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Sistema penal seletivo.

Reflexo de uma sociedade excludente

Agenda 14/11/2007 às 00:00

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente estudo tem por objetivo analisar a realidade do sistema penal na sociedade brasileira sedimentada, compartimentada, pautada em preconceitos geradores de estereótipos que, por sua vez, orientam a estrutura do sistema penal repressivo, violento e marginalizante.

O sistema penal, nos moldes em que é estruturado, semeia violência e sustenta a marginalização e exclusão social. Age seletiva e autoritariamente, de maneira ilegítima embora use de todo um aparato discursivo para justificar ou tentar legitimar a sua atuação a latere de uma legislação fadada ao descumprimento.


1.SOCIEDADE EXCLUDENTE

Conquanto o Estado democrático de direito deva fundamentar e organizar a sociedade política, buscando a igualdade entre os cidadãos, conquanto a comunidade política brasileira tenha como base e fundamento a democracia, a sociedade é dividida sob variados aspectos como gênero, classe social, raça, cultura.

Esse cenário desigual e excludente estampado na realidade brasileira faz parte de um contexto latino-americano de exclusão, desigualdades sociais, pobreza absoluta, desestabilização econômica e de dependência econômica dos países ricos. Há uma assimetria latente, visível entre os países chamados de centro e os da periferia, dentre os quais estão inseridos os da América Latina. A dependência econômica cria uma realidade dual em que os poucos países ricos, através do poder econômico, mantêm uma política de dominação sobre o resto da humanidade.

Em decorrência da dominação alastrada, o horizonte ideológico, cultural, social e econômico é reduzido aos padrões predominantes determinados pelos europeus e americanos. O processo de globalização econômica neoliberal acentua e alimenta a exclusão dos países da América Latina que, na qualidade de excluídos do sistema mundial, lutam para consolidar a democracia, estabilizar a economia e implementar reformas sociais. Inseridos em um contexto de exclusão, excluídos e marginalizados, alijados do sistema mundial ou "sistema-mundo", "exterioridade" ou, ainda, "totalidade" (DUSSEL, 2000), os países latino-americanos precisam realizar a liberdade do homem, os princípios democráticos, respeitar os direitos humanos, além de estabilizar a economia. O forte padrão de exclusão sócio-econômica, porém, constitui um grave comprometimento ao respeito aos direitos humanos.

A hegemonia do poder econômico, entretanto, possui uma base que a sustenta e a difunde: o discurso. O discurso é fundamental tanto na elaboração dos textos normativos ordenadores das relações sociais, bem como na aplicação desses perante a sociedade. O processo legislativo, a exegese jurídica e a aplicação da lei no caso concreto são veiculados por intermédio da linguagem. Portanto, o discurso é utilizado como meio de atuação em uma sociedade como instrumento para espraiar idéias, pensamentos, aplicando-se a todos os segmentos da sociedade.Através do discurso influenciador as nações hegemônicas mantêm o status quo e difundem os seus poderes, bem como o prestígio mundial consolidado. O oprimido aceita e reproduz o discurso do opressor, a tal ponto que chega a pensar com os argumentos daquele. Não há pensamento crítico, inovador que saia do "lugar-comum", da imitação, da reprodução, que atue como um "contra-discurso" original e renovador.

Diante desse panorama mundial, no qual o Brasil está inserido na parte marginalizada, a realidade brasileira reproduz o contexto maior e vive a dialética da exclusão social, da marginalização. Ao lado de conquistas democráticas crescentes, a realidade caracterizada pela diversidade encontra-se, atualmente, mais separada. Os padrões de concentração de riqueza e de desigualdade permanecem. Vive-se em uma carência social, havendo um grande hiato entre direitos políticos e sociais. O respeito aos direitos humanos é somente ideal, sem a prática efetiva, culminando em uma apatia social, responsável pela aceitação pacífica que a vida de uns vale mais do que a de outros e que direitos de uns são respeitados e de outros violados, sem qualquer conseqüência.

Um Estado democrático de direito que mereça ostentar tal condição pressupõe respeito à promoção da dignidade da pessoa humana e busca a inserção do indivíduo em sua ordem estatal, reconhecendo e assegurando os direitos fundamentais. Não é o que se observa na realidade brasileira. A discriminação está infiltrada, enraizada nas mentes humanas e nas instituições sociais e políticas, produzindo a separação que afasta e nega o outro pelo fato de ser diverso. Toda exclusão é negação da própria humanidade do ser humano. Excluir é negar o que é diferente, eliminar o desigual.

