7. A decisão do STF em repercussão geral reconhecida sobre socioafetividade e multiparentalidade – Tema 622
Assim se encontravam a doutrina e a jurisprudência brasileiras quando o STF reconheceu como repercussão geral a matéria da socioafetividade e consolidou seu entendimento, como Tema 622, em decisão plenária tomada no dia 22/09/2016, tendo como caso paradigma o RE 898.060, com a seguinte tese geral:
A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
O Tribunal fundou-se explicitamente no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que inclui a tutela da felicidade e da realização pessoal dos indivíduos, impondo-se o reconhecimento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional. Igualmente, no princípio constitucional da paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), que não permite decidir entre a filiação socioafetiva e a biológica, devendo todos os pais assumir os encargos decorrentes do poder familiar e permitindo ao filho desfrutar dos direitos em relação a eles sem restrição.
O Min. Luiz Edson Fachin - acompanhado pelo Min. Teori Zavascki – apresentou voto substancialmente divergente do Relator. Vencidos, quanto à solução a ser adotada no caso concreto, aderiram ao final à redação jurídica geral aprovada pela maioria (divergiram desta os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio).
O item 13 da Ementa do Acórdão indica que, mercê desses fundamentos constitucionais, impõe-se o reconhecimento conjunto da filiação socioafetiva e da filiação biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo, “quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos”. Todavia, esse requisito de melhor interesse, que também comparece como hipótese admissível de multipropriedade no voto divergente do Min. Edson Fachin, não figurou na redação da tese jurídica geral.
Eis, resumidamente, o caso concreto que serviu de paradigma para a tese jurídica acima transcrita: F. G., à época com dezenove anos de idade, ingressou com ação de investigação de paternidade, cumulada com pedido de alimentos e retificação de registro civil, contra A. N., alegando que era filha biológica deste, apesar de ter sido criada pelo marido de sua mãe, que a registrou como filha, quando nasceu. Exame de DNA consensual confirmou o vínculo biológico. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido. O Tribunal estadual reformou a sentença, entendendo que, apesar do vínculo biológico, a paternidade socioafetiva consolidada em largo tempo deveria prevalecer. O mesmo Tribunal, apreciando embargos infringentes, fez prevalecer a paternidade biológica, com alteração do registro de nascimento e fixação de obrigação alimentícia desde a citação até ao final do curso universitário da autora recorrida. Irresignado, o genitor biológico interpôs recurso extraordinário ao STF.
Constata-se que o STF confirmou o reconhecimento jurídico da socioafetividade. Como o julgamento em repercussão geral produz eficácia geral, de cumprimento obrigatório pelo sistema judiciário, a socioafetividade e, principalmente, a filiação socioafetiva não poderão ser mais questionadas em juízo.
Ainda que o Tribunal não tenha utilizado a expressão “parentalidade socioafetiva”, a alusão à “paternidade socioafetiva” deve ser entendida como abrangente da maternidade socioafetiva. Por igual, abrange as linhas de parentesco avoengo daí decorrentes. A exclusão da maternidade socioafetiva e das linhas de parentesco decorrentes importaria tratamento desigual para situações equivalentes do mundo da vida, o que contrariaria os pressupostos sobre os quais o Tribunal decidiu. Portanto, há seu reconhecimento implícito.
Outro ponto relevante é o reconhecimento de que a filiação socioafetiva não apenas se constata pela declaração ao registro público, mas também pela ocorrência no mundo da vida, notadamente pela posse do estado da filiação, cujos efeitos jurídicos independem do registro público, ao qual é atribuída função declaratória, do mesmo modo que à sentença judicial.
O que surpreendeu a doutrina especializada foi a amplitude que o STF conferiu ao tema, pois, além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva, avançou no sentido de contemplar a multiparentalidade. É o que se extrai dos termos “reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica”. O vínculo de filiação “concomitante” leva à multiparentalidade. Ou seja, na hipótese explicitada de paternidade, de acordo com o caso concreto que serviu de paradigma, o registro civil deve contemplar dois pais, isto é, o pai socioafetivo e o pai biológico, além da mãe biológica; dois pais e uma mãe.
A decisão do STF provocou verdadeiro giro de Copérnico. Até então, no conflito entre parentalidade socioafetiva e origem genética, esta não podia prevalecer sobre aquela (notadamente nos casos de “adoção à brasileira”), máxime quando o móvel fosse patrimonial ou econômico, notadamente participar da sucessão de genitor biológico afortunado. A rejeição a essa pretensão já tinha sido objeto de antigo precedente do STF, em 1970, tendo sido relator o Min. Aliomar Baleeiro7. Doravante, as discussões sobre a origem biológica e a força desta para afastar a parentalidade socioafetiva perderam consistência.
