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Reconstrução crítica da dogmática penal

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Agenda 02/11/2007 às 00:00

7.Dogmática jurídica: revisão crítica

Fundamental, pois, nos primeiros passos de revisão crítica do direito – e de sua dogmática – é a conscientização do processo real de "descoberta" das premissas, ainda mais que as centenas de teorias constantes do cardápio, além de incompatíveis entre si, são utilizadas, não raro, por descuido ou incompreensão de seu alcance, ou então propositadamente, a título de ficção. Apesar das aparências, elas não sustentam em absoluto o direito, traduzindo no máximo simples apoio retórico de que se necessita socialmente para a justificação da conduta. A sociedade, como os indivíduos, parece acalentar aos poucos necessidades psicológicas de imprevisíveis resultados. Questão de sobrevivência. O neurótico jamais sobreviveria, enquanto neurótico, sem os variados mecanismos de defesa que recompõem a seu modo o equilíbrio homeostático da natureza humana.

Esse equilíbrio homeostático, apanágio igualmente do homem normal, pode ser obtido de outra forma, na tarefa de percepção do objeto e limites da dogmática jurídica.

Dogmática jurídica é metalinguagem do direito, é jurisgrafia, é jurilogia, cumprindo-lhe reter em suas técnicas descritivas, explicativas e prospectivas, o sumo ou essência dos fatos em suas recíprocas influências, em suas metamorfoses.

Compreende-se, com efeito, o desvalor dos discursos "ontológicos": invocados para apoio retórico, subvertem o potencial crítico dos juristas se estes acreditam efetivamente em seu caráter científico, quando se sabe e se comprova, sem dificuldades, que a essência do jurídico é preconstituída pela vontade, ação e liberdade humanas. Leis e teorias não passam de instrumentos ocasionais e descartáveis na composição de uma realidade subjacente de cunho dinâmico, e que todavia os reclama, qual processo de racionalização revitalizante.

Só o futuro dirá se os juristas estão dispostos a manter as aparências, sinal de comodismo e de má-fé, ou de romper, por instantes, um equilíbrio homeostático em débito com a verdade e em descompasso com a via alternativa da libertação.

Como quer que seja, continuemos em busca de uma verdade mais sólida, mais consistente. A reconstrução dogmática pressupõe a consciência de uma construção prévia, intercalada ou concomitante: a construção social do direito.


8. Construção social do direito

Refiro-me ao fato humano circunstancial intrinsecamente normativo. São os homens, em suas relações de convivência, que forjam o sinete de uma juridicidade submetida, em última instância, ao desenrolar dos acontecimentos. O que "deve ser" (normatividade) se funde no próprio "ser" (efetividade). Ao vitorioso, o direito. Portanto, metodologicamente, é preciso aguardar a eclosão do fato ou de sua virtual emergência, em termos de inevitabilidade histórica, para se afirmar de sua juridicidade.

Forneço um exemplo, bastante didático. D. Pedro II, no Brasil, mesmo após o 15 de Novembro de 1889, tinha a seu favor todo um arcabouço jurídico-normativo. Realisticamente, porém, acabou cedendo, segundo suas próprias palavras, ao "império das circunstâncias". Esse "império das circunstâncias", em letras minúsculas, acabou prevalecendo sobre a Constituição do Império...

E outras Constituições tivemos, com ou sem legitimidade popular, mas que alicerçaram, a seu modo, direta ou indiretamente, o direito imposto pelo poder do mais forte.

Em poucas palavras: o fato, como processo histórico, é que determina o direito. Inútil identificá-lo com a lei (simples projeto de direito) e muito menos com a justiça, porque nos anularíamos como seres jurídicos. Afinal, inexiste direito hodierno que não lance raízes no tempo (e no espaço) sobre lutas e martírios, desigualdades e privilégios, miséria e opressão. E o direito, em sua dinâmica, ainda não se libertou dessas amarras.