É oportuno salientar que uma sociedade dividida preserva os valores que melhor atendem aos anseios dos detentores do poder. Ora, em não havendo a possibilidade de uma dialética ante a imposição de valores e pensamentos, não haverá o diálogo em que, de fato, sejam consideradas a tese e a antítese, existindo tão somente a tese dominante consentânea aos interesses daqueles que a sustentam. A ausência de idéias que confrontem o discurso excludente imposto implicará em vácuo de ideais diversos e, conseqüentemente, de busca de uma realidade distinta.

A facticidade social dual, separativista, excludente, marginalizante é refletida na estrutura do sistema penal brasileiro, tanto na elaboração do ordenamento legal vigorante, quanto na exegese e aplicação da lei pelos órgãos judiciário e policial. O sistema penal reproduz as relações sociais e, portanto, ajuda a manter a estratificação implementada verticalmente.


2.SISTEMA PENAL SELETIVO

O sistema penal, constituído pelo judiciário, polícia e sistema prisional, todos submetidos à predição legal, é um instrumento de controle reflexo de uma política criminal fundada em valores vigentes em determinada sociedade, que tem por finalidade a garantia da ordem social. Reflete a ideologia política, sociológica, econômica, cultural de uma comunidade. Ciente de que o sistema de idéias vigorante é o imposto por uma determinada classe social privilegiada num dado momento histórico para atender aos seus anseios, pode-se afirmar que o sistema penal reflete os valores escolhidos como vigentes.

O sistema penal configurou-se aos poucos, juntamente com o desenvolvimento da sociedade capitalista e solidificou-se como um sistema de controle de desvio, utilizando-se de instrumentos definidos por alguns membros da sociedade privilegiados política e economicamente. O sistema de valores nele expresso é próprio de uma cultura "burguesa-individualista" (BARATTA, 2002, p.176) e, por isso, enfatiza, ao máximo a proteção do patrimônio privado, orientando-se no sentido de atingir os desvios típicos de grupos sociais marginalizados social e economicamente.

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Reflexo da sociedade que o institui, o sistema espelha a exclusão mediante a seletividade de sua abrangência, verificada, inclusive, na formulação técnica das normas legais que o permeiam e orientam e na aplicação seletiva dessas normas. O sistema de controle de desvios revela, portanto, uma contradição fundamental em sua estrutura, qual seja, a igualdade formal defendida abstratamente e a seletividade na atuação junto à sociedade cuja estratificação pauta-se na posição ocupada pelo indivíduo na escala social.

ZAFFARONI (2001, p.16, 26) afirma que a seletividade, a reprodução da violência, a corrupção institucionalizada, a verticalização social, a destruição das relações comunitárias não são características de determinada conjuntura social, mas de uma estrutura de exercício de poder de todos os sistemas penais. O sistema penal brasileiro é delineado por normas jurídicas abstratas. No entanto essa legalidade processual é incapaz de ser respeitada, porque dependente de órgãos com pouca ou nenhuma capacidade operacional. Assim, segundo o autor citado acima, o sistema penal está estruturado de uma forma a impedir a legalidade processual e a possibilitar o exercício do poder de forma arbitrária e seletiva sobre os setores vulneráveis.

O sistema é, pois, estruturado de forma a não permitir o respeito à legalidade. Se todos os atos tipificados penalmente fossem concretamente criminalizados, quase a totalidade da população responderia criminalmente. Dessume-se que o arcabouço legal é bem abrangente e incompatível com a realidade dos órgãos executivos – judicial e policial - que compõem o sistema. Ainda, a lei confere a possibilidade de o sistema agir contra todos os que o infringem, diante das tipificações existentes, entretanto só existe ação contra aqueles "escolhidos" arbitrariamente. Renunciando-se à legalidade, deixa-se margem à arbitrariedade.

ZAFFARONI (2001 p. 28-30) afirma que os causadores da própria ilegalidade do sistema são: a própria lei, inflacionadora de tipificação, a polícia com atitudes de corrupção, condutas arbitrárias e prática de tortura e o judiciário lento. Alega que a própria lei planifica a arbitrariedade e a renúncia a sua observância, uma vez que é distante da realidade fática. O órgão policial exerce o poder, à margem do instituto legal, de forma violenta, corrupta, mediante desrespeito aos direitos humanos. O judiciário, por sua vez, com o dever de preservar e proteger tais direitos, acaba por roborar a prática ilegal e transgressiva da ordem legal com a impunidade advinda da lentidão processual. O órgão judicial é considerado o "poder menos importante que o Sistema Penal exerce".