Por ser tema de repercussão geral, não pode ficar adstrito ao caso concreto. Destarte, têm-se como abrangidas as hipóteses de mãe e pai socioafetivos registrados, aos quais se pode acrescentar a mãe biológica, ou o pai biológico ou ambos, o que resultará em três ou quatro pais e seis ou oito avós, no total.
8. As razões do voto divergente no STF sobre o Tema 622
Em seu voto divergente, o Min. Edson Fachin procurou precisar os pontos essenciais de sua divergência, em sintonia com a construção doutrinária dominante e sua recepção jurisprudencial, tanto em relação ao caso concreto, quanto – o mais importante – em relação à tese jurídica geral (a qual terminou por adotar orientação estranha à evolução do direito brasileiro; o Ministro Relator invoca a experiência do Estado de Louisiana, nos Estados Unidos, para concluir pela possibilidade jurídica de multiparentalidade). São eles, incluindo os expostos na antecipação de seu voto:
a) Não havia conflito de paternidades, no caso paradigmático, ou seja, a pretensão da autora era de prevalecer a ascendência genética, quando já havia uma paternidade estabelecida, com todos os requisitos de posse de estado de filho, a saber, a reputatio, a nominativo e a tractatio;
b) Não há hierarquia, à luz do que estabelece a CF, arts. 226 e 227, entre as diversas espécies de famílias, entre diversas espécies de filiação e, por consequência, entre diversas formas de paternidade. Assim, nenhum vínculo de filiação, seja biológico ou socioafetivo, se impõe juridicamente sobre o outro;
c) Houve superação do juízo de ilegitimidade pelo princípio da igualdade entre filhos, ante a opção constitucional pela neutralidade e pela inocência da filiação;
d) Não se pode confundir investigação de paternidade - que fixa o parentesco paterno-filial -, com direito ao reconhecimento da origem genética, que tem a natureza de direito da personalidade, quando esse parentesco, sob a modalidade socioafetiva, já existe;
e) O parentesco parte da realidade da vida, mas não deixa de ser jurídico. “É nesse sentido que avulta a expressão relacional em que se funda a paternidade”. O vínculo biológico pode ser suficiente para determinar o parentesco jurídico, desde que não se sobreponha a outro já estabelecido.
f) A adoção e a filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga são exemplos, previstos expressamente no sistema jurídico brasileiro, de filiação em que o vínculo biológico não prevalece, o que revela a necessidade da distinção entre genitor e pai;
g) A desconstituição do vínculo jurídico de socioafetividade somente é possível quando tal vínculo relacional não mais existe;
g) A multiparentalidade pode ser admitida em caráter excepcional, quando se expressa na realidade da socioafetividade (“o pai biológico quer ser pai, o pai socioafetivo não quer deixar de sê-lo, e isso atende ao melhor interesse da criança – ou é consentido pelo adolescente”).
O voto conclui pelo provimento parcial do recurso extraordinário do genitor biológico para que, prevalecendo (no caso) os efeitos jurídicos do vínculo socioafetivo, sem a retificação do registro civil pretendida, fique resguardado o direito da recorrida de reconhecimento de sua origem biológica, porém sem fins de parentesco.
O voto condutor do Ministro Relator, todavia, orientou-se pela admissibilidade da multiparentalidade (dois ou mais pais ou mães socioafetivos e biológicos), pelas razões já expostas. A tese jurídica geral adotada, como salientado, não incluiu o requisito de excepcionalidade, quando presente o melhor interesse do descendente, apesar de referido no item 13 da Ementa do Acórdão.
9. Os “efeitos jurídicos próprios” da tese geral do Tema 622 na parentalidade avoenga
Ante a concisão das teses dos temas de repercussão geral, as expressões amplas utilizadas são exigentes de interpretação, de acordo com os princípios e pressupostos que os inspiraram. Tal se dá com a expressão “com os efeitos jurídicos próprios”.
A análise do julgamento do caso concreto paradigma pouco contribui, até porque a decisão que o STF nele proferiu é exatamente contrária ao que estipula a tese geral, no que concerne à multiparentalidade. No caso concreto, a maioria do Tribunal, contraditoriamente, confirmou as decisões judiciais anteriores no sentido do cancelamento do registro da paternidade socioafetiva, para se fazer constar apenas a paternidade biológica.
