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Teoria da posse no direito brasileiro

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10/10/2024 às 19:45

Resumo:


  • A posse é um exercício de poder de fato que corresponde ao exercício dos poderes inerentes à propriedade.

  • A posse autônoma é um direito subjetivo próprio, independente da propriedade, conferido pela lei.

  • A posse em confronto com a propriedade é protegida desde seu nascedouro até mesmo quando o possuidor esteja de má-fé.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É necessário considerar a historicidade da posse em cada sistema jurídico. Devido à prevalência da propriedade individual, existe um conflito entre a realidade e a concepção legal.

Sumário: 1. Demarcação do fenômeno. 2. Um pouco de história da posse no Brasil. 3. Animus ou corpus: a persistente disputa de predomínio. 4. Por que a posse é protegida pelo direito? 5. Modelo legal brasileiro de posse. 6. O modo de aquisição da posse determina sua natureza. 7. Titular de posse e detentor. 8. Posse autônoma. 9. Direito à posse. 10. Posse em confronto com a propriedade. 11. Concepções legais brasileiras da posse.


1. DEMARCAÇÃO DO FENÔMENO

A posse é uma das mais longevas experiências de pertencimento de uma coisa a uma comunidade ou a uma pessoa, em todas as sociedades primitivas e avançadas. Todavia, permanece difícil sua qualificação no âmbito do direito. Os juristas resistem em enquadrá-la como fenômeno jurídico, mas não podem deixar de reconhecer os efeitos jurídicos dela originados.

A razão desse inconcluso conflito entre a realidade da posse e sua concepção jurídica radica no triunfo da ideia do direito de propriedade individual, após o advento da modernidade liberal, na viragem do século XVIII para o século XIX, com as características ainda hoje predominantes. A concepção tradicional do direito de propriedade individual parece ser hostil à posse, que apenas é admitida como exercício daquele. A posse perdeu sua importância histórica como legitimação de pertencimento de coisa, fundado na utilidade real, em prol de uma titulação abstrata (ato jurídico com força de transmissão – modelo português – ou ato jurídico mais registro público ou tradição – modelo brasileiro) favorecedora da livre circulação. Contudo, a força dos fatos (a realidade da posse) é maior que a idealização da propriedade, como demonstram as vicissitudes por que passa a legislação brasileira, inclusive o Código Civil de 2002, que destina à posse regulamentação própria, introduzindo o direito das coisas.

A concepção da posse não pode desconsiderar sua historicidade e a orientação adotada em cada sistema jurídico. É, portanto, fadada ao insucesso a concepção da posse que não leva em conta esses fatores determinantes e se eleva a um grau de abstração impreciso, na tentativa de abranger todos os sistemas possíveis.

As teorias, concepções e definições de posse intentam responder determinados questionamentos:

  • a) É direito ou estado de fato?

  • b) É poder de fato sobre uma coisa?

  • c) Se for estado de fato, por que há consequências jurídicas?

  • d) Em que medida a posse pode confrontar a propriedade?

  • e) O que é determinante para sua caracterização, o elemento intencional ou a exteriorização de comportamento típico de dono?

A posse não se contém apenas no direito das coisas, pois é mencionada em outros campos do direito, com significados distintos. No direito de família, há a posse de estado de filiação (CC, art. 1.605) e a posse do estado de casados (CC, art. 1.545). No direito das sucessões, alude-se à posse da herança (CC, art. 1.791). No direito administrativo há a posse de cargo ou função públicos. Porém, é no direito das coisas que a posse assume maior relevância e afirma-se em singularidade, tendo em vista sua larga disseminação na sociedade, inclusive quando em tensão com a propriedade.

As teorias jurídicas brasileiras sobre a posse inclinam-se, em grande maioria, para considerá-la estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao possuidor. Tito Fulgêncio, em obra dedicada à posse, na década de 1930, afirmou que a posse é “poder de fato, instaura-se pelo exercício de fato de algum poder do domínio”, razão porque o ladrão tem a posse, mas não a propriedade, que seria poder de direito adquirido por título justo (2008, p. 6). Esta é a razão de ser denominada a disciplina “direito das coisas”, tradicionalmente adotada no direito brasileiro, como se vê no Código Civil de 2002, e não “direito reais”. Em outro extremo, Darci Bessone pugnou pela pessoalidade da posse, por sua natureza de direito pessoal, situada no direito das obrigações (não é a posse em si que interessa, mas a violência que se pratica contra o possuidor) razão porque decidiu excluí-la da obra que destinou aos “direitos reais” (1996, p. 459).

