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“Revenge porn”: a criminalização da disseminação não consentida de imagens íntimas e as consequências permanentes para as vítimas

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Agenda 11/09/2023 às 11:40

Análise da criminalização da pornografia de vingança e sua relação com a violência de gênero no ciberespaço. Divulgação não consentida de imagens íntimas é um problema crescente, principalmente para mulheres.

Resumo: O presente artigo visa analisar a criminalização em torno da disseminação não consentida de imagens íntimas, popularmente conhecida como “revenge porn”. A partir da observação, objetiva-se descrever no que consiste a conduta nomeada como "revenge porn" e analisar a eficácia da legislação vigente, em contraponto com a violência de gênero no ciberespaço. Constatou-se que a divulgação não consentida de imagens íntimas é um problema crescente, que atinge, em sua maioria, mulheres, e expõe o quanto a violência de gênero cresce, ao passo que abusadores encontram na tecnologia um meio de cometerem crimes em anonimato. Finalmente, o artigo demonstra, também, as consequências presenciadas pelas vítimas do ilícito penal, que geralmente são traumatizadas permanentemente, vez que, quando expostas, não há como controlar os acessos às mídias publicadas, tampouco downloads executados. Para tanto, apresentou-se a evolução do “revenge porn”, que tem seu início na década de 1970, expondo-se, também, o desenvolvimento das leis brasileiras até a atualidade e, por fim, o sofrimento duradouro percebido pelas vítimas.

Palavras-chave: revenge porn; violência de gênero; cibercrimes; violação da intimidade; imagens íntimas


INTRODUÇÃO

O presente artigo científico visa dissecar a conduta popularmente conhecida como “revenge porn”, observar como se deu o desenvolvimento da legislação pátria em relação a disseminação não consentida de imagens íntimas, hoje tipificada no Código Penal.

Inicialmente, conceituou-se no que consiste a disseminação não consentida de imagens e a historicidade da conduta.

Posteriormente, no segundo tópico, estabeleceu-se uma linha temporal de legislações que eram utilizadas para registro, instrução e julgamento dos casos de disseminação não consentida de imagens íntimas, antes de sua tipificação no ordenamento jurídico e as mazelas que permeavam o processo legal relacionado ao delito, quando este era julgado à luz dos crimes contra a honra.

Buscou-se, ulteriormente, interseccionar a disseminação não consentida de imagens íntimas com a violência de gênero, vez que os casos noticiados são crescentes e reafirmados por uma cultura de submissão da mulher ao homem, além da restrição da liberdade sexual feminina.

Objetivou-se, também, analisar as consequências percebidas pelas vítimas da disseminação não consentida de imagens íntimas e qual o reflexo da exposição indevida, geralmente consumada por motivo fútil.

Para o pleno desenvolvimento deste artigo científico, utilizou-se do método qualitativo de abordagem, com natureza de pesquisa básica exploratória, amparada em material bibliográfico, com consulta a livros, dissertações e teses, legislação, artigos e revistas especializadas, elementos essenciais para análise do tema ora abordado. A apresentação do desenvolvimento do objeto da presente pesquisa dar-se-á mediante a adoção do procedimento dedutivo.


1. “REVENGE PORN”: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA DISSEMINAÇÃO NÃO CONSENTIDA DE IMAGENS ÍNTIMAS

O termo “revenge porn”, traduzido literalmente como “pornografia da vingança” ou “pornografia de revanche”, teve seu surgimento nos Estados Unidos, na década de 1970, quando a revista “Hustler”, destinada aos homens adultos da época, em uma de suas seções, realizava pagamentos por fotografias amadoras de mulheres nuas, muitas vezes encaminhadas pelos próprios leitores, situação que abriu precedentes para divulgação não-consensuais de fotografias que expunham a intimidade sexual de mulheres ao público, na sua maioria, masculino (QUEIROZ; BERNARDI, 2021).

Para além da historicidade do termo, o “revenge porn” ocorre quando há divulgação/veiculação não consentida de mídias que ofendam a intimidade sexual, mesmo que as mídias, de fato, tenham sido obtidas de maneira consentida. Dentro da infração penal, a situação mais comum ocorre quando há separação de um casal que, durante o relacionamento, de maneira consentida, realizavam registros de atos sexuais ou “sexting”2 e, por razão do rompimento da relação, uma das partes, geralmente o homem, divulga as imagens em ato de vingança, gerando uma disseminação sem controle (MARCÃO; GENTIL, 2018).

No início dos anos 2000, a pornografia amadora ganhou espaço na internet, quando o erotismo “realcore”3 surgiu no ciberespaço. Em 2010, o site isanyoneup.com, criado por Hunter Moore, ganhou destaque ao ter, em média, 300 mil espectadores por dia, utilizando de mídias encaminhadas por anônimos. Inúmeras pessoas foram expostas sem consentimento, o que ensejou na prisão do criador do site em 2014, sob a alegação de que Moore havia obtido imagens íntimas de terceiros através de coletas ilegais de informações. (WEIBLEN, 2021).