Monopolizador da violência de forma ilegal e ilegítima, é seletivo, incapaz de punir as pessoas "que não lhe são vulneráveis" (ZAFFARONI, 2001, p. 40). Age sobre os indivíduos pautado em padrões criados por preconceitos raciais, econômicos, sociais, culturais, sem qualquer critério legítimo, produzindo e mantendo a marginalização e exclusão social, deixando de agir como deveria, sobre as condutas disformes efetivamente praticadas, reprimindo-as. A política criminal exerce papel fundamental nos reflexos do sistema penal na sociedade, tendo em vista que, quanto mais o reduz à função punitiva, tanto mais consolida a exclusão (BATISTA, 2004, p.37).

Confirmando, ainda, a exclusão, a intervenção judicial, nos poucos casos em que ocorre, ante a seleção prévia efetivada pelo órgão policial, é pautada nas disposições abstratas da lei e não possui o respaldo da realidade, qual seja, o cotejo com o conflito social que se deseja decidir. Inexistindo tal contato, a realidade perde-se ensejando decisões pautadas no abstrato. Os juízes, incapazes de penetrar no mundo do acusado e de serem sensíveis ao conhecimento da facticidade, decidem de forma dedutiva, e não cognoscitiva, segundo as necessidades de justificar e legitimar o próprio sistema.

Seguindo o raciocínio delineado, pode-se concluir que o sistema penal atua como forma de disciplinar os diferentes, de delimitar espaços sociais, certificando-se que cada indivíduo permaneça no seu lugar. (FOUCAULT, 1987, p. 123). Havendo qualquer desrespeito às normas instituídas, age repressiva e violentamente para manter a situação vigente. De outra banda, os submissos ao exercício do poder sistêmico repressivo não desenvolvem o senso crítico e nem exercem suas atividades conscientemente, permanecendo dóceis, domesticados, tornando-se, via de conseqüência, úteis economicamente.

A repressão sistêmica não visa a expulsar o homem da vida social, mas a gerir sua vida de forma tal a torná-lo cooperador da própria repressão sofrida. O importante é estabelecer limites, barreiras, promover discursos criativos sobre uma realidade ilusória, impedir a criação de discursos contrários, medir a qualidade, não pela particularidade inerente a cada ser social, mas pela marca social apresentada por cada um. Segundo FOUCAULT (2000, p. XVI), o interesse é aumentar a força econômica e diminuir a força política.

Com a finalidade de manter a realidade virtual criada pelos aparelhos políticos, econômicos e sociais, os detentores do poder conseguem confirmar e justificar a dominação implementada mediante a divulgação de um discurso ideológico por intermédio não só dos meios de comunicação, principal veículo divulgador, mas também dos próprios dominados. "Seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro".(BATISTA, 2004, p. 26)


3.DISCURSO JUSTIFICADOR

O elemento ideológico funda o sistema penal, não sendo apenas mera contingência. O funcionamento desigual e fragmentário desse sistema reproduz a realidade social existente, desde a formulação técnica das normas legais que o compõem e o orientam, até a atuação seletiva junto à sociedade. Nota-se, pois, a existência de um hiato entre a abstração e a realidade social. Diante dessa divergência existencial, a parcela da sociedade monopolizadora do poder produz uma realidade favorável a ela, porém destoante das situações concretas, e a divulga até que seja aceita e internalizada pelos membros da sociedade.

Michel FOUCAULT (2000, p. 12) entende que o poder produz domínio de objetos e rituais de verdade, eficácia, produtiva e riqueza estratégica. Entretanto, para que esse poder seja legitimado e internalizado por aqueles sobre os quais é exercido, deve circular continuamente, de forma ininterrupta, adaptada e individualizada no corpo social. Em virtude disso, o discurso faz-se essencial, uma vez que a ele cabe a busca da legitimação do sistema penal e a fundamentação de seu atuar.

O discurso produz a verdade e a sustenta. De outro lado, é produzido pelos integrantes do aparelho político ou econômico que detêm a prerrogativa de dizer o que é verdadeiro. Tal afirmação permite concluir que a verdade está submetida a constante incitação econômica e política e é criada e usada para dominar, domesticar, aumentar a produtividade e baixar a resistência. É, pois, ligada ao sistema de poder que a produz e aos efeitos de poder que induz.

A reprodução da verdade criada deve ser constante para conferir a segurança de internalização por aqueles que se deseja dominar, por isso, ela deve se espalhar, reproduzir para se consolidar. O discurso é o meio de propagação dessa verdade. É tão poderoso que "a sociedade compra a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais notória insolvência estrutural em nossa civilização".(ZAFFARONI, 2001, p.27).