Partindo de sua conhecida definição de direito como interesse juridicamente protegido, Ihering conclui não haver dúvida de que se deve reconhecer o caráter de direito à posse; se a posse não fosse protegida, constituiria apenas puro fato sobre a coisa, mas só porque é protegida, assume o caráter de relação jurídica, que seria sinônimo de direito (1976, p. 90). Na doutrina portuguesa, José de Oliveira Ascensão (1973, p. 296) afirma que a posse “é um direito verdadeiro e próprio”, porque a situação do possuidor não é apenas um reflexo da defesa da legalidade por parte dos órgãos públicos, é ela própria autonomamente protegida. Há autores brasileiros que sustentaram a tese da posse como direito real, a exemplo de Orlando Gomes (2004, p. 42) e San Tiago Dantas (1979, p. 22).

A orientação majoritária no Brasil da posse como estado de fato, ou poder de fato que o direito reconhece ao titular da posse, é influenciada pela opção centenária do projeto do Código Beviláqua, enunciado no art. 485 do Código Civil de 1916 e mantido, quase integralmente, no art. 1.196 do Código Civil de 2002, de seguinte teor:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.


2. UM POUCO DE HISTÓRIA DA POSSE NO BRASIL

Nos primeiros séculos da existência do Brasil, após o descobrimento pelos portugueses, a posse/utilidade era o título por excelência de pertencimento das coisas. As terras foram concedidas, durante o longo período do sistema de sesmarias, com a condição suspensiva de sua utilização efetiva, sob pena de devolução ao Estado. Ou seja, sem posse efetiva, a concessão se extinguia ou deveria se extinguir.

No Brasil colonial não se transferiam propriedade ou domínio definitivos. As sesmarias foram os instrumentos legais mais utilizados pela metrópole portuguesa, mediante as quais eram concedidas ou legitimadas posses ou direitos de uso sobre vastas extensões de terras, com intuito de povoamento da colônia, desde que fossem efetivamente exploradas dentro do prazo de cinco anos (Ordenações Filipinas, L. 4, T. 43, 3), mas sem transmissão do domínio, que permanecia sob a titularidade do Reino. Não era a terra que o Reino dava, mas a posse ou usufruto dela; um verdadeiro feudo concedido. Esse sistema repercutia o modelo medieval de pluralidade de titularidades sobre o mesmo imóvel. Deu resultado em Portugal, país de pequena extensão territorial, onde foi introduzido em 1375, promovendo a exploração por pequenos agricultores de áreas não ocupadas, para aproveitamento do solo e cultivo, admitindo-se inclusive o confisco de propriedades particulares incultas para tais fins. As cartas de sesmarias, concedidas pelos capitães donatários e pelos governadores gerais haviam de receber confirmação régia, exigência essa de difícil cumprimento, dirigida ao Brasil a partir do final século XVII, na vã tentativa de controlá-las. Nas Ordenações, sesmeiro era o encarregado de dar a carta, mas no Brasil designava o que recebia a sesmaria. A transplantação desse sistema ao Brasil promoveu efeito inverso, pois foi a causa do surgimento de latifúndios largamente improdutivos; não tinha por fito o abastecimento, como em Portugal, mas o povoamento. No Nordeste foram frequentes concessões de terras mais extensas que os territórios dos atuais Estados. Não havia controle da efetiva utilidade, resultando as cartas de sesmarias em títulos abstratos perpétuos e hereditários. “Os sesmeiros, quase sempre potentados de Olinda e Salvador, pediam a terra, legalizavam o domínio e passavam a ganhar dinheiro às custas do sertanista anônimo” (Porto, s/d, p. 71), muitas vezes expulsando os posseiros pobres que já exploravam a terra. Havia, ainda, as terras concedidas para instalação das Vilas, as quais podiam aforar as não utilizadas, as terras reservadas de interesse da Coroa, as terras de marinha e as posses não legitimadas.

