3. AUSÊNCIA, EM REGRA, DE COISA JULGADA SUBSTANCIAL NO PROCESSO CAUTELAR
O processo cautelar é instrumento por meio do qual se presta uma espécie de tutela jurisdicional de urgência consistente em assegurar a efetividade de um provimento judicial a ser produzido em outro processo (principal). Trata-se, portanto, de ferramenta destinada a preservar a incolumidade dos direitos ou de algum interesse legítimo, ante uma situação emergencial que os coloque em posição de perigo iminente de periclitação. Esse é o posicionamento dominante na doutrina, fiel aos ensinamentos de Piero Calamandrei.
De uma forma mais ampla, a tutela cautelar visa suprir as deficiências do processo ordinário, que, via de regra, possui uma longa duração. No dizer do doutrinador alemão Fritz BAUR, as partes "procuram no procedimento da medida cautelar uma decisão rápida, já que, com razão, lhes cabe argüir que um processo ordinário demasiadamente moroso pode levar à periclitação e, até mesmo, ao aniquilamento de sua posição jurídica" [25]. Os processos cautelares são destinados, mais do que a defender os direitos subjetivos, a garantir a eficácia e a seriedade da função jurisdicional do Estado.
Extraem-se, assim, duas conseqüências: a) a primeira, de caráter objetivo, refere-se ao estado de urgência (periculum in mora, que é o fundado receio de dano de que uma parte, antes do julgamento da demanda principal, cause lesão grave ou de difícil reparação ao direito da outra, tornando insegura a efetividade do futuro provimento judicial), requisito que sempre há de estar presente nessa espécie de tutela jurisdicional; b) a segunda, de natureza subjetiva, é referente ao modo pelo qual o magistrado deve examinar e decidir o processo cautelar, em outras palavras, diz respeito à cognição sumária (mais ligada ao fumus boni juris, probabilidade de existência do direito alegado), que propicia uma solução pronta e eficaz às demandas cautelares, condizente com a situação de perigo nelas presentes. Dessa forma, são requisitos para a concessão da tutela cautelar: o periculum in mora e o fumus boni juris, que, segundo a melhor doutrina, são os elementos que constituem o meritum causae dos processos cautelares [26].
Interessa, mormente, para o desenvolvimento do presente estudo o critério de ordem subjetiva, ou seja, a análise da cognição sumária em sede de processo cautelar e, conseqüentemente, avaliar a possibilidade ou não de formação da coisa julgada substancial nessa seara.
Nas ações cautelares, frise-se, é utilizada a técnica da cognição sumária para o conhecimento do processo, pois nessas ações o juiz restringe-se a proferir decisão com base na aparência (fumus boni juris), sem que possa atingir um juízo mais profundo, que lhe traga certeza sobre os fatos. Não poderia ser de outra forma, já que a utilização da cognição judicial plena e exauriente da causa, no momento em que o magistrado é convocado a solucionar a ação cautelar, seria absolutamente inútil, incompatível com a urgência da tutela perseguida.
Por conseguinte, a cognição sumária nas ações cautelares recai principalmente, além dos demais objetos cognoscíveis (questões preliminares e questões prejudiciais [vide capítulo I, item 2]), sobre os requisitos de concessão da tutela cautelar: periculum in mora e fumus boni juris (mérito). Preleciona Piero CALAMANDREI:
Em sede cautelar o juiz em geral declara (nas diversas configurações concretas que esses limites podem assumir segundo o procedimento requerido) a existência do temor de um dano jurídico, isto é, a existência de um estado objetivo de perigo que faça parecer iminente a declaração do dano derivável da insatisfação de um direito. As condições do procedimento cautelar poderiam então parecer estas duas: 1º a existência de uma direito; 2º o perigo de insatisfação no qual esse direito se encontra.
Sobre esses dois pontos deveria versar a cognição do juiz em sede cautelar. Embora já tenhamos visto que os procedimentos cautelares têm a sua razão de ser na celeridade com a qual podem evitar o perigo em caráter de urgência, precedendo a medida definitiva: se para emanar a medida cautelar fosse necessária uma cognição aprofundada e completa sobre a existência do direito, isto é, sobre o mesmo objeto sobre o qual se refere o procedimento principal, melhor valeria esperar este e não complicar o processo com uma duplicação de investigações, que não teria nem a vantagem da prontidão. [27]
Assim sendo, para cumprir sua função, os processos cautelares devem se contentar com a probabilidade da existência do direito, que se obtém por meio de uma cognição muito mais rápida e superficial que a plena e exauriente. A cognição em ação cautelar conduz apenas a um juízo de probabilidade, haja vista que a função de declarar a existência do direito pertence ao processo principal.
