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Socioafetividade e multiparentalidade e seus efeitos no parentesco avoengo

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13/04/2024 às 15:31
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Examima-se a decisão do STF em repercussão geral reconhecida sobre socioafetividade e multiparentalidade – Tema 622.

Sumário: 1. Socioafetividade como categoria do direito de família brasileiro. 2. Socioafetividade na filosofia, na antropologia, na história, na psicanálise e na demografia. 3. Critérios legais da parentalidade socioafetiva. 4. As hipóteses legais de parentalidade socioafetiva. 5. Não há supremacia da origem biológica sobre a origem socioafetiva nem desta sobre aquela. 6. Não há falsidade ou erro no registro civil da parentalidade socioafetiva. 7. Multiparentalidade ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais, mães e avós. 8. A decisão do STF em repercussão geral reconhecida sobre socioafetividade e multiparentalidade – Tema 622. 9. As razões do voto divergente no STF sobre o Tema 622. 10. Os “efeitos jurídicos próprios” da tese geral do tema 622/STF e suas repercussões na parentalidade avoenga. 11. Multiparentalidade e sucessão hereditária em relação aos avós.


1. Socioafetividade como categoria do direito de família brasileiro

A socioafetividade, como categoria jurídica, é de origem recente no direito brasileiro. Em grande medida resultou das investigações das transformações ocorridas no âmbito das relações de família, máxime das relações parentais, desde os anos 1970.

Entre os juristas, houve a instigação especial do impacto provocado pelo advento da Constituição de 1988, que revolucionou o tratamento fundamental dado aos integrantes das entidades familiares, superando o histórico quantum despótico que as caracterizava, afastando-se os últimos resíduos dos poderes domésticos, principalmente o poder marital e o pátrio poder.

Permitam-nos destacar três trabalhos nessa direção, em momentos distintos, que confluíram para demonstrar a dimensão jurídica da afetividade nas relações de filiação, no direito brasileiro, antes e após a Constituição de 1988:

a) Em 1979, João Baptista Villela, com Desbiologização da paternidade, no qual o autor afirma que não tem, a paternidade, em essência, conteúdo biológico, sendo sempre uma opção, pois, inclusive, pode realizar-se sobre prole alheia1.

b) Em 1989, nosso Repersonalização das relações familiares, no qual concluímos que, na longa evolução jurídica da família, sua função afetiva que esteve por séculos reprimida, emergiu com força para substituir as tradicionais funções procracional, econômica, política e procracional da família patriarcal. A afetividade projetou-se como princípio jurídico, máxime após a Constituição de 19882.

c) Em 1996, Luiz Edson Fachin, com Da paternidade: relação biológica e afetiva, assinalando a recuperação, no âmbito do direito de família, da noção de posse de estado de filho, na relação paterno-filial, como realidade sociológica e jurídica. Foi um dos primeiros, entre nós, a utilizar o termo “socioafetivo”, que conquistou a doutrina especializada3.

A socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com os vínculos de origem biológica. A evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo. Os termos “socioafetividade” e seus correlatos congregam o fato social (“socio”) e a incidência do princípio normativo (“afetividade”).

Não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. Interessam, como seu objeto próprio de conhecimento, as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecer a incidência de normas jurídicas e, consequentemente, deveres jurídicos. O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe tomando-o como referência. Uma pessoa não pode ser obrigada pelo direito a ter afeto real por outra, até mesmo entre pais e filhos. Mas, o direito pode instituir deveres jurídicos e impor comportamentos inspirados nas relações afetivas reais.

Qualquer relação parental/filial é socioafetiva, porque brota de sua raiz cultural adotada pelo direito. Nesse sentido, a parentalidade socioafetiva é gênero, da qual a parentalidade biológica e a parentalidade socioafetiva em sentido estrito são espécies. É neste sentido estrito que empregaremos a expressão doravante nesta exposição.

A parentalidade socioafetiva consolidou-se na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras orientada pelos seguintes eixos: 1. Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica (socioafetiva); 2. Igualdade de direitos dos filhos biológicos e socioafetivos; 3. Não prevalência a priori ou abstrata de uma filiação sobre outra, dependendo da situação concreta; 4. Impossibilidade de impugnação da parentalidade socioafetiva em razão de posterior conhecimento de vínculo biológico; 5. O conhecimento da origem biológica é direito da personalidade sem efeitos necessários de parentesco.


2. Socioafetividade na filosofia, na antropologia, na história, na psicanálise e na demografia

A socioafetividade não é elaboração cerebrina ou mera racionalização lógica. É fruto de longo desenvolvimento da consideração do afeto e da afetividade no desenvolvimento das sociedades modernas e contemporâneas e das pessoas humanas, enquanto integrantes dos grupos familiares.