Esse quadro tumultuário de desorganização fundiária persistiu até à independência em 1822, tendo o Império determinado a extinção das sesmarias e procurado estabelecer algumas diretrizes, no trânsito do modelo medieval de pluralidades das titularidades sobre a coisa, para o modelo de titularidade exclusiva, da modernidade liberal, à qual a Constituição de 1824 pretendeu estar vinculada. O art. 179 dessa Constituição proclama a inviolabilidade da propriedade do cidadão e nenhuma referência faz à posse.

Em 1850 foi editada a Lei 601, conhecida como “Lei de Terras”, considerando como terras devolutas, integrantes do domínio público nacional, as que não se encontravam legitimamente dadas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, ou efetivamente ocupadas com posses, que (art. 3º) “apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei”. Note-se que a lei reconheceu que a posse não se fundava em “título legal”, mas era reconhecida como título social para ser por ela legitimada. Mesmo as posses que se achavam em áreas de sesmarias ou de outras concessões do governo, foram legitimadas, se iniciadas antes das medições daquelas, ou após estas, se perduravam por dez anos. É certo dizer que a Lei 601 visava à proteção dos simples posseiros ou sesmeiros irregulares, elevando sua situação fática à situação jurídica, mas incorrendo no erro de tornar ilegítimas as posses não tituladas, a partir dela.

Mas as ocupações continuaram, após a “Lei de Terras” e até mesmo nas que esta denominou terras devolutas, exigindo novas soluções legais e judiciárias. O sentido originário de terra devoluta era de sesmaria que, descumprido requisito essencial, voltava, era “devolvida” à Coroa; depois, passou a ser empregado para todo solo desocupado e vago. O Código Civil de 1916, finalmente, passou a regular de modo sistemático a posse, destacada da propriedade, no que foi seguido pelo Código Civil de 2002. A posse, portanto, é protagonista constante da evolução do direito das coisas no Brasil.


3. ANIMUS OU CORPUS: A PERSISTENTE DISPUTA DE PREDOMÍNIO

Qual o elemento nuclear decisivo para a existência ou não da posse? Para alguns é o elemento psicológico ou intencional, ou seja, a intenção de possuir a coisa como se fosse o proprietário dela (animus). Para outros é o comportamento exteriorizado equivalente ao de proprietário da coisa (corpus), independentemente da intenção. Duas atitudes podem ainda ser encontradas: 1. A primazia de um dos elementos não afasta a existência do outro, ainda que complementar. 2. A escolha de um dos elementos afasta o outro, por desnecessidade ou incompatibilidade.

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Em se tratando de posse, não há como desconsiderar a célebre disputa sobre os elementos fundamentais da posse, ocorrida no século XIX, entre os juristas alemães Savigny e Ihering. Seus reflexos permanecem na atualidade, como se nota na jurisprudência dos tribunais brasileiros, com resultados distintos.

Para Savigny a posse é um poder de fato assemelhado a um direito, composto de dois elementos integrantes: o corpus (apreensão física da coisa) e o animus domini (a intenção de ter a coisa como se dono fosse) (1893, p. 187). Contudo, o elemento determinante da verdadeira posse é o animus. Os atos materiais de utilização e exercício da posse sobre a coisa (corpus) são irrelevantes. O ânimo de dono, próprio do possuidor, se opõe ao ânimo de detenção em nome do dono. Apenas o que age intencionalmente como se dono fosse pode ser considerado possuidor - o que afastaria dessa qualificação os titulares de direitos reais limitados. Deu-se-lhe a denominação de teoria subjetiva.

Para Ihering, contrariamente, o que importa são os fatos exteriores e objetivos da utilização da coisa, equivalentes aos atribuídos ao proprietário. Designa pelo nome de corpus a relação exterior da pessoa com a coisa, demonstrada pela apreensão (1976, p. 107). Não é o poder físico, mas “a exteriorização da propriedade”. O próprio Ihering denominou sua teoria de objetiva, ainda que não tenha suprimido inteiramente o elemento intencional, que estaria subtendido nos fatos exteriores, pois a pessoa que tem uma coisa em seu poder tem necessariamente a intenção de exercer sobre ela um direito. Assim, a pessoa não possui a coisa que lhe põem na mão enquanto dorme. A teoria objetiva exerceu forte influência no Código Civil alemão – e nos que lhe seguiram -, cujo artigo 854 estabelece que “a posse de uma coisa se adquire mediante o poder de fato sobre a coisa”, sem qualquer referência ao elemento intencional.