Do núcleo da tese do Tema 622 resultam as seguintes conclusões, que nos permitem avançar nos efeitos jurídicos próprios:
1ª. O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva;
2ª. A inexistência de primazia entre as filiações biológicas e socioafetivas;
3ª. A admissão da multiparentalidade.
4ª. A parentalidade socioafetiva – para os fins da tese - restringe-se às hipóteses de posse de estado de filiação, excluindo-se a adoção e a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga. Também está excluída a filiação biológica que nunca foi antecedida por filiação socioafetiva.
Assim sendo, em relação aos efeitos da origem genética ou biológica:
a) quando configurada a prévia parentalidade socioafetiva, registrada ou não, a origem genética intitula o filho a investigar a parentalidade biológica com efeitos amplos de parentesco, além do registro civil. Igualmente, pode o genitor biológico reconhecer o filho biológico, com todos os efeitos decorrentes, inclusive o do registro civil concomitante;
b) permanece o direito ao conhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeitos de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto expressamente no art.48 do ECA, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009: O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como a obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade da norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais. Vigora, no direito constitucional brasileiro, a presunção de constitucionalidade das normas legais, até que sejam declaradas inconstitucionais pelo STF;
c) o direito ao conhecimento da origem genética, também sem efeitos de parentesco, é assegurado ao que foi concebido com uso de sêmen de outro homem, que não o marido da mãe e com autorização deste, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil, desde que o dador tenha consentido nessa utilização, sem se valer da garantia de anonimato;
d) não há direito ao conhecimento da origem genética nem ao reconhecimento judicial da parentalidade, se a técnica de reprodução assistida utilizar materiais genéticos de dador anônimo, crioconservados em estabelecimentos especializados para inseminação artificial.
Os direitos e deveres jurídicos do filho com múltiplas parentalidades são iguais em face dos pais e avós socioafetivos e biológicos, particularmente quanto:
a) a autoridade parental ou poder familiar, que é exercida de modo compartilhado, em princípio, pelos pais biológicos e socioafetivos, tal como ocorre com os pais separados. Em caso de conflito entre pais biológicos e socioafetivos, como não há primazia entre eles, o juiz deve se orientar pelo princípio do melhor interesse do filho, para a tomada de decisão. Se ambos os pais forem considerados temporariamente inaptos para exercer a autoridade parental, pode o juiz determinar a guarda a algum ou alguns dos avós, biológicos ou socioafetivos, observado o melhor interesse dos netos, assegurado o direito ao contato aos demais.
b) a guarda compartilhada é obrigatória por lei, entre os pais, salvo se se ficar demonstrada em decisão judicial motivada que a guarda individual, ante as circunstâncias especiais, é a que mais recomendável por força do melhor interesse do filho. Esse regra é aplicável tanto para situação comum do casal de pais, quanto para a de multiparentalidade (mais de dois pais), até porque não há hierarquia entre eles. A guarda compartilhada é compatível com a preferência da moradia que o filho tem como referência para suas relações sociais e afetivas. No exemplo comum, de filho que sempre viveu com seus pais socioafetivos, a moradia deste é preferencial. O conflito deve ser arbitrado pelo juiz, de modo a que assegure o contato do filho com seus pais socioafetivos e biológicos, e com os parentes de cada linhagem, especialmente os avós.
c) os alimentos devem ser partilhados pelos pais socioafetivos e biológicos em igualdade de condições, em princípio. Em caso de conflito entre eles, o juiz deve considerar a partilha proporcional do valor de acordo com as possibilidades econômicas de cada um, segundo os critérios da justiça distributiva. Os alimentos devem ser fixados em valor único, para partilha entre os pais, pois o suprimento da necessidade do alimentando não depende da quantidade de devedores alimentantes, além da observância da vedação legal do enriquecimento sem causa (CC, art. 884).
Os avós, tanto os biológicos quanto os socioafetivos apenas são obrigados aos alimentos em caráter complementar, distribuídos de acordo com as possibilidades econômicas de cada um. Como o dever de alimentos na linha reta de parentesco é ilimitado, o filho com múltiplos pais e avós pode se obrigar a todos eles. Na hipótese de a mãe estar separada tanto do pai biológico quanto do pai socioafetivo, o filho poderá reclamar alimentos tanto a um quanto a outro, de acordo com as possibilidades econômicas de cada um.