Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A aplicação da doutrina dos direitos humanos na atividade de inteligência

Exibindo página 2 de 3
Agenda 10/10/2023 às 19:56

3. História da atividade de Inteligência no Brasil

3.1 Fase Embrionária

A atividade de inteligência, exercício permanente de ações especializadas voltadas para a produção e a difusão de conhecimento, no mundo, já praticada pelas antigas civilizações, como visto anteriormente, no Brasil, historicamente, é dividida em quatro períodos: Fase Embrionária (1927 a 1964), Fase da Bipolaridade (1964 a 1990), Fase de Transição (1990 a 1999) e Fase Contemporânea (1999 até hoje). A fase embrionária teve início oficialmente apenas em 1927, no Brasil, durante o governo de Washington Luís7, com a instituição do Conselho de Defesa Nacional (CDN), criado pelo Decreto nº 17.999, de 29 de novembro de 1927, e organizado pelo Decreto nº 23.873, de 15 de fevereiro de 1934.

Esta fase correspondeu à construção das primeiras estruturas governamentais voltadas para a análise de dados e para a produção de conhecimentos, a qual, durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), com o Conselho de Defesa Nacional, conforme o referido Decreto, tinha a finalidade de assessorar o presidente em relação a “informações sobre todas as questões de ordem financeira, econômica, bélica e moral, relativas à defesa da Pátria” (grifo nosso), e tornou-se, em 1934, com a promulgação da Constituição em julho de 1934, o Conselho Superior de Segurança Nacional (CSSN), que durou até 1937.

Em consonância com o acima exposto, a Constituição de 1937, em seu artigo 162, reafirmou a importância do Conselho no que tange à defesa nacional, referindo-se a ele não mais como Conselho Superior de Segurança Nacional, mas como Conselho de Segurança Nacional (CSN).

Art. 162 - Todas as questões relativas à segurança nacional serão estudadas pelo Conselho de Segurança Nacional e pelos órgãos especiais criados para atender à emergência da mobilização (grifo nosso).”

Neste sentido, as atas das seis primeiras sessões do Conselho (Superior) de Segurança Nacional, realizadas entre 1934 e 1945, apresentaram elementos referentes à política externa, comercial, industrial e de defesa do primeiro período de Vargas na presidência. Para ALMEIDA (2011), “inicialmente, a ênfase recai sobre uma das principais agendas do Conselho no período: a política externa e seus desdobramentos, especialmente as preocupações com a Argentina e as negociações com os Estados Unidos durante o período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial e durante o conflito propriamente dito.” (grifo nosso).

Em seguida, estas foram orientadas para tratar de temas de política interna, como as ameaças à estabilidade social e política doméstica citadas nas reuniões, as queixas dos militares sobre seu despreparo material e a inter-relação entre as políticas industrial, comercial e de defesa, refletida no Conselho.

Entretanto, apesar da atuação do Conselho de Defesa Nacional (CDN), posteriormente denominado Conselho Superior de Segurança Nacional (CSSN) e Conselho de Segurança Nacional (CSN), a atividade de Inteligência, no Brasil, atividade vinculada diretamente ao Estado e com a finalidade precípua de assessoramento ao Poder Executivo, teve início efetivamente no ano de 1946, após a Segunda Guerra Mundial e nos primórdios da Guerra Fria, com a criação do Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI). Antes, a atividade sigilosa realizada dentro do território brasileiro era desenvolvida pelos órgãos policiais, que possuíam, na sua estrutura, um organismo específico que cuidava da segurança interna, a polícia política, encarregada da defesa ou preservação do regime político vigente.