Na filosofia, Espinoza e depois Kant demonstraram que os afetos ou sentimentos não poderiam ser inteiramente afastados do mundo da razão, como pretendeu Descartes. Para Espinosa há que se distinguir o afeto bruto sem controle da razão (paixão) do afeto atravessado pela razão, que ele denominou de “afecção” pois afetada pela ação ou potência de agir4. Kant, por sua vez, afirmou que o amor, enquanto inclinação, não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever é amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na sensibilidade5.

Na antropologia e na etnologia, as pesquisas dos grupos humanos antigos ou atuais revelaram que as relações familiares são fundadas na cultura desenvolvida nesses grupos e não na natureza. Antes, os mitos e as forças mágicas, depois a tradição da autoridade de natureza religiosa, finalmente os costumes e a ética normativa.

A história revela a lenta erosão das funções tradicionais das famílias, cujo epílogo dar-se-á na segunda metade do Século XX. As funções religiosas, políticas, econômicas e até mesma as procracionais da família foram perdendo consistência ao longo da história. Assim, a erosão das antigas funções fez emergir a função de afetividade, da família como locus de interlocução afetiva e de realização da dignidade humana de seus integrantes.

A psicanálise confirmou o que a antropologia já tinha descoberto: a família é construção cultural e não ditada pela natureza. As limitações e repressões não têm fundamentação científica.

A demografia trouxe e traz informações contundentes sobre as mudanças na composição das famílias, no Brasil, principalmente nas últimas décadas. As análises dos dados demonstram que a família tomada paradigma para a legislação brasileira, ao longo do século XX, deixou de existir. Deixou de ser numerosa, caindo profundamente o número de crianças por mãe. Não gira mais sob dependência econômica exclusiva do pai. A emancipação feminina, inclusive econômica, a conversão dos filhos de objetos a sujeitos de direitos e a urbanização intensa implodiram seus fundamentos tradicionais. É a família nuclear, de dimensões pequenas, ao lado de famílias monoparentais e múltiplos arranjos familiares, além de considerável número de domicílios de pessoas que vivem sós. É o afeto e a solidariedade familiar e não outros interesses ou funções que unem seus integrantes.

Exemplificando-se com a família matrimonial, a grande transformação ocorrida foi a substituição dos casamentos arranjados, em razão de fins econômicos, sociais ou religiosos, pelos casamentos por amor.


3. Critérios da parentalidade socioafetiva

Orientados pela necessidade de segurança jurídica, com a massa de dados e informações obtidos de investigações variadas, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais foram progressivamente construindo critérios que conformassem essa categoria jurídica, nas relações parentais, notadamente de filiação. Esses critérios são interligados e podem ser assim enunciados:

a) Comportamento social típico de pais e filhos. O comportamento que se tem entre pais e filhos deve ser aferível socialmente. É típico porque se repete de modo subjetivo e objetivo em todos os relacionamentos equivalentes, de modo a que qualquer pessoa possa identificá-los como os que ocorrem regularmente entre pais e filhos. No Brasil, a doutrina tradicionalmente desdobra esse requisito em três outros, segundo antiga lição: nome, quando um dos pais ou ambos atribuem seus sobrenomes ao perfilhado, mediante registro civil; b) trato, quando um ou ambos os pais tratam socialmente o perfilhado como seu filho; c) fama, quando a comunidade onde vivem os pretensos pais e filhos os reconhecem assim, segundo as circunstâncias. Porém, esses requisitos não são cumulativos e basta um deles ou outras circunstâncias distintas para gerar o convencimento judicial da existência de comportamento social típico entre pais e filhos.

b) Convivência familiar duradoura. O comportamento social típico de pais e filhos apenas se consolida quando ocorre convivência familiar, ou seja, quando essas pessoas integrem uma entidade familiar juridicamente reconhecida e convivam assim. Essa convivência há de ser duradoura e não episódica. O direito brasileiro não impõe um tempo determinado para que se caracterize a convivência familiar, mas há de ser suficiente para que se identifiquem laços familiares efetivos e não apenas relações genericamente afetivas.

c) Relação de afetividade familiar. As relações entre as pessoas devem ser de natureza afetiva e com escopo de constituição de família, para que se constitua estado de parentalidade e de filiação. Devem ser desconsideradas como tais as que tenham outro escopo ou interesse, ainda que haja convivência sob o mesmo teto. Assim, não há afetividade familiar no acolhimento doméstico que uma pessoa dá a uma criança desabrigada, ou na relação social entre padrinhos e madrinhas e seus afilhados, ou na prática de apadrinhamento de criança que viva em instituição de acolhimento.