Sustenta-se, de forma relativamente pacífica e salvo discordâncias pontuais, que os processos de cognição sumária em geral não podem determinar a solução definitiva da lide, ou seja, não são capazes de propiciar a formação da auctoritas rei iudicatae (vide capítulo II, item 2.3). De acordo com a lição do mestre italiano:
(...) os procedimentos cautelares podem ser considerados como emanados com a cláusula rebus sic stantibus, posto que eles não contêm a declaração de uma relação esgotada no passado e destinada, por isso, a permanecer através do trânsito em julgado, imutável para sempre; mas constituem para projetá-la no futuro uma relação jurídica nova (relação cautelar), que visa viver e então a transformar-se a dinâmica da vida o exige. [28]
Entretanto, é possível encontrar doutrinadores que infirmem essas assertativas. Fritz BAUR, processualista alemão, defende a possibilidade de formação de coisa julgada material em sede cautelar quando o autor de uma ação cautelar, já julgada uma vez, ingressa novamente em juízo pleiteando tutela cautelar idêntica (partes, causa de pedir e pedido). Em suas palavras:
A medida temporária, tornada coisa julgada formal, atua como coisa julgada material sempre e apenas na relação com outras medidas temporárias, que forem postuladas; desde que sejam dadas eadem res e eadem partes, valem os princípios desenvolvidos para o processo ordinário sobre os efeitos da coisa julgada material (...). [29]
Não é considerada acertada esta posição, pelo menos no que tange ao sistema processual civil. Primeiramente porque a medida cautelar é concedida com base em cognição sumária, que não permite declaratividade com carga suficiente para receber a autoridade de coisa julgada [30]. Em segundo lugar porque a tutela cautelar, como provimento emergencial de segurança, pode ser substituída (artigo 805, CPC), modificada ou revogada (artigo 807, CPC) a qualquer tempo por uma nova cognição sumária, desde que verificadas novas circunstâncias que desaconselhem a manutenção da medida cautelar previamente concedida. Ademais, o ordenamento brasileiro é muito claro ao delinear que: "o indeferimento da medida não obsta a que a parte intente a ação, nem influi no julgamento desta (...)" (artigo 810, CPC).
Contudo, preceitua o artigo 808, parágrafo único do Código de Processo Civil: "Se por qualquer motivo cessar a medida, é defeso à parte repetir o pedido, salvo por novo fundamento". Assim, tendo a medida cautelar perdido sua eficácia, não poderá o demandante ajuizar a mesma demanda novamente, salvo por fundamento novo (nova causa de pedir), no qual haveria, por certo, uma nova ação. Nota-se que a vedação de se ajuizar novamente a mesma ação cautelar existe, apesar de não se formar a coisa julgada substancial no processo cautelar [31].
A ausência de coisa julgada material no processo cautelar não faz com que fique sempre aberta ao demandante a possibilidade de renovar seu pleito. A impossibilidade de ingressar em juízo com nova ação cautelar, baseada nos mesmos fundamentos da que foi indeferida, decorre não da formação da coisa julgada formal, com afirmam alguns [32], que somente impede que a discussão sobre o conflito reabra-se no mesmo processo, mas sim da preclusão pro iudicato.
Como se sabe, o Livro I do Código de Processo Civil, que regula o processo de conhecimento, é aplicado subsidiariamente aos demais Livros do Código. Por esta razão, pode-se aplicar ao caso o disposto no artigo 471 do Código de Processo Civil que diz: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide (...)". Dessa forma, mesmo sem a formação da res judicata, ocorre o que a doutrina denomina "preclusão pro iudicato", que impede o magistrado de julgar novamente as questões já decididas por ele [33]. Logo, somente com base em fatos novos pode-se renovar o pedido de uma mesma providência cautelar entre as mesmas partes.
Resta incontroverso, assim, que a improcedência de uma ação cautelar não impede que a mesma parte, numa outra oportunidade, com novos elementos de convicção, venha a postular novamente a medida cautelar que antes lhe foi denegada. Em outras palavras, em regra, não há formação de coisa julgada material nas demandas cautelares.
Há apenas uma exceção a essa regra, que é trazida no artigo 810 do Código de Processo Civil: "O indeferimento da medida não obsta a que a parte intente a ação, nem influi no julgamento desta, salvo se o juiz, no processo cautelar, acolher a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor". Não transitam em julgado, portanto, as decisões proferidas em processo cautelar, salvo se versarem sobre prescrição ou a decadência do direito ligado ao processo principal. O que ocorre, aí, é o deslocamento da cognição judicial, do processo principal para o cautelar, em razão do princípio da economia processual, e o subseqüente julgamento antecipado e influente de fato do mérito [34]. Ao mostrar-se inviável a ação principal, não há motivos para cercá-la de segurança.