Em consequência, com o fim do governo de Getúlio Vargas e o retorno do processo democrático no final do ano de 1945, e com a experiência da atuação militar brasileira na Segunda Guerra Mundial, as ações de inteligência passaram a ter um papel destacado, especialmente entre as Forças Armadas. Então, Eurico Gaspar Dutra, em 1946, impulsionou a criação de um organismo de inteligência direcionado ao assessoramento do Presidente da República. E, em 6 de setembro de 1946, por meio dos Decretos-Leis nº 9.775 e nº 9.775-A, foi criado e estruturado o Serviço Federal de Informações e Contrainformações, vinculado ao Conselho de Segurança Nacional (CSN).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Para melhor estruturar o SFICI, no ano de 1949, com o Decreto nº 27.583, de 14 de dezembro de 1949, foi apresentada uma medida com a finalidade de fortalecer os organismos de Inteligência, que foi a aprovação do Regulamento para a Salvaguarda das Informações que interessam à Segurança Nacional – RSISN, o qual se tornou o primeiro instrumento legal que objetivamente visava à proteção das informações julgadas sigilosas pelo Estado, conforme Decreto nº 27.930, de 27 de março de 1950.

Ainda assim, o Serviço Federal de Informações e Contrainformações somente começou a ser estruturado no ano de 1956, durante o governo do presidente Juscelino Kubistchek, e este foi considerado o principal órgão civil de informações do país até 1964, sendo o primeiro que se encarregou explicitamente da atividade de contraespionagem e contrainformações.

A sua organização teve como modelo, durante este período, a Escola das Américas, no Panamá, criada no ano de 1946 pelo governo americano para treinar sua divisão militar no Caribe, como também para ajudar militares de outros países do hemisfério sul. A escola militar incluía também treinamento contra a insurgência que nascia na América Latina (há registros de que militares brasileiros foram até o canal do Panamá para ter aulas teóricas e práticas sobre tortura).8

No intuito de aprimorar essa técnica militar, no ano de 1956, o então presidente Juscelino Kubistchek autorizou a ida de quatro funcionários brasileiros para os Estados Unidos da América para realizar treinamentos na Central Intelligence Agencye (CIA) e no Federal Bureau of Investigation (FBI). Visto que este período ocorreu durante o momento de tensão da Guerra Fria, tal fato foi idealizado como uma estratégia de fortalecimento das estruturas da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Estes quatro funcionários que viajaram para realizar os treinamentos militares na CIA e no FBI foram o coronel Humberto Souza Mello, o major Knack de Souza, o capitão Rubens Bayma Denys e o delegado José Henrique Soares, os quais, após retornarem para o Brasil, ativaram o SFICI, que, somente em 1958, passa a existir com a edição do Decreto nº 44.489ª. O Coronel Humberto de Souza Mello foi o seu primeiro Chefe. Neste período, o órgão ganha independência e autonomia, ficando vinculado diretamente ao Secretário-Geral.

3.2 Fase da Bipolaridade

A Fase da Bipolaridade tem início no ano de 1964 com o golpe civil-militar (ditadura militar), quando ocorreu a completa reestruturação do SFICI, instituindo-se o Serviço Nacional de Informações (SNI). Neste período, o auxiliar do marechal Castelo Branco, coronel Golbery do Couto e Silva, propôs ao futuro presidente a criação de um novo sistema de informações, baseado na organização do antigo SFICI, mas com características operativas que auxiliassem a alcançar os “Objetivos Nacionais”. Assim, o SFICI foi incorporado ao SNI como uma de suas agências regionais, conforme art. 4º da Lei nº 4.341, de 13 de junho de 1964, que criou o referido serviço de Inteligência.

O SNI tinha a finalidade de infiltrar agentes para monitorar as propagações de ideologias de esquerda nas empresas públicas, nas repartições de serviços públicos, nas universidades, nas escolas, nas igrejas e nos sindicatos, além de vigiarem as atividades financeiras dos bancos e empresas privadas. Essas entidades eram monitoradas através de grampos telefônicos, de censura à correspondência e de investigações. O SNI também atuou fora do território nacional, e manteve o relacionamento com a Central Intelligence Agency (CIA) e com órgãos de informação de outros países da América Latina por meio da Operação Condor.9

Esta agência nacional de Inteligência não atuava como um órgão de assessoria ao presidente de estrito caráter técnico. Ela possuía orientação político-partidária voltada ao Regime Militar e tinha a função de defesa do presidente da República. Entre os principais critérios para admissão para os seus cargos, estavam a “posição ideológica”, o apoio ao Golpe de 1964 e a “eficiência funcional ou profissional”.