Sustenta-se que os dois elementos, o material e o intencional, devem ser reunidos: a simples vontade de se comportar como proprietário não é suficiente para a posse, devendo ser materializada a detenção ou a utilização da coisa; igualmente, o corpus não basta, pois o locatário, que exterioriza a posse, não a tem no sentido próprio, por lhe faltar o animus de se comportar como dono (Weill; Terré; Simler, 1985, p. 146).

Quem defende a prioridade do elemento intencional, entende que sem o animus de se comportar como o proprietário da coisa há mera detenção da coisa, mas não posse. Todavia, o locatário de coisa em nosso direito é possuidor, sendo-lhe atribuída idêntica tutela jurídica, não se comportando como se proprietário fosse, pois não o é, nem sendo mero detentor em nome do proprietário. A situação jurídica do locatário como possuidor direto de interesse próprio legitima-o a defender sua posse contra o proprietário e terceiros. Do mesmo modo o usufrutuário é possuidor em nome próprio e não em nome do proprietário e não se comporta como se proprietário fosse, pois seu direito real é reconhecidamente limitado a usar e fruir a coisa.

Tanto uma teoria quanto outra têm a propriedade como paradigma, o que reduz a função da posse e sua autonomia. A posse seria a imagem e a semelhança, no campo fático, da propriedade. Savigny e Ihering não escaparam das circunstâncias de seu tempo da primazia da função individual da propriedade, tida como direito subjetivo por excelência. Para Savigny a posse, de acordo com a propriedade, era emanação da vontade e da liberdade individual. Para Ihering, era a exteriorização da propriedade.


4. POR QUE A POSSE É PROTEGIDA PELO DIREITO?

Se a posse não é efeito de fato jurídico, notadamente se não é direito subjetivo, então por que é protegida pelo direito? E mais, por que dela emanam consequências jurídicas necessárias? As respostas dependem das concepções de posse e, principalmente, dos elementos fundamentais que a caracterizam em cada sistema jurídico.

A proteção jurídica da posse é tanto positiva quanto negativa. É positiva quando garante seu exercício e sua função social. É negativa, quando repele a lesão de terceiros e até do proprietário, que intentem impedir ou suprimir seu exercício pelo possuidor. Compõem a proteção jurídica da posse: a) a autodefesa, que é a defesa imediata à injusta violação, como turbação ou esbulho; b) a manutenção ou reintegração judiciais da posse; c) a indenização dos danos sofridos pelo possuidor.

Ihering fez-se a mesma pergunta e a respondeu que a garantia do possuidor não assenta no poder físico de que é capaz de “excluir a ação de pessoas estranhas sobre a coisa”, como afirmava Savigny, mas porque a lei proíbe essa ação; ela não assenta numa barreira física, mas numa barreira jurídica (1976, p. 109). Sob o ponto de vista positivo, não é para dar ao possuidor o poder físico sobre a coisa, mas para lhe tornar possível o uso econômico da coisa.

A proteção jurídica da posse está condicionada ao exercício contínuo desta. Se o possuidor não mantém a posse, quando pode fazê-lo, ela é considerada perdida ou abandonada, não sendo mais merecedora de proteção. Essa era a orientação já adotada no antigo direito romano. Como disse Ihering, na posse a permanência da relação de fato é a condição do direito à proteção; o possuidor não tem direito senão enquanto possui.

