Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Capa da publicação Socioafetividade e multiparentalidade e seus efeitos no parentesco avoengo
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Socioafetividade e multiparentalidade e seus efeitos no parentesco avoengo

Exibindo página 2 de 3
Agenda 13/04/2024 às 15:31

7. A decisão do STF em repercussão geral reconhecida sobre socioafetividade e multiparentalidade – Tema 622

Assim se encontravam a doutrina e a jurisprudência brasileiras quando o STF reconheceu como repercussão geral a matéria da socioafetividade e consolidou seu entendimento, como Tema 622, em decisão plenária tomada no dia 22/09/2016, tendo como caso paradigma o RE 898.060, com a seguinte tese geral:

A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.

O Tribunal fundou-se explicitamente no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que inclui a tutela da felicidade e da realização pessoal dos indivíduos, impondo-se o reconhecimento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional. Igualmente, no princípio constitucional da paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), que não permite decidir entre a filiação socioafetiva e a biológica, devendo todos os pais assumir os encargos decorrentes do poder familiar e permitindo ao filho desfrutar dos direitos em relação a eles sem restrição.

O Min. Luiz Edson Fachin - acompanhado pelo Min. Teori Zavascki – apresentou voto substancialmente divergente do Relator. Vencidos, quanto à solução a ser adotada no caso concreto, aderiram ao final à redação jurídica geral aprovada pela maioria (divergiram desta os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio).

O item 13 da Ementa do Acórdão indica que, mercê desses fundamentos constitucionais, impõe-se o reconhecimento conjunto da filiação socioafetiva e da filiação biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo, “quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos”. Todavia, esse requisito de melhor interesse, que também comparece como hipótese admissível de multipropriedade no voto divergente do Min. Edson Fachin, não figurou na redação da tese jurídica geral.

Eis, resumidamente, o caso concreto que serviu de paradigma para a tese jurídica acima transcrita: F. G., à época com dezenove anos de idade, ingressou com ação de investigação de paternidade, cumulada com pedido de alimentos e retificação de registro civil, contra A. N., alegando que era filha biológica deste, apesar de ter sido criada pelo marido de sua mãe, que a registrou como filha, quando nasceu. Exame de DNA consensual confirmou o vínculo biológico. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido. O Tribunal estadual reformou a sentença, entendendo que, apesar do vínculo biológico, a paternidade socioafetiva consolidada em largo tempo deveria prevalecer. O mesmo Tribunal, apreciando embargos infringentes, fez prevalecer a paternidade biológica, com alteração do registro de nascimento e fixação de obrigação alimentícia desde a citação até ao final do curso universitário da autora recorrida. Irresignado, o genitor biológico interpôs recurso extraordinário ao STF.

Constata-se que o STF confirmou o reconhecimento jurídico da socioafetividade. Como o julgamento em repercussão geral produz eficácia geral, de cumprimento obrigatório pelo sistema judiciário, a socioafetividade e, principalmente, a filiação socioafetiva não poderão ser mais questionadas em juízo.

Ainda que o Tribunal não tenha utilizado a expressão “parentalidade socioafetiva”, a alusão à “paternidade socioafetiva” deve ser entendida como abrangente da maternidade socioafetiva. Por igual, abrange as linhas de parentesco avoengo daí decorrentes. A exclusão da maternidade socioafetiva e das linhas de parentesco decorrentes importaria tratamento desigual para situações equivalentes do mundo da vida, o que contrariaria os pressupostos sobre os quais o Tribunal decidiu. Portanto, há seu reconhecimento implícito.

Outro ponto relevante é o reconhecimento de que a filiação socioafetiva não apenas se constata pela declaração ao registro público, mas também pela ocorrência no mundo da vida, notadamente pela posse do estado da filiação, cujos efeitos jurídicos independem do registro público, ao qual é atribuída função declaratória, do mesmo modo que à sentença judicial.