Por intermédio do discurso, a verdade construída ideologicamente é produzida e reproduzida constantemente, portanto, gera e mantém tal ilusão, de forma que essa ilusão passe a fazer parte integrante do pensamento da pessoa como questão incontroversa. Em virtude disso, o que antes era uma mera ilusão, uma criação, passa a ser inconteste e único, portanto, dominante em um determinado contexto individual e social.

O discurso utilizado na realidade brasileira desencadeia campanhas contra a violência, aumenta a propaganda do crime, à medida que se espalha por todos os meios, instiga a prática do próprio crime, divulga e solidifica estereótipos. Com isso, em vez de rechaçar a conduta realmente desviante, acaba por justificar o sistema penal falido que atua de forma ilegítima, seletiva baseando-se em estereótipos criados, aumentando, conseqüentemente, a violência.

A reprodução do discurso por toda a sociedade, no âmbito político, econômico e social, consolida estereótipos e acaba por selecionar a clientela do sistema penal, incapaz de espraiar os seus efeitos sobre todos. As pessoas selecionadas para sofrerem a atuação daquele são tratadas "como se fossem", embora não tenham manifestado nenhum comportamento infracional. Ao generalizar o tratamento de acordo com o "como se fossem" e o sustentar no tempo, as pessoas passam a comportar-se de acordo com o papel atribuído e acabam "sendo". (ZAFFARONI, 2001, p. 134).

A criação do criminoso padrão, ou seja, a pessoa pobre ou de raça diferente, sem formação cultural, residente em bairros pobres, muitas vezes sem lugar para morar, marginaliza a diversidade concreta em uma sociedade complexa, excluindo todos aqueles que não se encaixem no modelo idealizado. Segundo BARATTA (2002, p. 89), há uma mudança da identidade do indivíduo ocorrida no momento em que é introduzido no estigma de desviante, bem como uma tendência a permanecer no papel social em que a estigmatização o introduziu.

O sistema penal sustenta-se por um discurso incoerente com a situação fática, porém aceito por toda a sociedade que, ainda, exerce uma vigilância velada em relação à efetivação daquele discurso. Sob a máscara de proteção e manutenção da ordem social, efetivamente, cria barreiras e alija pessoas de sua condição essencial. O discurso, pois, cria e repete estereótipos, desvirtua a realidade, justificando o atuar sistêmico, seletivo e excludente.


4.A REALIDADE DUAL DO SISTEMA PENAL

A internalização individual do discurso justificador pelos integrantes de uma sociedade culmina em uma aceitação do conteúdo por ele passado sendo a base da criação de verdades incontestes. Não obstante, os fatos ocorridos em decorrência do convívio rotineiro, imprescindível nos relacionamentos humanos, acabam por se chocar com a realidade virtual discursiva, tendo em vista a total disparidade entre a facticidade e a virtualidade.

Segundo ZAFFARONI (2001, p.38), os fatos provocam "curto-circuito" no mecanismo inventor da realidade e deslegitimam o sistema teórico. A existência da divergência entre realidades ocasiona uma forte reação do mecanismo de sustentação da realidade discursiva, virtual e ilusória, qual seja: o discurso. Existindo o choque entre facticidade e ilusão, o discurso dominador reage com veemência de forma a desfocar a realidade fática, mudando o seu sentido, e o faz com tal precisão que, por vezes, perturba a percepção daquela, induzindo em compreensão desvirtuada com relação ao concretamente ocorrido. Os fatos, como a morte, a violência, a arbitrariedade, então, não são negados, mas legitimados mediante a distorção da realidade de modo tal a justificar a ocorrência daqueles.

Pode-se dizer, com isso, que o fato não é ocultado da visão da sociedade, mas sim desvirtuado conscientemente, utilizando-se de conceitos já estabelecidos e aceitos e internalizados, para que haja uma compreensão diversa da realidade. É sabido que a estratégia discursiva vem obtendo êxito, entretanto, a realidade operativa do sistema penal não é ocultada, sendo, ao contrário, cristalina para aqueles que conseguem suplantar a cegueira que os impede de compreender o contexto factível no qual estão inseridos.


CONCLUSÕES

A existência de segregação e hierarquização é uma prática humana que remonta dos primórdios da civilização, não sendo um problema conjuntural. Os avanços tecnológicos, científicos e econômicos da atualidade são, ainda, pautados na negação da própria humanidade partilhada individualmente por todos os seres humanos. O desrespeito aos direitos humanos, a aceitação, manutenção e divulgação de conceitos discriminadores são patentes na época dita moderna.

