídicos, desprezando-se o anterior.
Essa regra abrange a multiplicidade de posses que o direito admite, projetando sua natureza no tempo. No Código Civil, além da posse comum, há posses que contemplam situações especiais. O art. 1.228, § 4º, dispõe sobre a posse coletiva, na qual os possuidores ocupam extensa área urbana, constroem suas moradias, obras ou serviços, com a introdução de serviços públicos, em fenômenos conhecidos como invasões urbanas; após cinco anos da ocupação, estão legitimados os possuidores ou ocupantes dessas áreas a pleitear a perda da propriedade, quando o titular desta a reivindicar, fixando o juiz o preço que os possuidores deverão pagar como indenização. A indenização a ser paga pelos possuidores não é requisito para proteção da posse, mas para que esta se converta em propriedade. Outro tipo de posse é a que se vincula à moradia; para que possa valer-se do prazo reduzido para usucapião (cinco anos) é necessário que assim permaneça, dentro dos limites das áreas dos imóveis urbanos (até duzentos e cinquenta metros quadrados) ou dos imóveis rurais (até cinquenta hectares).
Há, ainda, a posse intuitu familiae que protege o cônjuge ou companheiro que tenha sido abandonado pelo outro, em imóvel utilizado para moradia da família e que tenha sido propriedade de ambos. Essa modalidade foi criada pela Lei nº 12.424, de 2011, que introduziu o art. 1.240-A ao Código Civil, estabelecendo o prazo reduzido de dois anos para usucapião do imóvel, em favor exclusivamente do familiar abandonado, contra o outro, contado o prazo a partir do abandono. O abandono se caracteriza com a separação de fato, independentemente de ter havido divórcio ou dissolução regular da união estável. Essa posse, que permite a usucapião abreviada, é exclusiva do cônjuge ou companheiro abandonado; se houver transferência, ao terceiro não é dado valer-se do tempo da posse para essa específica usucapião.
É possível a transformação da natureza originária da posse (da causa possessionis). A posse que não seja plena pode se converter em posse plena. Situações recorrentes na jurisprudência dos tribunais é do locatário – que detém a posse direta, mas não a indireta, que é a do locador -, quando rompe o contrato de locação e deixa de pagar os aluguéis, que não são cobrados por inércia do locador; após o tempo previsto em lei, pode requerer a usucapião, fundado não na posse como locatário, mas na posse própria, que teve início com a ruptura do contrato de locação. Também admite a lei que ao sucessor singular, na transferência entre vivos, é facultado unir sua posse à do antecessor ou não; se não unir, inicia o tempo da posse a partir da transferência.
7. TITULAR DE POSSE E DETENTOR
Não são considerados possuidores, sendo, portanto, destituídos de proteção possessória, os detentores subordinados do proprietário ou do possuidor, como os empregados destes. Igualmente, não são possuidores os emissários ou mensageiros, os hóspedes, os agentes públicos. Essas pessoas são consideradas meros detentores da coisa ou servidores da posse de outrem. O locatário, o credor pignoratício, o usufrutuário, o usuário têm posse; o detentor, não. O detentor apenas retém a coisa em nome e a favor de outrem.
O Código Civil de 2002 (art. 1.198), ante a diversidade de denominações encontrada na doutrina (detentor, servidor da posse, fâmulo da posse), preferiu “detentor”, definindo-o como aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. No direito anterior, na dúvida se detentor ou possuidor, este prevalecia. O Código Civil de 2002 orientou-se em sentido contrário: na dúvida, é detentor, assim entendido o que começou a comportar-se com relação de dependência com o possuidor, mas essa presunção é relativa, admitindo-se prova em contrário.
Distingue-se, pois, a posse da detenção da coisa. O detentor exerce poder de fato sobre a coisa, mas sua relação de dependência com o titular impede que esse poder de fato seja protegido como posse própria. O exercício do poder de fato se dá em nome do titular da posse. A eficácia da detenção é quantitativa e qualitativamente inferior à eficácia atribuída à posse. Pode o detentor, no entanto, promover a defesa da coisa, inclusive a autodefesa, em nome e no interesse do possuidor.
O titular de órgão da pessoa jurídica (gerente, administrador, dirigente, gestor) não é detentor. No exercício de suas atribuições, seus atos não são seus mas da própria pessoa jurídica, que é a possuidora. Os órgãos não representam, mas sim presentam a pessoa jurídica.
A detenção pode se converter em posse, quando o detentor age em contradição aos interesses do titular da posse, descumprindo suas instruções e rompendo o vínculo de subordinação. A partir daí desaparece a detenção e surge a posse própria. Nesse sentido é o enunciado 301 das Jornadas de Direito Civil, patrocinadas pelo CJF/STJ: “é possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios”. Esse rompimento é situação de fato, não dependente de manifestação de vontade.
As terras públicas são insuscetíveis de usucapião, segundo a Constituição Federal. Pressupondo como necessária a correlação entre posse e propriedade, tem havido decisões dos tribunais, notadamente do STJ (v. g., REsp 1200736), no sentido de caracterizar a ocupação de terras públicas como mera detenção, insuscetível de proteção possessória.