Com o fim do Regime Militar em 1985, quando Tancredo Neves é eleito, através do voto indireto, presidente do Brasil, ocorreu uma reestruturação do Serviço Nacional de Informações, e houve um processo de desmilitarização e de alteração do caráter ideológico em relação à coleta das informações por uma análise imparcial dos fatos. Para tanto, o general Ivan de Souza Mendes foi nomeado para o cargo de chefia do Serviço Nacional de Inteligência, pois, este não possuía vínculos com as atividades anteriores do órgão.

Mas, mesmo com as tentativas em renovar o supracitado órgão de inteligência, a sua imagem, diante da sociedade, continuava sendo de um órgão vinculado ao autoritarismo. Assim, os candidatos à sucessão presidencial na eleição de 1989 pronunciavam a intenção de extinguir o SNI. Então, Fernando Collor de Melo, eleito presidente, propôs a abolição do SNI, em 1990. A Medida Provisória n°. 150, de 15 de março de 1990, atribuiu à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e à Polícia Federal a gerência das informações no país e a abolição do SNI.

3.3 Fase de Transição

O terceiro período explanado como a fase da redemocratização, onde a atividade de Inteligência passou pelo processo de reavaliação e autocrítica para se adequar a novos contextos governamentais de atuação é chamada de Fase de Transição. A Inteligência tornou-se vinculada às Secretarias da Presidência da República, primeiro como Departamento de Inteligência (DI), vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) e, posteriormente, como Subsecretaria de Inteligência (SSI).

Publicado no dia 10 de maio de 1990, o Decreto nº 99.244 previa, como um dos órgãos de assistência direta e imediata ao Presidente da República, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) que se apresentava organizada em Departamento de Inteligência, Departamento de Macroestratégias, Departamento de Programas Especiais, Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações, Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Recursos Humanos. Conforme o seu art. 68, cabia ao Departamento de Inteligência planejar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência, o qual buscava romper com a lógica nacional-desenvolvimentista que havia norteado as ações do poder público nos vinte e cinco anos anteriores.

Mas, com o advento da lei nº 8.490, de 19 de novembro de 1992, durante o governo interino do presidente Itamar Franco, o Departamento de Inteligência, ainda subordinado à Secretaria de Assuntos Estratégicos, foi promovido à Subsecretaria de Inteligência,10 tendo sido classificada como Secretaria de Inteligência em setembro de 1994, após a publicação da Medida Provisória nº 610, pelo presidente Itamar Franco. A Secretaria de Inteligência durou até parte do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1992-1999).

No governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Subsecretaria de Inteligência (SSI), substituta da Secretaria de Inteligência do Governo Itamar Franco, foi criada com o advento da Medida Provisória nº 813, de 1º de janeiro de 1995, era subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (órgão militar), e previu a implementação da Agência Brasileira de Inteligência em seu art. 33 e parágrafos (a sua criação ocorreu no ano de 1999).

A Agência Brasileira de Inteligência tinha “a finalidade de planejar e executar atividades de natureza permanente relativas ao levantamento, coleta e análise de informações estratégicas, planejar e executar atividades de contra-informações, e executar atividades de natureza sigilosa necessárias à segurança do Estado e da sociedade” (BRASIL, 1995).

3.4 Fase Contemporânea

A quarta fase tem início com a criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) pela promulgação da Lei nº 9.883/99, consequência de amplo debate político entre os representantes da sociedade no Congresso Nacional. A sua criação é marcada pelo significante avanço da atividade no País (tanto pela consolidação da atuação da ABIN quanto pela expansão do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), também criado em 1999).