As relações sociais, na realidade, não são dialéticas, mas verticais, impostas por uma pequena parte da parcela detentora do poder. A atualidade do contexto social brasileiro é constituída, de um lado, por muitas conquistas normatizadas pela Constituição Federal, ainda sem efetivação e, de outro, exclusão, vida marginalizada, sem respeito ao mínimo necessário a uma dignidade ínsita ao ser humano, notadamente na seara penal. A deslegitimação do sistema penal é inconteste ante a realidade fática, contudo a atuação continua nos moldes há muito vigentes, sustentada por um discurso criador de uma ilusão, que busca preencher o vácuo da realidade penal. A situação fática, inconteste e atual, é de exclusão, marginalização, repressão e arbitrariedade.

No que concerne ao órgão judicial, é o que age de forma mais destoante da realidade, por aplicar a lei de maneira mecânica, mediante uma simplista dedução, reproduzindo o pensamento dominante, imposto por uma sociedade industrial fruto e reprodutora de um discurso neocolonial dos países centrais sobre a América Latina. Não responde, pois, aos anseios de uma sociedade complexa.

A violência cotidiana do sistema penal recai sobre os setores mais vulneráveis socialmente, marginais, afastados do poder, mas que são o foco da atuação violenta daquele sistema conservador, autoritário, refratário de uma realidade complexa e ansiosa pela construção de uma ideologia humanitária. Refletindo uma ideologia individualista, busca aniquilar o inimigo, sendo este todo aquele que se desvirtue do padrão ideal vigorante. Em que pese o desacordo entre o atuar do sistema penal e os valores de igualdade social, tolerância, respeito aos direitos alheios, aquele é sustentado por um discurso cuja finalidade é a eliminação do dissenso, a manutenção da estratificação social, a sustentação das relações de hegemonia na sociedade.

A conscientização do ser humano acerca do valor ínsito que possui, bem como de sua posição na sociedade, o levará à libertação e à motivação de luta para a sua inserção no sistema que não o aceita (DUSSEL, 2000). A luta pela inclusão em um sistema que existe por sua causa fará significado para ele. Entretanto, somente a educação leva à consciência crítica. Tendo em vista a lentidão que o processo educativo ocorre, compete ao operador jurídico, já liberto e consciente do valor próprio e da responsabilidade que lhe cabe no contexto social, a incumbência de promover a defesa dos direitos humanos em situações concretas, denunciando, defendendo, buscando a efetividade do ideal humanitário e suscitando questões que ajudem a conscientização da sociedade e a internalização e realização do conceito de dignidade humana, ainda tão idealizado.

A luta contra interpretações distorcidas, baseadas em estereótipos, que legalizam discriminações, contra os discursos legitimadores de injustiças sociais, contra a ignorância que leva à aceitação da exclusão e da própria condição indigna, ajudará a realizar a liberdade, a igualdade e a participação, fundamentos democráticos. Tais realizações implicarão, necessariamente, na transformação da sociedade e, conseqüentemente, do sistema penal e dos seus integrantes que passarão a respeitar os direitos protetores contra todo o tratamento desumano e os deveres garantidores de condições existenciais mínimas.

A cegueira que atinge grande parcela da sociedade somente será curada com a consciência do valor próprio que cada um possui, da situação em que se encontra, da compreensão da realidade e do seu papel nela. Curados da doença que impede a clara consciência, certamente haverá necessidade de mudança que implicará em ruptura da ordem posta, bem como em derrocada de estruturas valorativas, pilares e caóticas, além de reconstrução de conceitos, de atitudes e de discursos, não mais favoráveis e legitimadores da marginalização, mas a serviço da pessoa humana.


REFERÊNCIAS

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BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

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DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2004.

DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e exclusão.Petrópolis: Vozes, 2000.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.15.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e a validade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro 1997.

PIOVESAN, Flávia. Democracia, direitos humanos e globalização. Disponível em: < www.dhnet.org.br/direitos > Acesso em 23.07.2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Editora Cortez, 2000.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

Sobre a autora
Mercia Miranda vasconcellos

procuradora do estado do Paraná, mestranda em Ciência Jurídica pela UENP/FUNDINOPI em Jacarezinho (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELLOS, Mercia Miranda. Sistema penal seletivo.: Reflexo de uma sociedade excludente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1596, 14 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10652. Acesso em: 23 nov. 2024.

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