No Brasil, diversos casos de disseminação não consentida de imagens íntimas ganharam repercussão. Em 2005, Rose Leonel4 teve imagens íntimas disseminadas por seu ex-companheiro, após o término do relacionamento. O conteúdo foi disseminado nacional e internacionalmente, além de CDs distribuídos na cidade de Maringá/PR. O companheiro de Rose foi condenado há 11 meses e 29 dias de reclusão, convertida em doação de cestas básicas e trabalho comunitário, além de indenização monetária junto à esfera cível. Rose fundou a ONG “Marias da Internet”, que presta orientação jurídica, psicológica e de perícia digital a vítimas de disseminação indevida de material íntimo e deu nome à proposta legislativa nº 5555/2013, que mais tarde ensejou a Lei nº 13.772/2018, que será exposta no próximo tópico (NOMURA, 2017)

Todavia, houveram casos que alcançaram repercussão geral e não tiveram um desfecho como o de Rose: em 2013, a adolescente Giana Laura Fabi, de dezesseis anos, cometeu suicídio após o vazamento de uma fotografia sua mostrando os seios. No caso, após ouvido em solo policial, um adolescente de dezessete anos confirmou ter “printado”5 a fotografia de Giana e compartilhado virtualmente com outros amigos. Teve o mesmo fim a adolescente Julia Rebeca6, de dezessete anos, que se enforcou após ter um vídeo, onde praticava um ato sexual, exposto nas redes sociais (ANDRADE, 2013)

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No início de 2015, outros inúmeros casos de tentativa de suicídio decorrentes de exposição não consentida de imagens íntimas, ganharam repercussão e evidenciaram, ainda mais, a violência de gênero presenciada no ambiente cibernético: o “Top 10” elencava adolescentes de 12 a 15 anos, utilizando seus nomes, local de estudo e suas fotografias, sem prévia autorização, das “mais bonitas” as "mais vagabundas”. Os vídeos eram propagados através de redes sociais e, principalmente, YouTube, conquanto os “Top 10” que continham imagens de nudez, eram compartilhados através de aplicativos de mensagens instantâneas (VALENTE et al., 2016).

Necessário destacar que a internet, sua ascensão e constante evolução, colaboram diretamente para o crescimento dos casos de divulgação não consentida de imagens íntimas. Com o surgimento, ao passar dos anos, de novos meios de interação online e imediata entre os indivíduos, revelaram-se, também, novos riscos e novas formas de cometer crimes anonimamente, suprimindo registros de acesso. Essa constante modificação enseja que crimes consolidados em ambientes virtuais mereçam especial atenção do direito e seus operadores, que precisam acompanhar o desenvolvimento tecnológico, para que possam prevenir e reprimir os chamados cibercrimes (BARROS; GONÇALVES, 2018).

Há de se destacar que a expressão “pornografia da vingança” deve ser alvo de críticas, vez que sua utilização, por si só, pode gerar uma revitimização subjetiva, porquanto o termo “vingança” aduz que a vítima apresentou uma conduta errada e que o criminoso está “se vingando” realizando a divulgação não consensual de imagens íntimas. Quanto ao termo “pornografia”, quando utilizado, atribui a vítima uma condenação por parte da sociedade, que, por construções sociológicas baseadas na violência de gênero, pressupõe que aquilo que é pornográfico, é errado e imoral.


2. A PROGRESSÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NOS CASOS DE DISSEMINAÇÃO NÃO CONSENTIDA DE IMAGENS ÍNTIMAS

Quando da ascensão da disseminação não consentida de imagens e mídias íntimas no território brasileiro, em meados da primeira década dos anos 2000, não havia legislação específica que regulasse, diretamente, o revenge porn, tampouco os cibercrimes, portanto, os casos basilares de disseminação não consentida de imagens íntimas, eram julgados sob a ótica da legislação pré existente.

Precipuamente, para casos de divulgação de conteúdo íntimo, utilizava-se o rol de crimes contra a honra, previstos no Código Penal, de 1940. Para tanto, usufruía-se como alternativa o delito de injúria, majorada nos termos do inciso III, do artigo 141 e, em especial, o crime de difamação, que consiste em imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação.