Questão interessante que se faz nesse ponto é a seguinte: seria possível a formação de coisa julgada material sobre a decisão que não acolhe a argüição de prescrição ou decadência na ação cautelar? Para Humberto THEODORO JÚNIOR a resposta a essa pergunta seria positiva:
Permite, com efeito, o art. 810, in fine, que se conheça desde logo da argüição de decadência ou de prescrição do direito do autor. E, se a medida preventiva, nesta hipótese, for indeferida por acolhimento da argüição, a sentença cautelar terá força de coisa julgada e será oponível à futura pretensão de mérito, portanto.
Nesse caso, o que realmente há é um julgamento antecipado do mérito (do direito a ser disputado na ação principal). [35]
WAMBIER e MEDINA, ao contrário, dão resposta negativa à indagação:
(...) pode acontecer, ainda, que, argüida a ocorrência de decadência ou prescrição, o juiz rejeite tal alegação. Diante disso, põe-se a dúvida de se saber se também esta decisão seria atingida pela coisa julgada, a impedir seja a questão novamente alegada pela parte, em defesa realizada no processo principal. Na doutrina, afirma-se, com razão, que a letra do preceito legal não autorizaria o entendimento de ocorreria coisa julgada, no caso. O art. 269, inc. IV, diz que se estará diante de sentença de mérito quando o juiz verificar a existência de prescrição ou decadência, e não a inexistência. Ademais, a situação prevista no art. 810 do CPC seria excepcional e, por tal razão, não admitiria interpretação extensiva. [36]
Parece mais adequada a segunda posição, em razão de seu rigor hermenêutico. Assim sendo, apenas o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência é capaz de propiciar a formação da coisa julgada substancial nos processos cautelares, o que não ocorre, como facilmente se nota, em virtude da cognição judicial utilizada nessa modalidade de tutela jurisdicional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A coisa julgada substancial é a imutabilidade do conteúdo da sentença e sua existência no sistema processual civil é fundamental (incluída como garantia constitucional no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal), pois é este instituto processual que, primordialmente, assegura o valor segurança jurídica em nosso ordenamento jurídico, tornando imutável o comando da decisão que pôs fim ao conflito de interesses levado à apreciação do Estado-Juiz.
Esse paradigma processual representa critério de Justiça para o processo civil. Eternizar-se a solução da lide, na busca infindável de uma verdade que, em essência, jamais será possível dizer estar atingida, constitui certamente algo inaceitável, principalmente em se considerando o perfil das relações econômicas e sociais da sociedade hodierna. É, por isso, realmente indispensável colocar, em determinado momento, um fim no conflito submetido à apreciação do Estado-Juiz. Entretanto, determinados provimentos jurisdicionais mostram-se inaptos a receber este selo de imutabilidade em virtude de suas cargas cognitivas. Dentre estes se encontram as tutelas emergenciais (tutela cautelar e tutela antecipatória).
Os fundamentos aduzidos nesse texto levam à conclusão de que não há possibilidade de formação de coisa julgada substancial nas tutelas de urgência, uma vez que não existe, nesse âmbito, declaração sobre a existência ou inexistência do direito do demandante, mas apenas sobre a existência ou inexistência do periculum in mora e do fumus boni juris, que não é capaz de solucionar o litígio definitivamente.
A única exceção a essa regra é o acolhimento da alegação de decadência ou prescrição no processo cautelar, como preceitua o artigo 810 do Código de Processo Civil, pois nesse caso há sentença de mérito que faz coisa julgada substancial (artigo 269, IV, do Código de Processo Civil).
De forma genérica, a declaração judicial é apta a receber o selo de imutabilidade da res judicata somente quando tiver intensidade declaratória suficiente para tornar-se definitiva. As declarações calcadas na provisoriedade e na temporariedade (respectivamente, tutela antecipatória e tutela cautelar) não são capazes de propiciar a formação da auctoritas rei iudicatae simplesmente porque não visam, essencialmente, produzir definitividade.
Por tudo o que foi exposto, pode-se afirmar que a coisa julgada substancial não é uma característica fundamental da jurisdição, porquanto existem determinados provimentos que, embora não possuam carga declaratória capaz de fazer surgir coisa julgada material, são fundamentais para a efetividade da tutela dos direitos, verbi gratia, aquele que põe fim ao processo cautelar e aquele que antecipa os efeitos da tutela. Porém, atente-se: admitir que a res judicata não seja característica da jurisdição não é o mesmo do que dizer que a jurisdição não deva zelar pela coisa julgada material, pois esta é fundamental ao Estado Democrático de Direito.