O que surpreendeu a doutrina especializada foi a amplitude que o STF conferiu ao tema, pois, além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva, avançou no sentido de contemplar a multiparentalidade. É o que se extrai dos termos “reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica”. O vínculo de filiação “concomitante” leva à multiparentalidade. Ou seja, na hipótese explicitada de paternidade, de acordo com o caso concreto que serviu de paradigma, o registro civil deve contemplar dois pais, isto é, o pai socioafetivo e o pai biológico, além da mãe biológica; dois pais e uma mãe.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A decisão do STF provocou verdadeiro giro de Copérnico. Até então, no conflito entre parentalidade socioafetiva e origem genética, esta não podia prevalecer sobre aquela (notadamente nos casos de “adoção à brasileira”), máxime quando o móvel fosse patrimonial ou econômico, notadamente participar da sucessão de genitor biológico afortunado. A rejeição a essa pretensão já tinha sido objeto de antigo precedente do STF, em 1970, tendo sido relator o Min. Aliomar Baleeiro7. Doravante, as discussões sobre a origem biológica e a força desta para afastar a parentalidade socioafetiva perderam consistência.

Por ser tema de repercussão geral, não pode ficar adstrito ao caso concreto. Destarte, têm-se como abrangidas as hipóteses de mãe e pai socioafetivos registrados, aos quais se pode acrescentar a mãe biológica, ou o pai biológico ou ambos, o que resultará em três ou quatro pais e seis ou oito avós, no total.


8. As razões do voto divergente no STF sobre o Tema 622

Em seu voto divergente, o Min. Edson Fachin procurou precisar os pontos essenciais de sua divergência, em sintonia com a construção doutrinária dominante e sua recepção jurisprudencial, tanto em relação ao caso concreto, quanto – o mais importante – em relação à tese jurídica geral (a qual terminou por adotar orientação estranha à evolução do direito brasileiro; o Ministro Relator invoca a experiência do Estado de Louisiana, nos Estados Unidos, para concluir pela possibilidade jurídica de multiparentalidade). São eles, incluindo os expostos na antecipação de seu voto:

O voto conclui pelo provimento parcial do recurso extraordinário do genitor biológico para que, prevalecendo (no caso) os efeitos jurídicos do vínculo socioafetivo, sem a retificação do registro civil pretendida, fique resguardado o direito da recorrida de reconhecimento de sua origem biológica, porém sem fins de parentesco.

O voto condutor do Ministro Relator, todavia, orientou-se pela admissibilidade da multiparentalidade (dois ou mais pais ou mães socioafetivos e biológicos), pelas razões já expostas. A tese jurídica geral adotada, como salientado, não incluiu o requisito de excepcionalidade, quando presente o melhor interesse do descendente, apesar de referido no item 13 da Ementa do Acórdão.


9. Os “efeitos jurídicos próprios” da tese geral do Tema 622 na parentalidade avoenga

Ante a concisão das teses dos temas de repercussão geral, as expressões amplas utilizadas são exigentes de interpretação, de acordo com os princípios e pressupostos que os inspiraram. Tal se dá com a expressão “com os efeitos jurídicos próprios”.

A análise do julgamento do caso concreto paradigma pouco contribui, até porque a decisão que o STF nele proferiu é exatamente contrária ao que estipula a tese geral, no que concerne à multiparentalidade. No caso concreto, a maioria do Tribunal, contraditoriamente, confirmou as decisões judiciais anteriores no sentido do cancelamento do registro da paternidade socioafetiva, para se fazer constar apenas a paternidade biológica.

Do núcleo da tese do Tema 622 resultam as seguintes conclusões, que nos permitem avançar nos efeitos jurídicos próprios:

  1. O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva;

  2. A inexistência de primazia entre as filiações biológicas e socioafetivas;

  3. A admissão da multiparentalidade.

  4. A parentalidade socioafetiva – para os fins da tese - restringe-se às hipóteses de posse de estado de filiação, excluindo-se a adoção e a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga. Também está excluída a filiação biológica que nunca foi antecedida por filiação socioafetiva.

Assim sendo, em relação aos efeitos da origem genética ou biológica:

Os direitos e deveres jurídicos do filho com múltiplas parentalidades são iguais em face dos pais e avós socioafetivos e biológicos, particularmente quanto:

Os avós, tanto os biológicos quanto os socioafetivos apenas são obrigados aos alimentos em caráter complementar, distribuídos de acordo com as possibilidades econômicas de cada um. Como o dever de alimentos na linha reta de parentesco é ilimitado, o filho com múltiplos pais e avós pode se obrigar a todos eles. Na hipótese de a mãe estar separada tanto do pai biológico quanto do pai socioafetivo, o filho poderá reclamar alimentos tanto a um quanto a outro, de acordo com as possibilidades econômicas de cada um.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Socioafetividade e multiparentalidade e seus efeitos no parentesco avoengo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7591, 13 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105912. Acesso em: 21 abr. 2025.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!