Além de sua proteção jurídica, que se encontra no plano da defesa, a posse é exercício de fato de poderes correspondentes aos poderes jurídicos do proprietário, como estabelece o Código Civil brasileiro. Estende-se à posse, consequentemente, a tutela legal do exercício dos poderes e deveres de proprietário. Assim, são aplicáveis ao possuidor os direitos de vizinhança, os direitos e deveres do condômino em edifício de apartamentos, as regras sobre a servidão, se o imóvel possuído tem servidão. O que se protege, na posse, não são os direitos, mas poderes fáticos que correspondem a esses direitos.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

A posse, assim como a propriedade, deve exercer uma função social e não apenas individual, segundo o estalão constitucional (arts. 5º, XXIII; 170, III, da Constituição). Assim, não basta o uso econômico da coisa, que se revela por sinais exteriores, mas é necessário que realize a função social, segundo os critérios legais, para que a proteção seja assegurada à posse.


5. MODELO LEGAL BRASILEIRO DE POSSE

A redação dada ao art. 485 do Código Civil de 1916 – e repetida no Código Civil de 2002 - foi inspirada no explícito desejo do legislador de distanciamento da teoria subjetivista da posse. O parecer do relator do projeto do Código anterior, na Câmara dos Deputados, afirmou, contraditando explicitamente Savigny, que “a posse existe com a intenção de dono, mas também pode existir sem ela e até com o reconhecimento de outro dono, e bem assim com o poder físico de dispor da coisa como sem ele; e se em geral sua defesa é exercida contra agressões de terceiro, não raro o é contra as do dono, reconhecido como tal pelo próprio possuidor” (Fulgêncio, 2008, p. 6).

O art. 1.196 Código Civil de 2002, não conceitua a posse, optando por concentrar-se na figura do possuidor, considerado o “que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” podendo ser desdobrada nos seguintes componentes:

  1. Exercício de fato

  2. (da) totalidade ou parte (de)

  3. Poder inerente à propriedade

De longa tradição, o titular do direito de propriedade pode exercer os seguintes poderes: uso, fruição e disposição da coisa. Não são poderes de fato; são poderes juridicizados. O proprietário pode ou não se utilizar deles. Para a norma legal brasileira, não são esses poderes, enquanto tais, que são objeto da tutela possessória, mas sim o exercício de fato de qualquer deles pelo possuidor, proprietário ou não. O exercício de fato é o que não se oriunda de título jurídico legitimado. Para ser considerado possuidor é suficiente que tenha o exercício de fato de parte ou da totalidade de qualquer desses poderes em relação à coisa (pode usar, sem fruir, por exemplo).

A norma legal brasileira não declara que a posse seja o poder de fato sobre a coisa, não exige o elemento intencional, nem impõe a exteriorização do comportamento próprio de dono da coisa. Assim, não seguiu a teoria subjetivista, que o legislador originário procurou evitar, nem a teoria objetivista, em sua pureza, nem a fusão de ambas. Nem Savigny, nem Ihering.

O Código Civil rejeitou a limitação da posse à posse do proprietário. Reconhece a posse direta em outras relações jurídicas reais, como a posse dos titulares do usufruto, do uso, da habitação, do penhor, da anticrese, da concessão de uso especial para moradia, do direito de promitente comprador, da superfície. Também reconhece a posse direta de figurantes de negócios jurídicos, como as do locador, do comodatário. Não são possuidores em nome alheio, mas sim posses próprias. A teoria contemporânea da posse muito deve à distinção entre posse direta e posse indireta; ambas são posses protegidas. O que não é proprietário pode possuir e o que deixou de ser proprietário pode continuar possuindo a mesma coisa. O art. 1.196 do Código Civil não considera possuidor o que tem de fato o exercício do direito de propriedade, mas sim o que tem de fato o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade. É exercício fático de poderes, sem dependência a qualquer direito. É, portanto, no mundo dos fatos que vê a posse em sua autonomia e não confinada na propriedade.

No direito brasileiro, a posse da herança se transmite aos herdeiros de modo automático, com a abertura da sucessão, ainda que esses não tenham conhecimento ou manifestado aceitação expressa ou tácita, como se depreende do art. 1.784 do Código Civil. É o triunfo da saisine plena, sem paralelo com os direitos de outros países. A aceitação – que no direito português, por exemplo, é imprescindível para que se opere a transmissão da herança – tem função meramente confirmatória. Apenas se exige manifestação expressa para a renúncia à herança. Consequentemente, não há animus na aquisição da posse da herança, nem corpus, pois não há necessidade de sua exteriorização como dono (ou condômino).