"Somente uma teoria do direito embebida de história, que não se limite à dogmática jurídica, é capaz de dar conta de que o direito não passa de um fenômeno histórico e que o direito positivo de hoje corresponde a certas formas de organização da sociedade", adverte Fernando Herren Aguillar (Metodologia da ciência do direito. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 144). Isto não é o bastante, nem significa perseguir o justo objetivo ou " buscar leis históricas de validade universal, como em certa tradição marxista". É mais, todavia, do que a dogmática jurídica, confinada ao oferecimento de "respostas práticas eficazes e fundadas sobre o direito positivo, a jurisprudência e a organização das instituições jurídicas"(p. 140).

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Daí a pergunta: com que se preocupam, por exemplo, os penalistas?

Por incrível que pareça, ainda se preocupam com a "teoria do crime", a ponto de assinalarem "progressos" em sua esquematização formal. Esquecem, no entanto – ou simplesmente ignoram – que o delito, como fenômeno jurídico, continua apegado a condicionantes de natureza histórico-social. O direito é o certo e o errado, ao mesmo tempo, porquanto se concretiza historicamente. Depende o direito (e, pois, o delito) do grau de liberdade desfrutado por quem, por algum motivo, se vê na contingência de agir, fazer, executar, contribuindo com seu gesto ou omissão para a prevalência fática da juridicidade sob seu comando, ainda que compartilhado. Vale o raciocínio para os ilícitos de todos os demais ramos do direito: civil, trabalhista, constitucional, administrativo etc.


10. Liberdade de ação

Grau de liberdade: quem o condiciona?

Todos e cada um, de modo particular. Esquematicamente, no mundo moderno, pode-se falar em lei, ideologia e intérprete. Quer dizer, a norma geral positivada, a cargo do Estado-legislador; as idéias disseminadas no meio social; e a personalidade de quem, nas circunstâncias, se investe de algum poder de decisão.

A norma geral positivada é a Constituição histórica, em primeiro lugar. Depois, a lei propriamente dita, votada pelos parlamentos. Por extensão, os atos normativos de usurpadores e revolucionários, detalhe que facilita a compreensão do caráter contraditório do próprio direito.

Acontece, no entanto, que o processo de subsunção ou enquadramento fático-normativo implica a interferência dos demais agentes ou fatores: ideologia social e personalidade do intérprete. Inevitável assim a interpenetração dialética de valores em conflito, a sugerir um desfecho impregnado de engajamento ideológico, em possível contraste com algum outro, igualmente juriferante.

Em suma: presente a liberdade de ação, prevalece a vontade de quem opta, no exercício do poder. Vontade e liberdade fecundam, assim, o direito emergente, sem que possa falar em cada caso de efetivo respeito à lei, ou à norma geral, ou de submissão aos imperativos do bom senso e da justiça. O direito é humano demais para ser identificado com virtudes que reservamos, de preferência, para os humildes e mansos de coração. E os humildes e mansos de coração dificilmente desfrutam do poder. Sofrem, isto sim, os seus efeitos.

Até mesmo entre os afortunados, mais próximos do poder político, se mostra impossível a uniformização do direito. Nenhuma de suas fontes formais (lei, ideologia, intérprete) se harmoniza ideologicamente. Há sempre um descompasso, uma disritmia, um desacordo de idéias e de valores que desembocam no desempate comprometido e comprometedor, inclusive no âmbito do poder judiciário. Não basta ser juiz para ser justo. Para tanto, é preciso ter estatura de juiz, ou seja, a deliberada intenção, à custa de sólida formação moral, de dar a cada um o que é seu, em função do bem comum e dos interesses da coletividade.


11. Dialética negativa

Ora, em qualquer área jurídica (inclusive jurídico-penal, escolhida por modelo e referência) só são respeitados o bem comum e os interesses da coletividade quando esta, através de suas instituições ou segmentos, condiciona e limita a vontade e liberdade do intérprete, operador do direito. Forma-se então o que podemos chamar de dialética positiva, para contrastá-la com a dialética da divergência, e por isso negativa, relacionada com as situações de conflito resolvidas aleatoriamente.