4. Hipóteses legais de parentalidade socioafetiva

No Código Civil, identificamos as seguintes referências da clara opção pelo paradigma da filiação socioafetiva:

a) art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;

b) art. 1.596, que reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo;

c) art. 1.597, V, que admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por ulterior investigação de paternidade;

d) art. 1.605, consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato;

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Portanto, as hipóteses legais de parentalidade socioafetiva são a adoção, a filiação derivada de técnica de inseminação artificial heteróloga e a posse de estado de filiação. A terceira é a que interessa aos propósitos deste estudo.


5. Não há supremacia da origem biológica sobre a origem socioafetiva nem desta sobre aquela

Sobre a distinção entre direito ao conhecimento da origem genética e direito à parentalidade e parentesco, expressamos nosso ponto de vista quanto à sua necessidade, tendo em vista se tratar de direitos subjetivos e deveres jurídicos que não se confundem6.

O estado de filiação e os laços de parentesco decorrentes, originados da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, de acordo com os critérios legais, constituem fundamentos essenciais da atribuição de parentalidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade ou a maternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a parenalidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga.

Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.

A evolução do direito conduz à distinção, que já se impõe, entre pai e genitor ou procriador. Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Ao ser humano, concebido fora da comunhão familiar dos pais socioafetivos, e que já desfruta do estado de filiação, deve ser assegurado o conhecimento de sua origem genética, ou da própria ascendência, como direito geral da personalidade.

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. A paternidade e a maternidade derivam do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). Na hipótese de inseminação artificial heteróloga, o filho pode vindicar os dados genéticos de dador anônimo de sêmen que constem dos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade.

Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não determina a paternidade jurídica. O biodireito depara-se com as consequências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

O reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva fez ressaltar a solução para o eventual conflito de tutelas jurídicas desta e da origem biológica. A situação comum é a pretensão do filho socioafetivo ajuizar ação de investigação de paternidade, com intuito de ver judicialmente reconhecida a paternidade do genitor biológico e, consequentemente, o cancelamento do registro civil da primeira, principalmente para fins sucessórios, dado a que o direito brasileiro não admitia a dupla paternidade. O mesmo se aplica à maternidade socioafetiva em face da genitora biológica.

Algumas correntes se formaram na doutrina e na jurisprudência, mas prevaleceu a tese de que a parentalidade biológica não era dotada de supremacia sobre a parentalidade socioafetiva, pois esta desigualdade não é admitida pela Constituição. Assim, a pretensão do interessado deveria ater-se à garantia do direito fundamental ao conhecimento de sua origem genética, sem efeitos de parentesco.

Todavia, no STJ, algumas decisões mitigaram o alcance desse entendimento, ainda que fazendo ressaltar a igualdade jurídica das parentalidades biológicas e socioafetivas, em circunstâncias determinadas. Assim, entendeu-se que a parentalidade socioafetiva prevaleceria contra o pai ou a mãe que pretendesse desfazê-la. Mas não contra o filho, pois este poderia fazer prevalecer a parentalidade biológica, dado a que não teria manifestado sua vontade para aquela, em situações conhecidas como de “adoção à brasileira”, quando o declarante no registro público não é o genitor biológico. Contra esse entendimento, que contrariou decisões anteriores do mesmo Tribunal, levantaram-se várias argumentações doutrinárias, inclusive a nossa, pois também o registro da parentalidade biológica não pode ser contestado pelo filho, inclusive ao adquirir a capacidade civil plena, o que levou a tratamento jurídico desigual.

Há grande consenso na doutrina e na jurisprudência quanto a não se configurar a filiação socioafetiva, na hipótese de esta resultar de sequestro ou outro ato considerado criminoso. Porém, essa regra não é absoluta, pois não pode ser aplicada contra a vontade manifestada pelo filho de continuar na família que o criou, apesar de informado da circunstância criminosa. O filho não pode ser duplamente punido por fato, cuja existência não deu causa.


6. Multiparentalidade ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais, mães e avós

O direito de família brasileiro sempre teve entre seus pilares o modelo binário de parentalidade em relação aos filhos. Segundo o padrão tradicional, o casal constituído de pai e mãe. Quando os pais não fossem casados e apenas um fosse o declarante do nascimento no registro civil, caberia a pretensão à investigação da paternidade ou maternidade em relação ao outro, se não tivesse havido o reconhecimento voluntário. Essa regra era aplicável tanto à parentalidade biológica quanto à socioafetiva.