Ainda com relação à posse da herança, decidiu o STJ (REsp n° 537363) que o exercício fático da posse não é requisito essencial, para que este tenha direito à proteção possessória contra eventuais atos de turbação ou esbulho, tendo em vista que a transmissão da posse (seja ela direta ou indireta) dos bens da herança se dá por força de lei, independentemente da prática de qualquer outro ato.

Na doutrina jurídica brasileira, foi Pontes de Miranda quem melhor identificou essa peculiaridade de nosso modelo legal de posse, principalmente no tomo X de seu Tratado de Direito Privado (2012[1954]). Segundo ele, no assunto da posse, o direito brasileiro trilhou caminho próprio, distanciando-se da disputa entre as teorias subjetivistas e objetivistas, não reputando como elemento necessário tanto o corpus quanto o animus. A referência ao animus muito concorreu para que se entravasse o desenvolvimento da teoria da posse. Reduzir a posse a exercício de direito (corpus) é por aquém da posse, que se passa no mundo fático, o que já resulta de outros fatos jurídicos, uma vez que direitos são efeitos jurídicos; se fosse assim, a proteção à posse seria espécie de proteção de direitos (p. 109). O fundamento da posse é o princípio da conservação do fático. Resumindo seus pressupostos, podemos dizer que a posse é relação fática entre a pessoa e a comunidade, diferentemente da propriedade que é relação jurídica entre a pessoa e a comunidade. Quem toma posse de um terreno sem oposição está no mundo fático. Mas, quando há oposição à posse esta ingressa no mundo jurídico como fato jurídico. Ou quando ela ofende direito alheiro. Ou quando é objeto de algum negócio jurídico. A posse deixa o mundo fático e é juridicizada. Então o sistema jurídico protege a posse, ou protege o direito contra a posse; é o momento da entrada da posse no mundo jurídico.

Segundo Pontes de Miranda, a posse é estado de fato em que acontece poder (de fato), mas não é ato de poder; compreende-se como possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse proprietário. Não se precisa de qualquer ato para que se possua; o herdeiro recebe a posse sem qualquer ato. Em virtude da limitação do poder exercido, há posse como usuário, como usufrutuário, como locatário, como depositário, como credor pignoratício, como comodatário, que também estão abrangidos pela definição legal. “O legislador brasileiro definiu a posse, vendo-a do mundo jurídico, mas sabendo que ela está no mundo fático, que é apenas elemento fático que pode vir a entrar no mundo jurídico em virtude de algum ato jurídico ou negócio jurídico que a tome como um de seus elementos” (p. 58) ou de oposição. Por isso não é correto dizer-se posse de propriedade, ou de direito real, ou de direito pessoal. Exemplificando, não há posse de usufruto, mas posse como usufrutuário. E há direitos reais a que não pode corresponder posse, como a hipoteca.

Pontes de Miranda também contesta (p. 132) os que diziam – e os que ainda dizem – que a posse é fato, mas, por seus efeitos, direito, como os antigos civilistas brasileiros Antônio Joaquim Ribas e Lafaiete Rodrigues Pereira, pois não prestaram atenção a que não há direito sem ser efeito de fato jurídico e a que todo fato, que tem efeitos, é fato jurídico.

Há casos de posse que não consistem em exercício de direito, como exemplificamos na posse da herança, e, diz Pontes de Miranda (p. 108), há exercício de direitos que não consistem em qualquer poder fático a que se possa chamar posse, demonstrando-se “quão vicioso é falar-se em exteriorização do direito, aparência do direito, ou de situação jurídica correspondente a direito”.

Esclarece Pontes de Miranda a tormentosa questão da natureza da transmissão da posse, posto que situação de fato. Diz que (p. 124), no momento em que o possuidor transmite, o ato de transmissão entra no mundo jurídico e, implicitamente, dá entrada à posse. Com sua entrada no mundo jurídico é que se considera a posse como fato jurídico e fonte de direitos, pretensões, deveres e obrigações.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Teoria da posse no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7771, 10 out. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105907. Acesso em: 21 dez. 2024.

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