8. POSSE AUTÔNOMA
Ihering afirmou que em toda parte se reproduz o relacionamento da posse com a propriedade. “A posse é a porta que leva à propriedade”. “Ela é, em consequência, negada onde quer que seja juridicamente excluída a propriedade” (1976, p. 83). A supremacia da propriedade e a redução da posse à função ancilar da propriedade correspondeu ao individualismo jurídico do século XIX. As transformações havidas no século XX na concepção de propriedade, como complexo de direitos e deveres ou funções, desde a Constituição alemã de 1919, retomaram a autonomia da posse, tornando insustentáveis as afirmações de Ihering, que continuam sendo utilizadas até hoje como razões de decidir.
Assim, até mesmo quando o direito de propriedade esteja impedido ou excluído é possível a atribuição da posse, para que esta exerça sua função social. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, instituiu regime próprio para as terras indígenas, que são as tradicionalmente ocupadas pelos índios, estabelecendo (art. 231, § 2º) que “destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Partilhando as titularidades, a Constituição atribuiu à União Federal o domínio inalienável dessas terras, e aos índios a posse permanente. Essa posse não leva à propriedade, não se relaciona à propriedade; existe autonomamente, pois o direito de propriedade individual é excluído.
A legitimação da posse autônoma tem sido objeto de legislação específica voltada à realização de políticas públicas de acesso à moradia. A Lei nº 11.977, de 2009, que regulamenta o programa “Minha Casa, Minha Vida”, de moradias populares, estabelece a possibilidade de legitimação da posse de moradores de áreas ocupadas de domínio privado ou público, que tenham sido objeto de demarcação urbanística. Estabelece a Lei (art. 58) que a partir da averbação do auto de demarcação urbanística, “o poder público concederá título de legitimação de posse aos ocupantes cadastrados” e, ainda, que a legitimação de posse devidamente registrada constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia, desde que não seja detentor ou possuidor de outra moradia. A legitimação da posse pode ser objeto de cessão, com anuência do poder público. Essa posse é objeto de legitimação por ato do poder público e de registro público, que era apenas assegurado ao direito de propriedade. É um título de posse e não de propriedade. A lei prevê, igualmente, que, após cinco anos do registro da legitimação da posse, o possuidor pode requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal, desde que a área do terreno não supere duzentos e cinquenta metros quadrados.
Na alienação fiduciária em garantia de coisa móvel ou imóvel, ao adquirente é transmitida a propriedade, que instantaneamente a transfere à entidade financiadora, de modo resolúvel. A propriedade permanece sob a titularidade da entidade financiadora até que o devedor adimpla a totalidade das prestações e outras despesas do financiamento. Durante esse período, o devedor é possuidor direto da coisa, que a exerce autonomamente, sem qualquer relação com a propriedade resolúvel da entidade credora, que tem função meramente de garantia.
Na jurisprudência dos tribunais, anote-se o progressivo reconhecimento da autonomia da posse do promitente comprador, cujo negócio jurídico não foi levado ao registro público, necessário para a eficácia real, e que redundou na Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro”. A proteção possessória está inteiramente desvinculada do direito real à aquisição do imóvel, para o qual o registro é indispensável (CC, art. 1.417).
A posse distingue-se da propriedade, como salienta Antonio Hernández Gil (1968, p. 211), por ser uma forma de utilização das coisas ligadas às necessidades comuns de todos os seres humanos e dar-lhe autonomia significa constituir contraponto humano e social à propriedade concentrada e despersonalizada.
A autonomia da posse, que cada vez mais se afirma, tem sido fortalecida pelas investigações iluminadas pelo direito civil constitucional. Os fundamentos da posse precisam ter em conta a promoção dos valores sociais constitucionalmente estabelecidos (Tepedino, 2011, p. 444) e sua relação com os direitos fundamentais.
9. DIREITO À POSSE
A crescente autonomia da posse provoca a invocação, também crescente, do direito à posse, no sentido de acesso e de proteção. O direito à posse não se confunde com direito de posse, pois este expressa a concepção de qualquer posse como direito, ou de situações em que a posse é título de pertencimento de coisa legitimamente reconhecido pela lei. O direito à posse não se confunde, igualmente, com o direito oriundo da posse quando esta ingressou no mundo jurídico, que os antigos denominavam jus possessionis.
Aludindo à posse em geral, diz Pontes de Miranda (2012, p. 108) que ter direito à posse não é ter posse; “e a posse nada tem com esse direito, tanto que pode existir e ser protegível contra ele”. Tem direito à posse (jus possidendi), quando ainda não a tenham, o proprietário, o titular de direito real, o figurante de relação jurídica obrigacional, em que a posse da coisa seja elemento, como o locatário, o depositário e o comodatário. Para o STJ (REsp 1126065), no plano processual, a ação de imissão de posse, intentada pelo proprietário, tem natureza petitória e não possessória, porque, no caso concreto, nunca exerceu a posse e deseja alcançá-la; legitimado à ação é o titular de direito real e não o possuidor.