Não se pergunte, pois, se há juridicidade nos seqüestros e extorsões, no tráfico de drogas, na receptação e no contrabando, nas imprudências de trânsito, na organização de bandos ou quadrilhas, nas contravenções em geral. Não se pergunte se há juridicidade nas práticas abortivas, nos homicídios, nos maus-tratos, nas calúnias e injúrias, nas apropriações indébitas, nos peculatos e nas fraudes, nas lesões corporais, nos motins, nas revoltas, nas conspirações militares, nas sedições, nas tentativas de golpe de Estado. À luz do sistema legal é claro que existe, em tese, injuridicidade. Mas o que importa ao penalista é a chance de abertura de processo, são os fatores de sua estabilização ou desequilíbrio, é seu possível desfecho através de uma decisão formal.

Para isso, pouco valem as teorias jurídicas, as erudições doutrinárias, as regras e princípios processuais e de interpretação e aplicação do direito, que se revelam antagônicos e passam a depender do horizonte de raciocínio e liberdade de ação de vários protagonistas.

Também o Estado, por seus agentes, infringe as regras que institui, na certeza ou na esperança de uma impunidade consentida, digerível pelo sistema. Mesmo que se chegue à reta final, já sob a responsabilidade do juiz, não há como desconhecer, de sua parte, se útil e necessária, uma propositada reinterpretação dos fatos e do direito, em função justamente de sua liberdade, de sua vontade, de seus gostos e preferências, de seu caráter, de suas idiossincrasias.

Basta haver intérprete para se ter certeza da soberania de um pensamento original e exclusivo, em busca de um objeto predeterminado. É de seu gesto, porém, de sua escolha, e não de interpretações objetivas, no jogo de teorias e argumentos em disputa, que nasce o próprio direito, em constante processo de consolidação ou mudança, no contexto das interações humanas.


12. Dogmática e sociedade

Fala-se, na dogmática penal, em conflito aparente de normas, em estrutura ontológica do crime, em erro de tipo e de proibição, em antijuricidade formal e material, em concurso de delitos, em natureza e fins da pena, em política criminal e penitenciária. Não se fala, entretanto, no essencial: a efetiva participação da sociedade, como um todo, na elaboração do próprio direito, o que torna secundárias as questões sistemáticas ou terminológicas. Sistemas e conceitos são simples instrumentos formais de leitura e explicação de uma realidade rebelde, no entanto, à dogmatização. Prepondera no direito a relativa autonomia de suas fontes, o que desautoriza qualquer tentativa de simplificação metodológica.

O próprio legislador constituinte, ao separar os poderes do Estado, formaliza a expansibilidade das divergências. E ao instituir o tribunal do júri chega às raias da perfeição: disciplina com a mão direita os crimes dolosos contra a vida; com a esquerda, legitima o descumprimento de suas prescrições.

Como quer que seja, não é a exigência objetiva de "dolo específico" que impede a delituosidade do dano em cadeia pública cometido por preso em fuga; não é o "espírito" da lei que equipara o revólver de brinquedo ao revólver de verdade, para efeito de majoração da pena do crime de roubo; não é a "teoria da consumação" que dispensa a subtração da coisa, no latrocínio; não é a "ação finalista" que reestrutura, com maior equilíbrio e justiça, os "elementos do crime"; não é a "política criminal" que alicerça intrinsecamente o rigor ou abrandamento das penas; nem são as "descriminantes" que, por si sós, no isolamento de suas "essências", justificam as condutas aparentemente criminosas.

Não, quem resolve essas questões é a própria sociedade, em função e a partir de um conteúdo que ela preenche historicamente, ao sabor das circunstâncias. Nenhum mistério: o direito retrata o seu autor, descreve o próprio homem em sua trajetória existencial.

Insisto: quem decide, apesar das encenações dogmáticas, é a própria sociedade, através de seus órgãos, de seus agentes, de suas instituições, de cada indivíduo em particular, quer à revelia do Estado, quer com seu beneplácito. É falsa, aliás, a oposição Estado/Sociedade. Ninguém consegue ser agente do Estado sem participar ao mesmo tempo da trama social como cidadão comum. A ninguém é dado integrar a Sociedade, como pessoa do povo, sem interferir de algum modo nos destinos do Estado. Inexiste direito estatal em permanente conflito com o direito da comunidade. Há, sim, um só direito, construído assistematicamente; um direito essencialmente contraditório, em razão da diversidade ideológica de suas fontes geradoras, atreladas ao próprio homem, à sua natureza igualmente contraditória.