A sua atividade compreende o exercício permanente de ações especializadas voltadas para a produção e a difusão de conhecimentos. O objetivo é o assessoramento das autoridades governamentais para o planejamento, a execução, o acompanhamento e a avaliação de políticas de Estado.

Como uma dessas atuações, a referida agência atuou para assegurar a realização da Cúpula da Amazônia, evento internacional que reuniu chefes de Estado e especialistas na cidade de Belém/PA, entre os dias 8 e 9 de agosto de 2023. A Agência trabalhou para garantir que os debates sobre o desenvolvimento da Região Amazônica transcorressem sem riscos ou incidentes.

Vale ressaltar que, durante a maior parte da Fase Contemporânea da Inteligência Brasileira, a ABIN esteve vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR), órgão com status de ministério. Entretanto, uma reforma administrativa executada pela presidente Dilma Rousseff, através da Medida Provisória nº 696, assinada em 2 de outubro de 2015, levou a Agência à estrutura da Secretaria de Governo. Com a entrada em exercício do presidente Michel Temer, o GSI foi recriado e a ABIN foi inserida novamente na hierarquia do Gabinete e Segurança Institucional, isto com a expedição da Medida Provisória 726, de 12 de maio de 2016.

Recentemente, em março de 2023, o Decreto nº 11.426, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, transferiu a Agência para a estrutura da Casa Civil.


4. História da Atividade de Inteligência na Segurança Pública

Durante as primeiras fases da atividade de inteligência, o serviço de inteligência concentrava-se nos órgãos federais acima citados para subsidiar as decisões do Presidente da República, enquanto que os órgãos estaduais voltados para a Segurança Pública atuavam para coletar provas e indícios da materialidade delitiva através da investigação (a diferença entre a atividade de inteligência e a de investigação será tratado no tópico 6). Mas, esta situação teve uma mudança com a criação do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública – SISP (vinculado à SENASP do Ministério da Justiça), pelo Decreto nº 3.695/2000, momento em que os órgãos de investigação poderiam exercer oficialmente a atividade de inteligência, antes exercido principalmente para a produção de informações sobre os seus integrantes.

De acordo com o referido decreto, o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública possui “a finalidade de coordenar e integrar as atividades de inteligência de segurança pública em todo o País, bem como suprir os governos federal e estaduais de informações que subsidiem a tomada de decisões neste campo”. Esse sistema tem como órgão central a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP) e é integrado pelos Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Defesa e da Integração Nacional e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

O Decreto prevê, ainda, que poderão fazer parte do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública os órgãos de Inteligência de Segurança Pública dos Estados e do Distrito Federal, essencialmente voltados para a manutenção da ordem pública, através das Policias Civil e Militar, que passaram a conter unidades de investigação dentro de seus órgãos, como um instrumento de combate à criminalidade e auxílio na produção de informações.

Como exemplo, no Estado de Santa Catarina, a Polícia Militar, através da Portaria nº 156 de 18 de abril de 2001, instituiu a Sistema de Inteligência de Segurança Pública da Polícia Militar (SIPOM), com a finalidade de integrar e aperfeiçoar as atividades de Inteligência de Segurança Pública no âmbito da Corporação Militar.

Atualmente, todos os órgãos de Segurança Pública do País têm a noção de que o desenvolvimento estratégico, tático, administrativo e operacional é importante e fundamental para o enfrentamento à criminalidade e para a colheita de indícios de autoria e materialidade delitiva.

Contudo, apesar de sua origem, que remonta a tempos antes de Cristo, a atividade de Inteligência, no Brasil, teve uma origem tardia. Mas, com o passar dos anos, esta atividade aprimorou-se de forma a fundamentar as suas ações com base na preservação da soberania nacional, na defesa do estado democrático de direito e na dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor
Wandeslann Belém Lopes

Graduado em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC). Pós- graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Wandeslann Belém. A aplicação da doutrina dos direitos humanos na atividade de inteligência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7405, 10 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106506. Acesso em: 18 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!