Mas a posse, ainda que concebida como fato ou poder de fato, é a essência de determinados direitos ou é o interesse legítimo mais relevante. Por isso, o legislador alude, frequentemente, a direito à posse. Destacamos alguns exemplos no Código Civil:
O usufrutuário “tem direito à posse”; assim estabelece expressamente o art. 1.394. A essência do direito real de usufruto é a posse da coisa, de modo a que o usufrutuário possa usá-la e fruí-la. Trata-se de posse direta no próprio interesse – do usufrutuário – e não de exteriorização ou aparência de posse de dono. O direito real é-lhe conferido como garantia ou proteção reforçada da posse. O direito do usufrutuário à posse da coisa independe da concepção da posse como direito ou fato.
O credor pignoratício “tem direito à posse da coisa empenhada” (art. 1.433). O direito real de penhor tem por função a garantia do credor, mediante posse da coisa. É certo que, diferentemente do usufruto, a posse não pode ser ampla, dada sua destinação; mas é espécie de posse direta em interesse próprio, que está como limitação ao direito de propriedade do devedor.
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No penhor de título de crédito, o credor/possuidor tem o direito de “conservar a posse do título e recuperá-la de quem quer que o detenha” (art. 1.459). Nessa hipótese legal, a posse direta do credor é revestida das mesmas características comumente atribuídas ao direito de propriedade, inclusive a de sequela.
Até à partilha os co-herdeiros têm direito à posse da herança (art. 1.791, parágrafo único), considerada indivisível, na qualidade de compossuidores, de acordo com a parte ideal de cada um. A lei assegura-lhes direito à posse, ainda que não exclusiva.
Os exemplos referidos são de direito à posse no sentido de direito ao exercício e à proteção dela, considerando que já se encontra sob a titularidade dos nominados. Alude-se, igualmente, direito à posse no sentido de direito a adquiri-la, atribuído aos que ainda não são possuidores, em determinadas circunstâncias que o sistema jurídico tem como relevantes.
O ápice da luta pelo reconhecimento jurídico do direito à aquisição e conservação da posse é o direito à moradia, elevado ao status constitucional de direito social fundamental (CF, art. 6º). Direito positivo oponível ao Estado, para que promova políticas públicas que o realizem. Direito negativo de remoção dos obstáculos legais, sociais e legais que o impeçam, inclusive como fundamento da decisão judiciária. Direito limitativo da propriedade, que assume deveres, ao lado dos direitos.
O direito à moradia está especificado na Constituição, no atendimento de determinas situações. No art. 183 é reconhecida a posse de área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, utilizada para fins de moradia do possuidor e de sua família, bastando sua continuidade por cinco anos para que sirva como título de aquisição definitiva da propriedade. Igual direito (art. 191) é assegurado ao possuidor de área de terra em zona rural de até cinquenta hectares que a explore e a tenha como sua moradia.
O direito à posse expandiu-se para alcançar não apenas pessoas individuais, mas também coletividades. Grupo composto de “considerável número de pessoas”, que ocuparam imóvel de extensa área e ali construíram suas moradias e realizaram obras e serviços, está legitimado pelo art. 1.228 do Código Civil a opor ao pedido de reivindicação do proprietário seu próprio pedido de desapropriação; essa singular desapropriação judicial é concluída com o pagamento ao proprietário da indenização fixada pelo juiz, findo o qual a sentença valerá como título para registro do imóvel em nome dos possuidores. A pretensão não é individual, mas sim coletiva, pois coletiva é a posse. A coletividade possuidora também pode consistir de pessoas indeterminadas, a exemplo da antiga experiência do compáscuo, no qual o imóvel é utilizado pelos rebanhos de várias pessoas, para pastagem comum, sem demarcação de espaço. Estabelece o art. 225 da Constituição que o meio ambiente é bem de uso comum de todos, impondo-se à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo; o meio ambiente, em si, não é domínio do Estado ou de particular, facultando à coletividade o uso comum, que é a contrapartida dos deveres de preservação e defesa.
O direito à posse recebeu especial influxo da ideia de função social da propriedade. A posse, para continuar merecedora da proteção jurídica e ser instrumento mais democrático de acesso das pessoas às coisas, há de realizar sua função social, ao lado da função individual. Toda a rica produção intelectual que se tem em torno da função social propriedade, em nosso meio, aplica-se, com mais razão, à posse, pois é esta que a realiza, na dimensão positiva da utilização real da coisa. Porque, como diz Luiz Edson Fachin (1988, p. 13), a posse não é somente conteúdo do direito de propriedade, mas sim sua causa, entendida com sua força geradora, e sua necessidade, pois exige sua manutenção sob pena de recair sobre a coisa a força aquisitiva, mediante usucapião; por isso, a função social é mais evidente na posse do que na propriedade (p. 19), por sua natureza de uso e utilização.