É a contradição, pois, que há de nortear metodologicamente a superação das próprias teorizações dogmáticas, porque estas, afinal, também se revezam nas preferências de seus artífices e não conseguem atingir o âmago da questão, relacionado com a historicidade do fenômeno jurídico. Relacionado, portanto, com a mutabilidade valorativa de critérios e de condutas nas alternâncias do poder. O herói de ontem – reza a cartilha da história – pode transformar-se no vilão de amanhã. Basta apenas que mudem seus juízes.


13. Em síntese

Através de uma visão crítica se esboça uma tentativa de retorno metodológico à verdade compatível com os fatos. Se os fatos – o direito, em sua historicidade – se revelam contraditórios, cabe ao jurista curvar-se à evidência do fenômeno para dele extrair suas próprias verdades objetivas.

Há riscos e senões nesse processo, porque os fatos não falam por si. Falam, sim, através do observador crítico, que os cerca e persegue estrategicamente à custa de seu raciocínio, de sua intuição, de sua inteligência. Raciocínio, intuição e inteligência se mostram, no entanto, intercomunicáveis e não esbarram em preferências ideológicas se comprometidas com uma verdade que as ultrapassa, em sua objetividade.

A lógica do direito é a lógica da dinâmica social. Esta, por sua vez, exige e supera ao mesmo tempo parâmetros normativos de conduta, condicionados na prática à subjetividade valorativa de cada protagonista histórico. Importa, aí, o gesto definitivo de rejeição ou escolha, que não impede reinvenções adaptativas ou eventuais acomodações táticas.

O drama dos juristas – e tragédia para seus discípulos – reside na superficialidade de suas explicitações dogmáticas, que não passam de simples justificações retóricas, fragmentadas, de uma realidade melhor compreendida quando analisada através da percepção de um costumeiro "jogo de alianças", no exercício compartilhado do poder. O direito, é certo, em sua concretude histórica, depende da força (guerras, invasões, revoluções, dominações políticas etc.), mas depende igualmente, sobretudo em sua fase de consolidação, em nível de soberania interna, de constantes trocas de favores, de eventual aglutinação de esforços, de parcerias alternativas, de adesismos interesseiros; enfim, de intercâmbio associativo de condutas. Questão, no fundo, de vontade e liberdade – não importa de quem – transformadas em ação (ou omissão) de caráter objetivamente normativo.

Os ditadores também dormem, sem que pereçam as ditaduras. Quem governa, administra, legisla, opina ou decide, em todas as instâncias e papéis da vida social, necessita de apoio logístico, necessita de cumplicidade. Não são as constituições nem as leis que orientam o comportamento de seus intérpretes oficiais, ainda que juízes das supremas cortes. Precisam eles de aliados, nas decisões, e facilmente os recolhem na facção da sociedade que se harmoniza com seus valores. Assegurada, previamente, a liberdade de ação, prepondera a vontade de agir, que se esconde ou se manifesta ora na invocação de textos legais, ou de seu "espírito", ora na referência a princípios hermenêuticos não escritos, centrados na idéia de justiça ou de oportunidade política.

Em suma: os intérpretes refletem e constroem as contradições do direito na medida em que se apegam à lei ou à ideologia social, na hipótese de conflito, engajando-se eticamente no processo pelo grau de vontade e liberdade conformadoras da opção. Em termos dialéticos, todavia, inexiste normatividade em qualquer da fontes formais do direito, assim como inexiste teoria dogmática em condições de apontar os rumos de uma juridicidade à espera de conscientização objetiva.

Segue-se de tudo isso a importância pedagógica, nos cursos universitários ligados ao direito, de disciplinas que registrem a liberdade da história como fator primordial de libertação do próprio homem, agente e construtor de seu destino, e portanto responsável, nos limites de suas forças e na proporção de seus ideais.


Referências bibliográficas:

AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia da ciência do direito. São Paulo: Max Limonad, 1996.

BASTOS, João José Caldeira. Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.

GALVÃO, Fernando; GRECO, Rogério. Estrutura jurídica do crime. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime. São Paulo: Acadêmica, 1993.

--------------------------------A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Reconstrução crítica da dogmática penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1584, 2 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10598. Acesso em: 22 nov. 2024.

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