Com a decisão do STF (ADI n. 4.277) em 2011, a união homoafetiva foi juridicamente reconhecida como entidade familiar, com igual tutela jurídica conferida às demais entidades familiares. Nessa entidade familiar, o modelo binário da parentalidade continuou, dado a que se encerra no casal de pessoas do mesmo sexo, excluídas terceira ou terceiras pessoas.

Todavia, paralelamente à construção da categoria da socioafetividade, peregrinou a tese da possível tutela da multiparentalidade, rompendo o modelo binário, tanto dos casais heterossexuais quanto dos casais de mesmo sexo. Pugna pela legalidade, no direito brasileiro, de múltiplos pais e mães.

É uma realidade da vida, cuja complexidade o direito não conseguiu lidar satisfatoriamente até agora, em nenhum país do mundo. Ela é agravada com os resultados fantásticos das manipulações genéticas (por exemplo, o uso de materiais genéticos de três pessoas, para reprodução assistida).

No início, a multiparentalidade pareceu ser o caminho adequado para abrigar a parentalidade dos casais de mesmo sexo, mas tornou-se dispensável desde quando o STF admitiu que esses casais podem constituir família. Permanece sua utilidade, no entanto, para as técnicas de reprodução assistida, quando mais de duas pessoas são nelas envolvidas, a exemplo de utilização de sêmen de amigo para inseminação de uma ou das duas integrantes de união homoafetiva. Essas hipóteses não estão suficientemente enfrentadas pelo direito brasileiro.

Igualmente, a multiparentalidade tem sido ressaltada em casos julgados por nossos tribunais, incluindo o STJ, que envolvem a admissibilidade de cumulação de paternidade ou maternidade, no registro civil, em situações em que há pai ou mãe registral e se pleiteia o acréscimo do sobrenome de pai ou mãe biológicos. Ou quando o registro de pai ou mãe biológicos é acrescentado do sobrenome de quem efetivamente criou a pessoa.

Na legislação, há previsão expressa do acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta, por requerimento do enteado e assentimento daqueles (“Lei Clodovil”, nº 11.924/2009), cuja anotação simbólica reflete a história de vida da pessoa. A lei é omissa quanto aos demais efeitos jurídicos, para além do parentesco por afinidade. A averbação não significa substituição ou supressão do sobrenome anterior, mas acréscimo, de modo a não ensejar dúvida sobre a antiga identidade da pessoa, para fins de eventuais responsabilidades. O acréscimo do sobrenome não altera a relação de parentesco por afinidade com o padrasto ou madrasta, cujo vínculo assim permanece, sem repercussão patrimonial, uma vez que tem finalidade simbólica e existencial. Consequentemente, não são cabíveis pretensões a alimentos ou sucessão hereditária, em razão desse fato.

Entende-se que o namoro ou noivado não podem ensejar multiparentalidade. Assim é porque esses relacionamentos afetivos são pré-familiares, ou seja, têm o escopo de constituição de família, mas não são ainda famílias constituídas. É certo que, às vezes, ultrapassam a tênue zona limítrofe e se convertem em união estável, que é ato-fato jurídico - quando o direito desconsidera a vontade e atribui consequências ao resultado fático - e não ato ou negócio jurídico, estes dependentes de manifestação de vontade negocial consciente; porém, quando isso ocorre, não se cogita mais de namoro ou noivado, mas sim de entidade familiar própria.

A relação entre padrasto ou madrasta e enteado configura vínculo de parentalidade singular, permitindo-se àqueles contribuir para o exercício do poder familiar do cônjuge ou companheiro sobre o filho/enteado, uma vez que a direção da família é conjunta dos cônjuges ou companheiros, em face das crianças e adolescentes que a integram. Dessa forma, há dois vínculos de parentalidade que se entrecruzam, em relação ao filho do cônjuge ou do companheiro: um, do genitor originário separado, assegurado o direito de contato ou de visita com o filho; outro, do padrasto ou madrasta, de convivência com o enteado. Porém, por mais intensa e duradoura que seja a relação afetiva entre padrasto ou madrasta e seus enteados, dessa relação não nasce paternidade ou maternidade socioafetiva em desfavor do pai ou da mãe legais ou registrais, porque não se caracteriza a posse de estado de filiação, o que igualmente afasta a multiparentalidade, salvo se houver a perda do poder familiar dos pais, como decidiu o STJ (REsp 1106637) que reconheceu a legitimidade de padrasto para pedir a destituição do poder familiar, em face do pai biológico, como medida preparatória para a adoção unilateral da criança.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Socioafetividade e multiparentalidade e seus efeitos no parentesco avoengo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7591, 13 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105912. Acesso em: 2 nov. 2024.

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