Todavia, os crimes praticados contra a honra do indivíduo, são crimes de menor potencial ofensivo e possuem pena branda, permitindo que o ofensor gozasse de alguns dos benefícios que dispõe a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que regulamenta os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, sendo possível a transação penal e a composição civil dos danos, salvo em casos, por exemplo, de reincidência. Ademais, os crimes contra honra possuem ação penal privada, o que exigia que a vítima buscasse um advogado que ajuizasse uma “queixa-crime”, fator que, por si só, prejudica o acesso à justiça, principalmente pela falta de instrução e conhecimento jurídico da maior parte da população. Dessa forma, os crimes contra a honra mostravam-se insuficientes para coibir as ações de exposição íntima não consentida, pois reforçavam um modelo social de discriminação contra as mulheres e violência de gênero, vez que os ofensores tinham certa impunidade (WEIBLEN, 2021).

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Para vítimas crianças ou adolescentes, a partir de 2008, houve introdução de dispositivos legais pela Lei 11.829, de 25 de novembro de 2008, que visavam “aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet” (BRASIL, 2008).

Em 2012, houve um enorme avanço na legislação brasileira com a promulgação da “Lei Carolina Dieckmann”, precursora da penalização de crimes cometidos no ambiente virtual. Tal lei agregou ao Código Penal, dentre outros dispositivos e alterações, o artigo 154-A, que criminaliza a “invasão de dispositivo informático alheio, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, com o fim de obter dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo” (BRASIL, 2012).

Logo após, em 2014, houve a promulgação da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, popularmente conhecida como “Marco Civil da Internet”. O Marco Civil da Internet estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país. A lei instituiu a proteção da privacidade e dados pessoais dos usuários, bem como a responsabilização dos provedores de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Em casos de violação de intimidade pela publicação não autorizada de materiais que contenham cena de nudez ou ato sexuais, o provedor será responsabilizado subsidiariamente. A responsabilização mencionada é no âmbito da esfera civil, limitando-se a obrigação de remover o material ou ações indenizatórias por danos morais (QUEIROZ; BERNARDI, 2021)

Finalmente, em 2018, foram sancionadas as Leis nº 13.718, de 24 de setembro e nº 13.772, de 19 de dezembro, que alteraram o Código Penal, apresentando ao ordenamento jurídico pátrio os artigos 216-B e 218-C, que versam sobre o registro não consentido da intimidade sexual e exposição não consentida da intimidade sexual, respectivamente.

A Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, tipificou como crime a divulgação não autorizada de cena de sexo, nudez ou pornografia, assim como a divulgação de cenas de estupro com o fim de vingança ou humilhação. A pena, de um a cinco anos, pode ser aumentada em até dois terços se o crime for cometido por pessoa que mantém ou manteve relação íntima afetiva com a vítima. A exceção é quando a divulgação é feita em publicação jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recursos que impossibilitem a identificação da vítima, com sua prévia autorização, caso seja maior de idade. A referida lei também atribuiu a natureza incondicionada a ação penal, nos casos dos crimes contra a dignidade sexual (BRASIL, 2018).

Já a Lei nº 13.772, de 19 de dezembro de 2018, reconheceu que a violação da intimidade configurava violência doméstica e familiar, alterando a o artigo 7º, da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006 - “Lei Maria da Penha”, e tipificou como crime o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado. A lei estabelece pena de detenção de seis meses a um ano e multa para quem produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes. A mesma penalidade se aplica à produção de montagens que incluam pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado (BRASIL, 2018).

O crime do artigo 216-B, em sua redação, dispõe:

Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: (Incluído pela Lei nº 13.772, de 2018)

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.

Por tratar-se de crime de menor potencial ofensivo, pode ser objeto de transação penal, e é competência dos Juizados Especiais Criminais, considerando o disposto no artigo 61, da Lei 9.099, que considera como crimes de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa.

O artigo 218-C, em análise por este trabalho, traz em sua redação:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha [...] sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

Aumento de pena

§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Exclusão de ilicitude

§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos. (BRASIL, 2018)

Esmiuçando o artigo 218-C, que tipifica, em sua segunda parte, a exposição não consentida de imagens íntimas, trata-se de conduta típica que tutela o bem jurídico da intimidade sexual, com ênfase no âmbito virtual e possui tipologia mista alternativa, vez que praticadas uma ou mais de suas ações nucleares, o crime será julgado como único. Trata-se de crime comum, que pode possuir como sujeito ativo e passivo qualquer pessoa, com ressalvas aos crimes cometidos em relações íntimas de afeto, o que ocasiona aumento de pena e aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes, ocasião que pode haver incidência do artigo 241-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente (CAPEZ, 2019).

O objeto material pode ser a fotografia, o vídeo ou outros registros audiovisuais, como transmissões ao vivo e a consumação do crime se dá quando há prática de uma de suas ações nucleares, ou seja, o momento em que o agente oferece, troca, disponibiliza, transmite, vende, expõe à venda, distribui, publica ou divulga o conteúdo íntimo. Por se tratar de crime plurissubsistente, é admitida a tentativa, vez que os atos executórios do crime em comento podem ser divididos (TONON, 2022).

Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, nos termos do artigo 225, do Código Penal, após alteração dada pela Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018 (GRECO, 2022). Quando não cometido em âmbito de violência doméstica e familiar, o crime do artigo 218-C permite o acordo de não persecução penal, caso o investigado confesse formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior e não haja incidência das hipóteses de não aplicação, nos termos do artigo 28-A, da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019.

Quanto ao resultado, o artigo 218-C é classificado como formal, pois não exige produção de resultado naturalístico, entretanto, pela prolixidade da redação do artigo, que possui nove verbos nucleares, alguns até redundantes entre si, por exemplo: publicar e divulgar (BITENCOURT, 2022), há discussões sobre se todos os verbos possuem classificação formal quanto ao resultado. Spencer Toth Sydow (2018), demonstrou que o verbo “oferecer”, por exemplo, parte da ideia de uma proposição de algo a alguém, entretanto, a conduta não necessariamente gera uma vítima que tem prejuízos em sua dignidade sexual, criando um tipo penal de perigo abstrato, delitos que a doutrina e a jurisprudência debatem fortemente a constitucionalidade, considerando os princípios da lesividade e da intervenção mínima e que não há, em tese, lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.

Além das legislações infraconstitucionais, o crime de divulgação não consentida da intimidade, infringe, também, valores constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e da intimidade, vida privada, honra e imagem.

Considerando o bem jurídico tutelado pelo comando incriminador, que é a intimidade sexual, surgiram alguns pontos sobre a alteração proporcionada pela lei acima mencionada, que dispôs que os crimes contra a dignidade sexual se processariam mediante ação penal pública incondicionada: o fato da intimidade sexual ser extremamente particular, diretamente ligado à autoestima e dignidade da vítima e tendo em vista a exposição não consentida já consumada e que as mídias expostas teriam de ser utilizadas para constituir a materialidade delitiva, sendo, mais uma vez, visualizada por diversos operadores do direito, não geraria revitimização e, caso o processo tenha continuidade sem anuência da vítima, grave violência institucional por parte do sistema penal?

Das pesquisas realizadas, extraiu-se que defende-se que o delito de divulgação não consentida de imagens íntimas deveria ser de ação pública condicionada à representação da ofendida, todavia, que o prazo decadencial de seis meses, contado a partir do conhecimento da autoria do crime, proposto pelo artigo 103, do Código Penal, é exíguo para que a vítima reconheça a violação sofrida, geralmente, em ambiente de violência doméstica, portanto, seria cabível que o legislador determinasse um maior prazo de representação para o delito em comento (CARVALHO; LIMA, 2021).

Ainda, discute-se a conduta do agente que registra a intimidade sexual sem consentimento prévia, prevista no artigo 216-B, do Código Penal, e após, divulga, sem consentimento da vítima, as imagens registradas, ocasionaria concurso de crimes7 ou consunção8, o que depende do caso concreto: se o registro não consensual de imagens e realizado pelo ofensor para satisfazer a própria lascívia e, após, em momento ulterior, é divulgado sem consentimento, presente a diversidade de contextos, poderia ser sustentado o concurso de delitos. Entretanto, se o registro não consensual constituir meio de obtenção de conteúdo para divulgação não consentida, ou ainda, se o registro e divulgação não consentidos forem realizados simultaneamente, via transmissão ao vivo em rede social, por exemplo, a consunção (CUNHA, 2019).

Por fim, foi constatada uma anomalia na alocação dos tipos penais. Sydow (2020, p. 48, apud CARVALHO; LIMA, 2021) aponta que na redação dos artigos 216-B e 218-C, o primeiro foi inserido em um capítulo intitulado "DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL", embora a conduta criminosa não esteja relacionada à exposição da intimidade, mas sim ao registro. Enquanto isso, o artigo 218-C, que trata efetivamente da exposição da intimidade, foi inserido no capítulo "DOS CRIMES SEXUAIS CONTRA O VULNERÁVEL", embora a conduta criminosa não se limite à exposição de vítimas vulneráveis, mas se aplique a qualquer vítima. Isso, agregado à extensão e redundância de alguns dos verbos nucleares do artigo 218-C, evidencia a falta de cuidado do legislador ao elaborar os tipos penais, aparentemente não se preocupando em alocá-los nos locais apropriados ou fazer com que eles tenham interpretações convictas pelos operadores do direito.

Todavia, pela tutela jurisdicional dos crimes sexuais consumados em ambiente informático ser extremamente recente, o tempo poderá clarificar a efetividade dos dispositivos legais, bem como as dificuldades advindas da criminalização de tais delitos e da aplicação dos artigos apresentados pelo legislador.

Sobre a autora
Giulia Marques Ventura

Aluna do curso de Direito da Universidade São Francisco, Campus Itatiba.︎

Informações sobre o texto

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